Fome

Artigo | Os riscos do programa “Comida no Prato” do governo federal

Considerando-se que os doadores não terão nenhum benefício adicional, nova portaria é apenas mais um lance eleitoreiro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Bolsonaro quer se promover como grande doador de alimentos apropriando-se do papel construído ao longo de mais de 30 anos pela sociedade civil e setor privado - Fotos: Scarlett Rocha

Um dos maiores ensinamentos que podemos extrair da luta pelo Direito Humano à Alimentação Adequada é que quem acaba com a fome não são os governos de plantão, mas uma sociedade organizada que decide não mais compactuar com essa chaga milenar que aflige a humanidade desde a sua mais remota origem.

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Para isso se constituem políticas de Estado, como é caso da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), com dotações orçamentárias compatíveis com a magnitude do desafio, não sujeitas ao humor dos seus governantes temporários. 

O Brasil seguiu esse caminho nos primeiros anos deste século e até inseriu na sua Constituição esse direito de todos à alimentação adequada, transformando em leis algumas políticas públicas que se tornaram referências mundiais no combate à fome e desnutrição, como é o caso da merenda escolar com compras da agricultura familiar e do recém extinto Programa Bolsa Família, apenas para citar um par de exemplos.

Para a articulação dessas políticas de SAN, foram também privilegiados certos mecanismos de participação dos atores não -governamentais, com destaque para o Consea, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Esse conselho de Estado reunia representantes do governo, da sociedade civil e setor privado, atores indispensáveis para atacar o problema da fome no país. Com o agravamento da crise econômica a sociedade civil brasileira criou (e reinventou) diversas redes de solidariedade visando doar alimentos aos mais necessitados.

De modo geral, os bancos de alimentos estão prevendo fechar o ano com um crescimento de 30% nas doações sobre o ano anterior, que - por sua vez, já havia experimentado um crescimento de 10% sobre 2019. Nessa conta, porém, não estão somadas as doações particulares e o apoio das igrejas, sindicatos, coletivos e associações. 

Pensando no enorme potencial político decorrente dessas doações, o governo federal promulgou o programa “Comida no Prato” no último dia 11 de novembro, que pretende ser uma espécie de facilitador das doações de alimentos. 

Como se sabe, desde meados dos anos 90, circulam no Congresso Nacional vários projetos de lei visando desonerar e descriminalizar as doações de alimentos por parte de empresas - que tenham como destino entidades sociais devidamente cadastradas.

Já foram propostos diversos substitutivos a esses projetos mas ainda não se logrou aprovar o que seria a “lei do Bom Samaritano” brasileira – à semelhança daquela aprovada pelo presidente Clinton nos Estados Unidos em 1996. 

Para contornar o problema do pagamento de impostos, o Consea propôs, em 2017, um procedimento junto ao Consefaz – Conselho dos Secretários Estaduais  da Fazenda visando a isenção ou o deferimento de créditos do ICMS – Imposto sobre a Circulação sobre as Mercadorias e Serviços, que incidem sobre a doação de alimentos.

Já nessa época, boa parte dos estados brasileiros não cobrava o ICMS sobre alimentos “in natura”, sendo que o imposto recaia basicamente sobre os industrializados. Essa isenção era analisada caso-a-caso e seguia os ritos e os tempos da burocracia federal e dos estados. 

No programa recém-lançado, o governo federal toma para si a RBBA - Rede Brasileira de Bancos de Alimentos – entidade que reúne 168 Bancos de Alimentos (tanto públicos, vinculados à municípios ou estados quanto sob controle da sociedade civil), cujo comitê gestor nunca se reuniu sob o governo Bolsonaro; e oferece a isenção de ICMS, que é um tributo estadual, para o caso das doações.

Mas para efetivar essa doação, a empresa deverá percorrer 8 passos – entre o seu cadastramento e o recebimento do “Selo de Reconhecimento”. A isenção será com base em um convênio que o governo federal mantém com os estados, não tendo qualquer impacto nas receitas fiscais da União.

Já o IPI – Imposto Sobre Produtos Industrializados, que é um tributo federal, continuará a ser cobrado. Tomando-se em conta todas essas limitações e considerando-se que os doadores de alimentos frescos, sejam eles pessoa física ou jurídica, não terão nenhum benefício adicional, a conclusão é que essa nova portaria é apenas mais um lance político-eleitoreiro.

Estima-se que a Rede Brasileira de Bancos de Alimentos deve coletar aproximadamente 100 mil toneladas para doação nesse ano. Com a centralização trazida pelo decreto no. 10.490 de 17/set/2020 e com a Portaria do Ministério da Cidadania nº 708, de 11/nov/2021, essas doações passam a ser consideradas realizações do governo federal.

Trata-se de uma grande ironia, depois de promover a insegurança alimentar em mais de 54% da população em dezembro de 2020 (dados da Rede Penssan) e desmontar aos principais programas de combate à fome, o governo federal quer se promover como grande doador de alimentos apropriando-se do papel construído ao longo de mais de 30 anos pela sociedade civil e setor privado brasileiros. 

*José Graziano da Silva é diretor-geral do Instituto Fome Zero (IFZ) e ex-ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome.

**Walter Belik é diretor do Instituto Fome Zero (IFZ) e professor titular aposentado de Economia Agrícola do Instituto de Economia da Unicamp.

*** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito