Entrevista

Elisa Lucinda: “Nossa democracia está tomando um choque de verdade, temos que reconstruí-la”

A poetisa, cantora e atriz participou em Porto Alegre da conferência inaugural do Diálogos Contemporâneos

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |

Ouça o áudio:

Temos que ser diuturnamente antirracistas, defende Elisa Lucinda - Foto: Rafael Roso Berlezi

No dia de todos os mortos, em um momento marcado por mais de 608 mil vidas perdidas no país, o Brasil de Fato RS conversou com a poetisa, jornalista, escritora, cantora e atriz, a artista multifacetada Elisa Lucinda. Ela realizou a conferência inaugural do Projeto Literário Diálogos Contemporâneos, nesta quarta-feira (3), em Porto Alegre.

Na abertura da conversa que durou pouco mais de uma hora, realizada de forma virtual, a escritora destaca porque aceitou conversar com a equipe do Brasil de Fato. Conforme ressaltou é preciso fortalecer a mídia independente e teceu críticas aos grandes meios da imprensa hegemônica. “Uma imprensa que puxou com muita força o antipetismo a qualquer custo. As pessoas diziam eu vou votar nesse doido (Bolsonaro). Se você sabe que ele é doido por que que vai votar nele? Ah, qualquer coisa menos o PT. Então, esse qualquer coisa menos o PT deu no incêndio da Amazônia, no fim da bolsa família, no fim das universidades, foi um passo muito pesado. Então, eu quero estar na imprensa que eu acredito”, afirmou. 

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Abaixo a entrevista completa

Brasil de Fato RS - Empatia e solidariedade: antídotos contra a banalização da maldade e do preconceito. Esse é o tema da sua conferência inaugural do Projeto Diálogos Contemporâneos. Avançamos ou retrocedemos enquanto humanidade nessa pandemia, na tua visão?

Elisa Lucinda - O mundo sempre vai para trás e para frente ao mesmo tempo. Tem muita gente batendo um tambor que faz o país ficar retrógrado, e tem um pedaço da humanidade que avança. Por exemplo, se esse incêndio da Amazônia tivesse acontecido quando eu tinha 10 anos, não havia nenhuma organização não-governamental, não havia nenhuma instituição que pudesse fazer algo, nem nacional nem mundial, que pudesse falar, não, para, epa, crime contra a humanidade, não pode mexer nas matas. Tanto que nos anos 1960, em plena ditadura, muita madeira nobre nossa foi, virou pó. 

Acho que nós estamos vivendo um caso específico do Brasil. Parece que a gente abriu a porta do inferno. Eu tenho conhecido e visto cenas bizarras de ódio sem nenhum constrangimento, homofobia, racismo, sem nenhum constrangimento, como esse cara aí que foi tirado da seleção (Maurício Souza), e ele disse: muito obrigado, ganhei 800 mil seguidores. Ele não pede desculpa não, ele está convicto. É um atraso esses capetas, demônios dentro da nossa sociedade, e disseminando isso na cabeça das crianças. Mas eu acho que nossa democracia, nossa evolução como um povo mudou de fase.  

A fase agora é a seguinte: ninguém inventou essa gente, essa gente é fruto real do colonialismo brasileiro, da história brasileira que se pautou, desenvolveu-se a custo de muita violência. Essas pessoas sempre existiram. Nós, pretos, estamos falando dessas pessoas há muito tempo. E era paranoia nossa, e era mimimi. Elas não falavam, mas deixavam claro que você não era para estar ali, com seu olhar, e isso saiu da casinha. Por isso que é revolutivo do ponto de vista do furúnculo sociológico. Tem um furúnculo que tem que sair o carnegão (uma massa de pus misturada com restos de pele). Nós estamos vivendo um momento carnegão, que é muito doloroso, mas é verdade.  

Nós, mulheres, há quanto tempo que fugimos de ônibus lotados pra ninguém ficar encostando na gente, e há quanto tempo isso existe antes da palavra assédio? Mas sempre existiu, autorizadamente, ninguém tomava providência, por muito tempo. Então, olha como é que o mundo é doido, ele avança nesse lugar, nós não estamos avançando, não parece, estamos avançando, nossa democracia está tomando um choque de verdade, vamos ter que aguentar o tranco e reconstruí-la. 

Eu cobro sim, que você seja antirracista na sua prática diária

Em novembro de 2019, meses antes do mundo se fechar em si por conta da pandemia, em entrevista que realizamos contigo, uma frase ficou: A vida não tem ensaio, mas tem novas chances. Nesse período da pandemia que ainda está ai, se afrouxando mas está, que novas chances tu vislumbras? 

Eu acho que o mundo não vai ter outra escolha, a não ser caminhar para sua origem. Isso é muito importante. Todos os males, moralismo, sexualização louca, homofobia, racismo, racismo em primeiro lugar, o assassinato da sobrevivência do planeta. Tudo isso pra mim se dá porque não estão na mesa da gestão do mundo os fundamentos dos povos originários. 

Um indígena não vai destruir a mata, para o indígena a palavra natureza não faz sentido, ele é a natureza, isso tem que nos dizer alguma coisa. Nós vivemos longe de nós, nós vivemos achando que somos donos do planeta, e é ao contrário, nós pertencemos ao planeta. 

Olha como é que é o jogo furado da civilização, tratamos muito mal a sexualidade, os indígenas foram os que mais entenderam, e depois os negros em segundo lugar. O indígena acha estranha essa obsessão, por que que tem que cobrir a intimidade dele? A nossa condição que é nascer nu, nossa condição de origem nos põe nus, nós nascemos nus, isso é crime, sintoma. A gente não se reconhece na nossa natureza animal, não reconhece a natureza na nossa casa. 

Se está queimando na Amazônia, meu terreno não é lá, a fazenda que eu tenho é no Sul. Você entende, o homem ficou nessa viagem individualista, que é o contrário do Ubuntu, na filosofia africana, eu sou porque nós somos. E é verdade. As pessoas precisam dos outros o tempo inteiro, contudo elas não veem os outros. Mas precisam dos outros o tempo inteiro. Tem gente que toma café todo dia no mesmo bar do lado do escritório, e não sabe o nome do cara que serve, nunca olhou direito pra ele, é capaz de não reconhecer, isso porque, em sua visão ele faz um serviço subalterno. O homem criou essa viagem, não sabe construir uma casa, qualquer indígena sabe, e despreza quem sabe construir a casa. Você entende onde é que o homem se meteu? 

Acho que a nossa viagem vai ter que ser de volta para gente. A nossa subjetividade está muito contaminada pelo eurocentrismo, cabeças colonizadas. Você não estudou os orixás, como cultura, não precisa ser religioso, é a nossa cultura. Não estudamos nem história real. Por que não temos nada, nem uma linha sobre Palmares, um estado que durou 100 anos dentro de Pernambuco, que é Alagoas? Você não tem nenhum relato dos abolicionistas praticamente, e tem uma mulher loura que acordou a fim de assinar a libertação dos escravos, porque ela é boazinha? Estão suprimindo toda a luta, a árdua luta nossa de quilombagem para chegar a algum rompimento com aquela estrutura de tráfico humano. 

A nossa viagem vai ter que ser de volta para gente. A nossa subjetividade está muito contaminada pelo eurocentrismo, cabeças colonizadas

Pensando na renovação da nossa esperança, nas novas chances, para mim as nossas chances são, do ponto de vista climático, do ponto de vista ecológico, e do ponto de vista etnológico, é essa a palavra, não é etimológico, é etnológico, que é, o primeiro homem era preto. 

Eu gosto muito da história de Jesus Cristo, mas ele vivo, a história dele como revolucionário. Toda essa coisa com a morte, sacrifício é muito trágico e muito associada a flagelo, ao contraponto muito danoso do espírito com o corpo. Se você estudou o candomblé, se você é filho de Oxóssi digamos, você não vai desmatar, se você é filho de Iemanjá você não vai sujar o mar. E olha, é claro que não existe uma mulher lá no fundo do mar chamada Iemanjá, é um símbolo das águas, e as águas existem, e tem poder. Da mesma maneira que Iansã existe como ancestralidade, mas o que existe real é a força dessa chuva, desse raio, dessa tempestade. Então através desses símbolos, nos conectamos com essas forças da natureza, e dizemos por isso que não estamos sós. Isso faz muita diferença na vida de um ser humano. 

Então, ecologicamente, deveria ser ensinado o Candomblé nas escolas. Outro dia eu ouvi alguém falar assim, ah, essa música do Arlindo Cruz: o meu lugar… Madureira, música linda do Arlindo Cruz, tem um pedaço que ele fala do candomblé, algumas imagens do candomblé. E aí um cara falou: essa música só não ganhou como a mais tocada porque fala de religião, sabe como é que é o brasileiro. O brasileiro fica assustado com a palavra Exu, é confuso, ele é meio bipolar, porque na hora que o bicho pega, depois que o médico desengana, ele vai numa mulher lá na puta que pariu, mas ele vai, vai. O Brasil vive essa loucura, e a humanidade, para mim, terá que fazer esse dever de casa: o que que eu deixei de estudar que está me levando para o abismo? 


Elisa Lucinda falou sobre Empatia e solidariedade: antídotos contra a banalização da maldade e do preconceito, com mediação do escritor e músico Ricardo Silvestrin / Foto: Rafael Roso Berlezi

Também em uma entrevista ao BdF você disse que "O racismo é o maior câncer do Brasil". O STF equiparou, recentemente a injúria racial a crime de racismo, considerando-a imprescritível. Estamos em novembro que é o mês da consciência negra. Como vencer culturalmente o racismo e o machismo? 

Várias ações. Eu ontem conversava com meu grande amigo Aílton Graça, porque eu tive uma discussão com outra amiga filósofa, que ficou muito chateada, porque eu sugeri que ela oferecesse uma bolsa à uma pessoa negra nas aulas de filosofia dela. Ela ficou muito magoada comigo, disse que achou que não era pauta dela, que ela achava que agora não é hora das pautas identitárias, que elas podem ficar brigando entre si. Concordo que não devemos ficar.

Antes de eu saber o que era pauta, antes de eu saber o que era esquerda ou direita, eu nunca gostei da desigualdade, eu sempre queria que outras crianças ganhassem presente no Natal também, e eu achava que todo mundo ganhava. O dia que eu descobri, que mamãe cantando essa música: eu pensei que todo mundo fosse filho de papai noel, aí eu perguntei a ela: não é todo mundo não? E ela disse que tinha gente que não ganhava presente, eu lembro que eu chorei muito, eu tinha sei lá, 6 anos, 7. Então, eu era de esquerda, mas não sabia. 

Mas na verdade não é isso, homofobia, machismo, racismo, tudo isso mata. Homofobia, machismo, racismo, são pautas da humanidade. Não é de esquerda ou direita, é da humanidade. Desculpa, se você é filósofo e não se preocupa com isso, eu duvido da sua filosofia. Eu não sei a que que ela serve, nesse caso eu sou bem radical. 

Homofobia, machismo, racismo, tudo isso mata. Não são pautas de esquerda ou direita, são pautas da humanidade

E aí Aílton Graça falou uma coisa muito interessante, o nosso maior câncer é o racismo, pelo seguinte: o mundo tem uma dívida imensa, porque a mitologia grega bebeu de uma maneira tão funda na cultura egípcia. A gente está estudando a cultura negra e de repente encontra a Nefertiti. Aí você fala, espera aí, roubou, apagou-se da história do mundo que Egito é África, e que Egito trouxe medicina, geometria, arquitetura, papel, a escrita, pra dizer o mínimo. É muito sério esse apagamento, essa invisibilização que fazem com Carolina de Jesus, por exemplo, e tantos outros. 

É muito sério isso, porque você tem o tempo inteiro a ideia oficial: os brancos trouxeram os negros, era ruim a escravidão, mas depois libertaram, eles não foram pra frente porque não quiseram. É um jogo roubado, tudo feito para favorecer o branco e para foder o preto. E sem nenhum mérito, o preto não tem nenhum mérito, quando você trazia o preto do Congo, não era assim à toa. Eu quero do Congo porque eu estou numa lavoura de algodão onde os congoleiros são feras. Eu quero de Angola, porque eu preciso de garimpeiros. Quem sabia tudo éramos nós, grandes ferreiros, grandes trabalhadores da lavoura, conhecíamos o cultivo. Isso tudo foi apagado, e é engraçado que, por exemplo, se faz vários elogios à Itália, aos alemães, ó como é que são caprichosos, olha, tem a terrinha deles, como se fosse preguiça do preto, o preto que ensinou. 

Onde que está o preto em Ouro Preto? O nome era Ouro Preto, de tanto ouro que tinha, o preto construiu aquilo tudo, descobriu o ouro, escalavrou aquelas pedras com as mãos, aquelas montanhas, onde que ele está morando lá agora? Não vê, só vê branco. Dizimados, tem uma tentativa de dizimação. 

Então se você tem essa diáspora, é porque o mundo fez essa orgia com o tráfico de pessoas negras, devendo a essas pessoas. Por isso essa pauta pra mim não é identitária, é da humanidade, é de todo mundo.  

Eu cobro sim, que você seja antirracista na sua prática diária, não é fácil. A todo momento temos que achar as palavras, onde é que você está sendo racista, por exemplo, não se deve falar mais, denegrir. Não se deve falar mais, por exemplo, barraco, eu não falo mais barraco. É uma desonestidade intelectual nossa dizer isso, porque estamos dizendo que pobre é que faz baixaria, como se o rico não fizesse. Só que nesse caso, os ricos, brancos principalmente, têm a proteção da sociedade que eles mesmos criaram pra favorecê-los. 

Nesse contexto também entra a questão econômica que afeta a vida...

Muitos não receberam afeto, receberam dinheiro no lugar do afeto, muitos. Tá reclamando de quê? Esse cartão infinito, tem um cartão sem limite, seu ingrato. E o cara quer um beijo, nem ele sabe que ele quer um beijo, mas ele quer um beijo. Fica um custo muito alto. Você quer ser, sei lá, artista plástica, mas só que seu pai é o dono de alguma super grande corporação. Quem vai ficar cuidando da lojinha? 

Você é a única filha, você é muito bonitinha, não invente de ser sapata, porque você vai casar com a outra fortuna, porque eles associam fortunas. E essa menina vai engolindo tudo que ela queria ser, porque ela já herdou a empresa do pai, Deus me livre se ela não assumir. É claro que há exceções, mas nós não estamos discutindo exceções. 

Ninguém pensa nessa frustração, como a desigualdade acontece mesmo por outras condições. O cara não pode ser artista plástica porque ele tem que botar comida na mesa da mãe, que não tem o pai lá já, ele é o mais velho e tem mais 4 crianças, 5 crianças pra comer, não pode pensar em ser artista plástico. Então, fica essa sociedade de frustrados. Afeto não se compra. Ficou provado que deu ruim a história da riqueza trazer felicidade, é mentira, se não, não haveria nenhum caso de suicídio na classe rica. 

Acho que o dinheiro vai levando a essa piração, você não sabe se as pessoas estão com você porque gostam de você, fica muito inseguro, ou se porque você trás facilidades, você não quer pagar pra ver. A riqueza trás a sensação de que nada vai faltar, tudo que eu quiser eu posso comprar. Você repara, critica-se muito o funk ostentação, pobre que fica querendo mostrar riqueza. O rico faz isso full time, passa de lancha naquela área que é dos banhistas, para exibi-la. É uma mentira que o dinheiro trás felicidade. 

E há também a questão da representatividade dos corpos negros...

Eu estou tentando fazer meu papel com esses encontros, adoro esses diálogos contemporâneos. Na minha conversa eu trabalho muito no campo do simbólico.

Eu fui a favor de realmente sair aquela globeleza dali pelada, que é isso que sempre se fez com o corpo negro, nunca foi uma branca a globeleza. E tem esse uso, e aquilo simbolicamente atua na nossa vida, nos educa no campo simbólico o tempo inteiro. Eu faço umas desconstruções. Minha amiga diz que eu faço pedagogia do constrangimento. Por exemplo, vou fazer um filme, aí a figurinista é branca, como a maioria das vezes acontece, e isso muda a cara do filme. E uma delas, mais nova que eu falou para mim: Elisa, eu estava pensando em fazer você toda clean. A minha personagem podia ser tudo, menos clean, no meu conceito, a história dela… E aí eu virei para ela e falei: eu pensei em outra coisa, ela é mãe de santo, vejo ela nada clean. Eu vejo ela, com composição de estampados, um turbante com um tipo de estampado combinando com outro estampado. Ela falou: ai, sei, tudo bagunçado, né. 

Esse é um exemplo de eurocentrismo avassalador. Eu disse assim pra ela: não fala assim não, você é jovem, está construindo seu caminho, podem pensar que você é limitada do ponto de vista estético, podem pensar que você não leu nenhum patchwork

Uma amiga, branca me ligou e falou: eu soube que você está precisando de uma secretária, e eu tenho uma assistente pessoal que tem tudo que você precisa. Teve uma hora que ela falou: Elisa, quando a gente terminar o telefonema você liga pra ela e ela vai ser a primeira que você vai entrevistar, você vai ver. Aí eu disse assim: tá bem, mas ela é negra, né? E ela, era por telefone, deu uma pausa dramática, e falou assim: não, ela é branca, por quê? Tem problema pra você? Eu dei a mesma pausa, e disse: Tem. Ainda mais que vai mexer com dinheiro, não me sinto a vontade, confortável, sabe como é que são esses brancos, são frios, reincidentes, têm muitos mecanismos de controle judiciais, de suas falcatruas, eu fico preocupada, e quando roubam, roubam bilhões, você vê aí na CPI, não tem nenhum preto investigado, eu não fico tranquila. 

Você me entende? Ótima pedagogia, porque a gente ouviu isso a vida inteira. Não é vingança, isso é uma pedagogia mesmo, para você compreender de outra maneira o que que foi ensinado. 

Nós avançamos, sim, nunca fomos tão ouvidos, nunca teve tanto preto nos programas de TV convidados para falar. Ainda é muito pouco, mas passou muitos anos sem ter nenhum. Na pandemia houve uma briga nossa na rede, não tinha um comentarista, um infectologista preto pra dar uma opinião sobre a pandemia. E é preciso, porque o preto sofre no hospital, sofro eu que sou conhecida, sofre Lázaro Ramos, que vai na farmácia e a mulher destrata ele, aí um dia ele tira a máscara, aí ela “ai Lázaro, quero um autógrafo”. Não, porque quando você não sabia que eu era Lázaro, não valia nada pra você. Significa que meu pai, meus irmãos, minha família toda e todos os meus irmãos pretos você vai tratar mal, está livrando minha cara porque eu sou famoso. 

Temos que ser diuturnamente antirracista, com uma tacada dessas nós estamos abrangendo muita coisa

Não tenho como não lutar contra o racismo, diuturnamente, todos os dias, em alguma situação, a gente é ofendido nesse lugar. É toda hora meu bem, no elevador, é toda hora, o tempo inteiro. É minha irmã dizendo pro filho dela, meu irmão dizendo pro filho dele: quando estiver na rua, rapazinho, não corre, a polícia pode atirar, você pode ser o ladrão que eles estão pensando, que estão procurando, porque é um corpo preto correndo. E quem é mãe branca não dá esse tipo de aviso ao filho, não precisa, ele não é alvo. 

Temos que ser diuturnamente antirracista, com uma tacada dessas nós estamos abrangendo muita coisa. A escola tem que agir, os políticos têm que agir, nós nos nossos trabalhos temos que agir. Você no seu trabalho, questionar se na redação não tem nenhum preto, só dois entre 20 jornalistas, vocês têm que questionar, temos que questionar. Estranhar entrar num restaurante em Porto Alegre e só ter branco, num lugar que tem tanto preto. Temos que nos incomodar, isso tem que nos fazer mal. Nós todos temos que estar atentos todos os dias, e se a gente tiver uma atitude antirracista, já melhora muito cada um de nós.


"Quero andar na vida sendo a vida pra mim o que é para o indígena a natureza" / Foto: Fabiana Reinholz

Como a poesia, a literatura, os livros enfim podem nos ajudar nos tempos em que vivemos? 

Fazendo esse papel maravilhoso que eu acho que a poesia e a literatura fazem, porque lá tudo é possível, na literatura tudo é possível. 

Na literatura, você cria figuras que podem ensinar igualzinho como a escola faz, só que a escola não faz desse modo que a arte faz. Você pode, na literatura, por exemplo, dizer estou dentro da cabeça do presidente, nossa, tem aqui um corredor. Porque será que você cria um negócio desses? O leitor não estranha, o leitor não vai pensar, não, dentro da cabeça ninguém pode entrar. Na literatura pode. Memórias Póstumas de Brás Cubas, ele já morreu, e conta a história. Nossos limites são infinitos nesse campo, a gente pode abordar o que quiser, sabe. 

Acho que o meu trabalho como poetisa, como poeta, como escritora, como artista, é contribuir pra esse negócio chamado vida, e civilização, e continuação da humanidade. Pra matar preconceito eu renasci, é uma frase de um samba que eu estou querendo decorar. Mas é isso, eu acho que nós temos que usar nosso poder como artistas, que também nós somos, como os políticos, eleitos representantes. Muitas vezes eu vejo, na minha página, você me representa, você me representa, você me representa. E aí eu gosto de ter responsabilidade com esse lugar, porque eu tenho certeza que a arte educa, todo o tempo. Mesmo aqui, está pensando que não está educando, mas está educando sim. 

Elisa, fale sobre a dor e a delícia de ser fora da caixa, de ser essa mulher a flor da pele, sensível e conectada com o ancestral, e com esse mundo da beleza e da poesia. 

Eu vou dizer um poema, se chama “Última moda”, um poema meu que tá no livro “Vozes guardadas”:

Aquela roupa não me serve, aquele uniforme não me cai bem. 
Não quero essas normas, essas ordens, esses panfletos, 
o que pode ser bonito, o importante não dito que pode ser dito, 
o que pode ser feio, o importante não dito. O que pode ser (não sei o que lá), o que pode ser bonito. 
Algemas nas correntes, estéticas não me interessam. 
Não quero esses boletos, esses compromissos, essas etiquetas, esses preços. 
Não tenho códigos de barras, não tenho marcas, 
não caibo nessas caixas, nessas definições, nestas prateleiras. 
Quero andar na vida sendo a vida pra mim o que é para o indígena a natureza. 
Assim vou, pedalando solta nas ruas do Rio da beleza, 
nos mares da liberdade, alcançada essa grandeza, 
e em tal grandeza meu corpo flutua nos mares doces e nas difíceis águas da vida crua. 
Minha alegria segue, prossegue, continua, despida de armas e de medos. Sou mais bonita nua. 

Por fim, em que estás trabalhando atualmente?

Eu vou publicar um livro, nesse momento estou fazendo capa, que é “Quem me leva pra passear”, que são os pensamentos da Edite. É uma série, o primeiro foi “O livro do avesso”, o nome da série é “O pensamento de Edite”. 

No primeiro a Edite escrevia tudo que pensava, nesse a gente está lendo o pensamento dela. Estou feliz da vida com esse livro, porque foi escrito na pandemia durante esse ano inteiro, e eu aproveito a liberdade da ficção para dizer tudo o que eu penso, através da Edite que é uma autoficção, embora ela seja bem diferente de mim. Ela nunca é panfletária, não que eu seja, mas ela nunca usa palavras de ordem. Tem uma cena que a amiga dela Cecília Kaiowá, fala assim: “Ai Edite, o Brasil tá cheio de militar em todos os setores, todos os ministérios, a ditadura voltou, são militares que estão no poder”. Aí a Edite fala: “Não pode ser, e a democracia?” Aí a Cecília fala: “A democracia tá sendo atacada”, ela falou “meu Deus, ninguém ficou vigiando?” Entende, essa é a Edite, a Edite ela percebe politicamente as coisas do ponto de vista afetivo. 

Fora isso fiz, entre série e filme, 12 trabalhos de 2019 até agora. E está tudo por lançar, porque a pandemia segurou. Agora no Festival do Rio, estão “O pai da Rita” e “Papai é pop”. Eu tô nos dois filmes, um é do Joel Zito, com o Aílton Graça, e o outro com Lázaro Ramos, direção do Caíto Ortiz. Também tô num filme com Adnet. 

Graças a Deus eu tenho feito bastante audiovisual, a série “Manhãs de setembro” com a Liniker, eu faço a voz na cabeça dela, mas que depois já vai aparecer como personagem na segunda temporada. Ano que vem faz 20 anos do Parem de falar mal da rotina, e eu trarei para o Theatro São Pedro, pode escrever. Estou fazendo muita coisa, a Edite também vai virar podcast numa dessas plataformas de streaming. Devo voltar com meu programa Quarta Preta, dentro do spotify. Eu estou cheia de ondas, está tudo bem, está tudo acontecendo porque aqui o negócio é animado. 

Elisa Lucinda por Elisa Lucinda.

Eu sou uma pessoa em processo, e eu gosto de ser, eu gosto de ser em processo, eu gosto de caminhar para o inédito, disponível, sou muito disponível para o que há de vir. Então eu navego com tranquilidade no presente mesmo estando esse mal estar. Esse governo causou um baixo-astral no país, imenso, já havia um baixo astral quando a pandemia chegou. Então quando eu vi que o meu humor sobreviveu a isso, e que ainda dá pra fazer rir, pra refletir, eu gosto da Elisa Lucinda que eu vejo, eu gosto. 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko