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Barão de Itararé, o Almirante Negro e a história que se repete

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Barão de Itararé (ao centro) na companhia de Manuel Bandeira em 1966 - Arquivo Nacional
Este sábado marca os 50 anos da morte do “Barão de Itararé”, pai do jornalismo brasileiro de humor

O jovem estudante de medicina, Apparício Fernando, puxou a “Passeata da Rolha”, uma reação aos mandos e desmandos do governador gaúcho Borges de Medeiros no começo do século passado, censurando jornais e proibindo reuniões públicas. Centenas de manifestantes saíram às ruas de Porto Alegre com rolhas nas bocas. O líder do protesto acabou preso mas não perdeu a petulância. Muito pelo contrário. Largou a medicina, mandou-se para o Rio de Janeiro e virou jornalista.

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No Rio dos anos 1920, livrou-se do “Fernando”, deixou na estrada o “Brinkerhoff”, seu primeiro sobrenome, fundiu o “Apparício” com o “Torelly”, última seção da sua graça, e passou a assinar “Apporelly”. Não por muito tempo. Criou seu próprio jornal e concedeu a si próprio um título de nobreza, virando barão. Tornou-se celebridade nacional. Algo para lembrar neste sábado (27), que marca o cinquentenário da morte do “Barão de Itararé”*, pai do jornalismo brasileiro de humor.

Cinco décadas após a partida do protagonista, seu humor continua afiado e válido para coisas que aconteceram bem depois daquele 27 de novembro de 1971, quando morreu em seu apartamento no bairro carioca de Laranjeiras. Ainda corta com a lâmina da irreverência os descaminhos do autoritarismo à brasileira. Querem um exemplo? “Anistia é um ato pelo qual o governo resolve perdoar generosamente as injustiças e crimes que ele mesmo cometeu". Perfeito, não? Sobretudo se pensarmos no indulto aos torturadores, estupradores e assassinos de 1964.

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Como acontece com aquelas figuras maiores do que a vida, a jornada do Barão mistura a realidade com a lenda. Teria nascido a bordo de uma diligência que vinha do Uruguai para o Brasil. Mas consta como registrado na cidade de Rio Grande, no Sul gaúcho.

Desde cedo, podia levar a pior mas não perdia a piada. Na faculdade de medicina, o professor empunhou um fêmur e perguntou-lhe:

-- Conhece este osso?

Curvando-se cerimoniosamente, o aluno Torelly estendeu a mão, apertando o fêmur:

-- Muito prazer em conhecê-lo!

Antes de autoconsagrado barão, Torelly trabalhou em O Globo e A Manhã, jornal de Mário Rodrigues, pai do futuro dramaturgo Nelson Rodrigues. Saiu de “A Manhã” e fundou o satírico “A Manha”, sem o til porém com muito mais malícia. “Um órgão de ataques... de riso” era seu bordão. Ali, inventou de tudo: um duplo do presidente Washington Luis que “assinava” uma coluna como “Vaz Antão Luis”, apelidos para os ministros Gustavo Capanema (Capa Anêmica) e Góes Monteiro (Gás Morteiro), e foi se autoconcedendo títulos de nobreza, acabando como Sua Majestade Itararé I, o Brando – onde enfiou um cacófato na junção do artigo com o adjetivo.

Fazendo jus à galhofa, o nome “Itararé” veio de uma batalha que não houve na Revolução de 30. Seguindo o deboche, implantou a União das Repúblicas Socialistas da América do Sul, as URSAS, dirigidas pelo monarca Itararé I.

Comunista, Torelly acabou preso depois da fracassada revolta vermelha de 1935. Durou um ano e seria a mais longa das suas prisões. Em 1947, quando o PC gozou de breve período de legalidade, elegeu-se vereador com o lema “Mais água. Mais leite. Mas menos água no leite!” Porém, em 1948, o partido foi posto na clandestinidade e todos seus 18 vereadores cassados. Torelly lamentou: “Um dia é da caça...os outros da cassação”.

Um episódio do barão nos anos 1930 estabelece um arco com o presente. Por algumas semanas, ele deixou o "A Manhã" e foi pilotar o Jornal do Povo. Lá, começou a publicar em capítulos uma história da Revolta da Chibata, ocorrida duas décadas antes, quando os marujos negros se rebelaram contra a prática dos oficiais de chicoteá-los. Nela, pontificava João Cândido, outro gaúcho, o “Almirante Negro”, que João Bosco e Aldyr Blanc cantariam em “O mestre-sala dos mares”.

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Após liderar revolta no Rio, João Cândido foi expulso da Marinha e preso por dois anos na Ilha das Cobras / Reprodução

A resposta veio rápida. Oficiais da marinha sequestraram Torelly em Copacabana. Disseram que iam matá-lo mas se contentaram em dar-lhe uma surra, raspar-lhe a cabeça e tirar-lhe a roupa. Foi abandonado nu em um matagal. Ao voltar à redação, pendurou na sua porta seu famoso aviso “Entre sem bater”.

Expulso e atirado no fundo de uma masmorra cavada na rocha, João Cândido só começou a ser reconhecido em 2008 durante o governo Lula. Mas a Marinha não o aceita mesmo distante um século daquela rebelião contra a violência e o racismo.

É uma história que se repete. Em 2021, o comando da força rejeitou a iniciativa do Senado de incluir João Cândido no “Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria”, argumentando que ele “quebrou a hierarquia” – quebram-se ossos mas jamais a hierarquia.

Mas a inserção foi aprovada e agora vai para o exame da Câmara dos Deputados. Noventa anos atrás, o barão tocara em uma ferida aberta ainda hoje.


 

*Para saber mais sobre a figura vale recorrer a livros como “Barão de Itararé- herói de três séculos, de Mouzar Benedito (Expressão Popular); “As duas vidas de Apparício Torelly”, de Cláudio Figueiredo (Record); “Barão de Itararé”, de Leandro Konder (Brasiliense); e “Barão de Itararé”, de Ernani Ssó (Tchê).

**Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017). Leia outras colunas.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Vivian Virissimo