Coluna

O acirramento dos conflitos no campo e a “política pública do agronegócio”

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É preciso que o Brasil cumpra os compromissos assumidos na ordem internacional, no campo dos direitos humanos e da preservação ambiental - Tarcísio Nascimento / Fotos Públicas
Os últimos anos têm sido particularmente preocupantes

Nesse campo desigual, Severo levantou sua voz contra as determinações com que não concordávamos. Virou um desafeto declarado do fazendeiro. Fez discursos sobre os direitos que tínhamos. Que nossos antepassados migraram para as terras de Água Negra porque só restou aquela peregrinação permanente a muitos negros depois da abolição. Que havíamos trabalhado para os antigos fazendeiros sem nunca termos recebido nada, sem direito a uma casa decente, que não fosse de barro, e precisasse ser refeita a cada chuva. Que se não nos uníssemos, se não levantássemos nossa voz, em breve estaríamos sem ter onde morar.

Itamar Vieira Junior, Torto Arado. São Paulo: Ed. Todavia, 2019, p. 197

O trecho transcrito do romance Torto Arado deixa entrever o perigo que ronda o protagonista da cena, Severo, personagem que ousa levantar sua voz contra uma ordem estruturalmente desigual, legatária da escravidão. Fala também sobre os óbices impostos aos negros libertos de acesso à terra, impossibilitados até mesmo de construir casas de alvenaria nas áreas que lhes eram destinadas pelos grandes proprietários rurais.

A sequência do romance vai desaguar em triste episódio de violência no campo que, para além de caracterizar uma antiga forma de sociabilidade brasileira, já documentada em estudos seminais, demonstra sua persistência. Uma violência que, há séculos, tem vítimas preferenciais.

Relatório produzido pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) demonstra que a variação da taxa de homicídios em municípios classificados como rurais é substancialmente maior que a variação da taxa de homicídios no Brasil.

No levantamento, que considerou dados de 2017, verifica-se que, no período de dez anos, situado entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios no Brasil cresceu em 50%, ao passo que, no mesmo período, a taxa de crescimento de homicídios nos municípios rurais foi de 75,2%, ou seja, uma variação 25% maior que a registrada no país.

Esses números mostram-se particularmente maiores em municípios rurais caracterizados pela presença de povos originários, comunidades tradicionais, pequenos agricultores e, principalmente, territórios indígenas e projetos de assentamento da reforma agrária, além daqueles localizados na Amazônia Legal, sendo emblemáticos, nesse sentido, os assassinatos de Chico Mendes, Doroty Stang, os massacres de Eldorado do Carajás, Corumbiara, Pau D’Arco, entre outros.

O reconhecimento do caráter estrutural da violência no campo e a persistência dos conflitos fundiários não pode conduzir a uma atitude de naturalização e apatia social e institucional em face desses eventos.

Ao contrário, a persistência das práticas coloniais, em pleno século XXI, deve despertar a indignação da sociedade brasileira, das instituições e da comunidade internacional. Não se pode tolerar e conviver com uma realidade de assassinatos, extermínios, massacres e outras graves violações de direitos humanos no contexto dos conflitos no campo.

No entanto, os últimos anos têm sido particularmente preocupantes: a ausência de políticas públicas eficazes, o desmonte de estruturas administrativas de mediação, tais como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Palmares, e, sobretudo, a utilização do aparato militar estatal, não para deter a ação de milícias privadas e pistoleiros contra a população do campo, mas para exercer o controle das comunidades vulnerabilizadas pela violência, têm gerado resultados catastróficos.

Como demonstra relatório produzido pela Comissão Pastoral da Terra, em 2020 foram registrados 1.576 ocorrências de conflitos por terra, o maior número da série histórica inaugurada em 1985, ou seja, o maior número dos últimos 35 anos, 25% superior a 2019 e 57,5% a 2018.

Episódios recentes apontam para uma tendência de piora desse quadro no ano de 2021. Nos meses de junho e julho ocorreram três execuções de agricultores no estado do Maranhão, além de atentados a tiros contra outras lideranças dos trabalhadores rurais.

Também neste ano, a liderança indígena Maria Leusa Kaba, do povo Munduruku, teve sua casa incendiada na aldeia Fazenda Tapajós, no interior do Pará.

O povo Yanomami, em Roraima, também tem sofrido reiterados ataques por garimpeiros que realizam disparos de armas de fogo e até mesmo lançamento de bombas de gás lacrimogêneo contra as comunidades Maloca do Macuxi, Xirixana de Helepi e, mais recentemente, em Palimiú.

Nesse cálculo também devem ser incluídas situações judicializadas, no contexto de reintegrações de posse, em favor de proprietários de terra, cumpridas com flagrante desrespeito às decisões do Supremo Tribunal Federal que determinaram a suspensão de despejos até dezembro, em razão da pandemia da covid-19.

Além do descumprimento às decisões do Supremo Tribunal Federal, há relatos de truculência e desrespeito aos direitos humanos. O caso da Operação Nova Mutum, realizada pela Polícia Militar do estado de Rondônia e pela Força Nacional são emblemáticos nesse sentido.

Mais de 600 pessoas foram retiradas de suas moradias e alojadas de forma precária em instituição escolar. Há relatos de violência policial, prisões arbitrárias de “lideranças” e torturas, além da contaminação da água utilizada para preparo da alimentação das famílias, causando inúmeros casos de gastroenterite.

Na Bahia, no último dia 31, famílias do assentamento Fabio Henrique, no município do Prado, foram surpreendidas por mais de 20 homens encapuzados e fortemente armados, que atiraram em direção aos trabalhadores que estavam reunidos no momento de uma assembleia.

Além das causas estruturais, resultantes do passado escravocrata e colonial, em que a violência que caracteriza a “dita apropriação primitiva do capital” não se apresenta no Brasil como mera etapa do desenvolvimento do capitalismo, mas como uma realidade persistente, a tendência de agravamento dos conflitos é consequência de um projeto no campo normativo.

Os últimos anos têm se caracterizado pela execução de política que deliberadamente privilegia os interesses do grande capital latifundiário e práticas de grilagem.

Nesse sentido, destaca-se a Medida Provisória 886/2019 que tentou transferir ao Ministério da Agricultura as atribuições inerentes à reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal, terras indígenas e terras quilombolas. Tal dispositivo, mesmo já convertido na Lei nº 13.844/2021, permanece com sua eficácia suspensa por força de decisão do Supremo Tribunal Federal. No entanto, a intencionalidade de transferir tais atribuições a uma pasta voltada precipuamente aos interesses do agronegócio fala por si.

Também deve ser destacada o Projeto de Lei nº 191/2020, apresentado pelo Poder Executivo, que, a pretexto de regulamentar o § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição, busca ampliar a possibilidade de exploração da mineração, turismo, pecuária, exploração de recursos hídricos e de hidrocarbonetos em Terras Indígenas e que, no momento, aguarda a criação de comissão especial pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.

Ainda no conjunto de normas que evidenciam a prevalência dos grandes interesses econômicos nas políticas fundiárias propostas pelo atual governo deve ser incluído o PL 2633/2020 que se encontra em trâmite no Senado Federal.

A proposição é derivada da denominada “Medida Provisória da Grilagem”, proposta pelo governo federal com a finalidade de regularizar ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União. Várias entidades apontam que a mudança busca facilitar que terras públicas desmatadas de modo ilegal se tornem propriedade de quem as utiliza, em detrimento das comunidades originárias e das políticas de preservação do meio ambiente.

O conjunto dos dados apontados pelos relatórios do Ipea e da CPT, somado às recentes ocorrências, evidenciam uma nítida tendência de aumento da violência no campo, favorecida com a execução de políticas deliberadamente nocivas aos interesses dos pequenos agricultores, dos assentados da reforma agrária, das comunidades indígenas e quilombolas e à preservação ambiental.

Uma tragédia anunciada que somente será revertida com mobilização social e ação coordenada das instituições.

É preciso que as forças nacionais e estaduais de segurança parem de agir como braços armados dos interesses econômicos mais poderosos e restaurem seu papel constitucional de garantia da segurança de toda cidadania.

É preciso que o sistema de justiça, em suas decisões, também tenha uma interlocução efetiva com as comunidades vulnerabilizadas.

É preciso que o Brasil cumpra os compromissos assumidos na ordem internacional, no campo dos direitos humanos e da preservação ambiental.

Do contrário, até quando o passado, evocado na tessitura literária de Torto Arado, se converterá num presente infindável? Ou seremos condenados, como nação, a vivenciá-lo, ininterruptamente, num país dilacerado pela violência e pela ganância de poderosos interesses econômicos?

Eis o desafio que nos é imposto.

 

*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito