Ceará

CONSCIÊNCIA NEGRA

Entrevista | "Democracia racial é um mito, não somos iguais, não existe igualdade entre raças"

"A luta do movimento negro não é pequena, e nosso maior desafio é combater e superar o racismo", afirma Leda Silva

Brasil de Fato | Juazeiro do Norte CE |

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“Fora Bolsonaro Racista” foi o mote escolhido para convocações dos atos no Dia Nacional da Consciência Negra - Renato Knopp

No dia 20 de novembro, dia em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, os brasileiros foram às ruas em diversas cidades realizando ato com o tema "Fora Bolsonaro Racista". Em Fortaleza, de acordo com a organização, a ação reuniu aproximadamente 10 mil pessoas. A iniciativa uniu as pautas do Fora Bolsonaro com as pautas do movimento negro. Em entrevista ao Brasil de Fato, Leda Silva, capoeirista, funkeira e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) no Ceará, afirmou que "construir esse ato foi importante porque esse governo destrói tudo que já construímos, além de ser racista, lgbtfóbico, machista, etc". Confira a entrevista completa.

Brasil de Fato – Para iniciarmos, poderia falar um pouco sobre o surgimento do movimento negro no Ceará?

Os primeiros passos surgiram ao final da década de 1980, por intermédio da igreja, nas comunidades eclesiásticas de base, no Parque Santa Maria. Naquela comunidade existia um padre que anualmente reunia pessoas da própria comunidade formando grupos para refletir sobre a Campanha de Fraternidade. Em 1988, essa campanha teve como tema “Ouvir o clamor desse povo”, onde juntamos os jovens da comunidade para debatermos sobre consciência negra e o que é ser negro na comunidade.

No inicio da década de 90, iniciamos um grupo de capoeira, onde nossa intenção era reunir as juventudes para pensar a consciência negra dentro do contexto da igreja. Anos depois, encerramos nossa articulação com essa mesma igreja, depois de alguns estudos que tivemos sobre ancestralidade, e fomos nos formando politicamente, e então fizemos esse racha com a igreja. Foi nesse momento, que participamos do encontro da Pastoral Operária, em Piauí, e lá conhecemos o Ronaldo Barros, já integrante do MNU da Bahia, e então tivemos o primeiro contato com o MNU.

Então o movimento negro no estado ele nasce a partir desse diálogo, feito entre duas mulheres negras com um participante do MNU. Nesse mesmo encontro marcamos um encontro com o Ronaldo em nosso estado para que pudéssemos fundar o MNU no Ceará. Vale ressaltar que o MNU é construído nacionalmente em mais de 20 estados e atualmente possui 43 anos de existência, sendo 26 anos no estado. Hoje, estadualmente somos mais de 110 filiados.

Brasil de Fato – O MNU tendo 26 anos de existência no Ceará, seria um dos primeiros movimentos a ser fundado aqui?

Não. Antes de sermos o MNU tínhamos um grupo de capoeira, assim como já existia um grupo no Bom Jardim que trazia esse debate. Além disso temos muitas outras referências do movimento negro no Ceará, existe o Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC), formado pelas mulheres negras lá do cariri, o Grupo de União e Consciência Negra, ou seja, existem muitas outras organizações do movimento negro por aqui.

Brasil de Fato – Qual a importância dessas organizações do movimento negro aqui no estado?

Entendemos que precisamos pautar a unidade do povo preto, fazer esse ajuntamento da negrada, se inserindo na periferia e dando condições para que essas pessoas estudem sobre consciência negra, sobre nossos corpos, sobre o falso mito da democracia racial. Então o movimento negro tem essa grande tarefa histórica de organizar o povo negro para que eles entendam qual a nossa luta, e mais que isso, entender que ela é diária e constante, e que somente através da organização e da luta organizada e coletiva conseguiremos combater o racismo, e antes disso, é importante que essas pessoas se reconheçam enquanto pessoas negras.

Brasil de Fato – Sobre o combate ao racismo e esse reconhecimento enquanto pessoa negra, você trouxe um termo que gostaríamos que falasse um pouco mais, que é sobre a falsa democracia racial.

A democracia racial que é pautada em todos os cantos não passa de um mito, não somos todos iguais e não existe igualdade entre as raças. Quando partimos para a prática sabemos que acontece totalmente o contrário, por exemplo, quando entramos na universidade percebemos que o número de brancos e negros são totalmente distintos, quando vamos a qualquer atendimento em equipamentos públicos a grande maioria das vezes somos atendidas por pessoas brancas, quando entramos nas periferias brasileiras sabemos exatamente qual a raça das pessoas que encontraremos lá. Daí precisamos debater sobre essa falsa democracia racial, que ela não existe, que todos nós não somos tratados da mesma forma em qualquer lugar.

Brasil de Fato – Gostaríamos que falasse um pouco sobre as principais pautas do movimento negro aqui no estado.

A nossa luta não é pequena, pelo contrário, ela é bastante grande. Uma das nossas maiores questões é o combate e superação do racismo, e nesse sentido falamos sobre as cotas, não basta somente conquistar a politica de cotas, mas fazer com que a mesma seja implantada. Não adianta somente lutar para que ela seja conquistada e depois abandoná-la, a luta começa na conquista, porque o mais difícil é fazer com que ela seja implantada.

Recentemente o governo do estado implantou o sistema de cotas para os concursos públicos, onde até então era voltada somente para dentro das universidades. E agora com essa grande conquista teremos também uma porcentagem de vagas de concursos para as cotas raciais. Outra grande luta que buscamos travar diariamente é fazer com que mais jovens negros adentrem as universidades e tenham acesso a uma educação no nível superior que seja pública, gratuita e de qualidade.

Buscamos também a formação de grupos de pessoas negras, para que se formem politicamente sobre quem somos, sobre nossos corpos e nossas ancestralidades. Além disso, buscamos que mais jovens negros estejam inseridos no mercado de trabalho, e menos inseridos no sistema carcerário brasileiro, e sabemos que todo esse sistema é maquinado pelo racismo estrutural.

Brasil de Fato – Durante muito tempo, existia o discurso de que não existe negro no Ceará. Mas hoje, as pessoas já se reconhecem mais como negros, e afirmam que existe negro no Ceará?

Pensando o MNU para responder, sim. Quando fundamos o MNU, tínhamos apenas três pessoas envolvidas na sua construção em todo o estado. Se olharmos hoje, onde já temos mais de cem pessoas dentro do MNU, podemos ver que esse número cresceu por conta da quantidade de pessoas que foram se reconhecendo enquanto pessoas negras e se somaram na luta coletiva. E com isso ganhamos grandes desafios. Sabemos que a maior parte das pessoas negras se encontram nas periferias, e como fazer para termos acesso a essas localidades e não ficar apenas nas universidades? Precisamos acessar as universidades para termos o saber e precisamos também estar com o pé nas periferias que é onde reencontramos os nossos.

Quando nos compreendemos enquanto pessoa negra, buscamos nos juntar com os demais e ir em busca da defesa de nossas bandeiras de lutas.

Brasil de Fato – Quais conquistas do movimento negro você poderia apontar ao longo de toda trajetória de luta dos movimentos negros no nosso país?

O Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, foi uma conquista do movimento negro. A data escolhida faz referência a data de morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo da história brasileira. Uma outra conquista é a identidade étnico-racial. Hoje vemos a juventude assumindo seus cabelos black e reafirmando “Sou preto”. Outra conquista é nossa pauta incluída na legislação, como a lei de cotas implantadas nas universidades e nos concursos públicos.

Outra lei importantíssima é a Lei nº 7716/1989 – Lei Caó, que tipifica racismo como crime. E a lei nº 10639/2003 – Ensino de Cultura Negra, que obriga as instituições de ensino a contarem a história do povo negro e também resgatar os nossos valores, memórias, tradições e literatura. Então todos esses pontos foram conquistas da luta do movimento negro, o nosso país é um país indígena, construído por pretas e pretos em beneficio de brancos.

Porém, ainda que com todas essas importantes conquistas, o movimento negro está longe de alcançar seus objetivos. Ainda vivemos em uma sociedade altamente racista, com pessoas que ainda creem na igualdade de raças em nosso país, fechando os olhos para o racismo cotidiano que podemos observar em todos os lugares, onde tudo sempre é menos para os pretos e mais para os brancos.

Brasil de Fato – Quais as formas das pessoas poderem conhecer e participar do movimento negro?

No MNU filiamos apenas pessoas pretas, porém, a luta antirracista e a luta de combate ao racismo não é dever somente das pessoas pretas, mas também das pessoas brancas, afinal, os brancos de hoje não têm culpa do que seus brancos ancestrais fizeram com nosso povo. Então pessoas não negras podem chegar, conhecer e colaborar no MNU, mesmo entendendo que essas pessoas ainda se beneficiam com esse racismo estrutural, mas temos consciência que essa luta é coletiva e que todos podem fazer parte dela.

Brasil de Fato – No 20 de novembro, o Fora Bolsonaro se uniu ao Movimento Negro para levantarem essas vozes na rua. Qual a importância dessa junção nessa caminhada?


Movimento Negro se uniu aos atos Fora Bolsonaro e foram às ruas no 20 de novembro / Renato Knopp

Para nós do movimento negro é de grande importância, muito embora precisaremos fazer em algum momento esse recorte de que estamos lá enquanto movimento negro lutando sobretudo pela pauta racial. E construir esse ato foi importante porque esse governo destrói tudo que já construímos, além de ser racista, lgbtfóbico, machista, etc.

Nesse 20 de novembro o movimento negro foi as ruas reviver Zumbi dos Palmares, e nesse sentido precisamos mostrar isso em meio aos atos pelo Fora Bolsonaro.

Brasil de Fato – Falando sobre o governo Bolsonaro, você poderia apontar quais os desafios do movimento negro desde o início desse mandato?

O primeiro desafio seria das pessoas se colocarem enquanto pessoas negras. O presidente em diversas oportunidades afirmava não existir racismo nem pessoas negras no Brasil, reduzindo tudo isso a miscigenação. Precisamos colocar para fora que nem ele, enquanto pessoa, e nem todo o seu projeto de governo nos representa, se mostrando ser um grande atraso, não somente para o movimento negro, mas para todo o povo brasileiro.

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Edição: Francisco Barbosa