Coluna

Limbo meritocrático

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Para o meritocrata, a sociedade ideal seria composta apenas pelos “melhores”, que sobreviveriam aos mais fracos, e, com base no seu talento inato, assegurariam para si um lugar ao sol - C_Fernandes/Getty Images
São justamente esses “alguns” que, ao cabo, logram seu lugar ao sol

Por Paulo Brondi*

Lembro-me vivamente de um debate nas eleições de 2014, quando o então candidato Aécio Neves disse que desejava um país sem o PT, em que reinasse a meritocracia. Logo ele, posto na política pelas mãos do vovô Tancredo Neves – este, sim, um grande brasileiro e um verdadeiro democrata, ao contrário do neto.

Para o meritocrata, a sociedade ideal seria composta apenas pelos “melhores”, que sobreviveriam aos mais fracos, e, com base no seu talento inato, assegurariam para si um lugar ao sol. À gentalha, à patuleia restante, sobraria o limbo. Michael Sandel, citando Max Weber, escreveu em seu livro “A tirania do mérito”: “Os afortunados raramente se contentam com o fato de serem afortunados. Além disso, necessitam saber que têm o direito à boa sorte. Desejam ser convencidos de que a ‘merecem’ e, acima de tudo, que a merecem em comparação a outros. Desejam acreditar que os menos afortunados também estão recebendo o que merecem”.

O raciocínio meritocrático resgata, de maneira mais recatada e polida, a “teoria” do “darwinismo social”, nascida nos fins do século XIX – da pena de expoentes do neoliberalismo como Herbert Spencer, que enfatizava que a vida e a própria sociedade seriam campos de luta concorrencial, em que apenas os mais aptos teriam condições de prosseguir. Nenhuma teoria, obviamente, há nessa releitura e adaptação ridícula do pensamento do grande Darwin; este próprio tinha absolutamente outra visão acerca da sociedade.

O concurso público encarna muito do ideal meritocrático. Aprovados são apenas os “melhores” em cada certame. Em regra, e por alguma dessas coincidências inexplicáveis, os “melhores” são de classe média, brancos, com sólida formação educacional e filhos de pais com carreiras de relativo sucesso. Essa é a porção majoritária, sejamos francos, que povoa as carreiras da magistratura do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Polícia Civil.

Este que vos escreve, não devo mentir, faz parte dessa porção. Não que a aprovação não traga ao aprovado desafios de monta, mas, convenhamos e sejamos francos, para alguns o caminho é muito pedregoso. São justamente esses “alguns” que, ao cabo, logram seu lugar ao sol.

Portanto, a nós caberá, em um futuro próximo, refletir acerca do futuro de nossas carreiras: estarão elas reservadas apenas a alguns privilegiados de nascimento e de criação?

Pois eis que, em boa hora, começam algumas carreiras em diferentes estados do Brasil a adotar um – ainda tímido – sistema de cotas. Elas, as cotas, tão combatidas em passado até recente, que têm dado tantos bons frutos à sociedade desde sua instituição como política pública há mais de uma década.

É também hora de mudar a própria concepção de elaboração dos certames. Foi com muito gosto que li que o edital de concurso para defensor público na Bahia contemplava uma bibliografia com estas obras, dentre outras: Estado Pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis (Rubens Casara); Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos (Lélia Gonzalez); Estado de exceção (Giorgio Agamben); Racismo estrutural (Silvio de Almeida); Contra-história do liberalismo (Domenico Losurdo).

Retorno a Sandel sobre o pensamento meritocrático:

“Esse modo de refletir gera poder. Incentiva as pessoas a pensar em si mesmas, como responsáveis por seu destino, não como vítimas de forças além de seu controle. Mas também tem um lado negativo. Quanto mais nos enxergamos como pessoas que vencem pelo próprio esforço e que são autossuficientes, menos provável será que nos preocupemos com o destino de quem é menos afortunado do que nós. Se meu sucesso é resultado de minhas próprias ações, o fracasso deles deve ser culpa deles. Essa lógica faz a meritocracia ser corrosiva para a comunalidade. Uma noção muito fervorosa de responsabilidade pessoal em relação ao nosso destino torna difícil nos colocarmos no lugar de outras pessoas”.

 

*Paulo Brondi é promotor de justiça e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


 

Edição: Anelize Moreira