Coluna

Ela, Nós, Ele Não! Marília Mendonça Viverá

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Marília brilhou em um ambiente dominado por homens. Advinda do Estado de Goiás, lugar historicamente machista e misógino, fora da centralidade midiática do país - Wikimedia Commons
Ousou ao colocar em prática o que nós feministas sempre dissemos: lugar de mulher é onde ela quiser

Por Daisy Caetano, Damiana Sousa e Mara Carvalho*

 

Há um mês fomos surpreendidas com a trágica notícia da morte da cantora e compositora Marília Mendonça, de 26 anos. Marília brilhou em um ambiente dominado por homens. Advinda do estado de Goiás, lugar historicamente machista e misógino, fora da centralidade midiática do país, ela quebrou padrões estéticos e artísticos. Ousou ao colocar em prática o que nós, feministas, sempre dissemos: lugar de mulher é onde ela quiser, sendo merecedora de nossas homenagens para sempre.

Para nós, mulheres defensoras de direitos humanos todas as mortes nos comovem. Todas as vezes que recebemos notícias de mortes nos entristecemos. E este sentimento é intensificado a cada vez que a morte é personalizada em uma história de vida. Felizmente, Marília partilhou a vida dela com o povo brasileiro.

Com suas letras, seus posicionamentos, seu carisma, seu sorriso ela embalou momentos marcantes. Com suas ações ela nos envolveu na sua história de vida que, antes da fama, foi a história da classe trabalhadora, de quem frequentou a periferia, a escola pública e percebia que havia ainda muita coisa para ser modificada. Como mulher, lutou contra a gordofobia, esbravejou para que não controlassem o seu corpo, se posicionou contra o machismo e a misoginia.

Horas após a morte precoce e inesperada, a dor que nos tomou foi dilatada pela misoginia, pela arrogância acadêmica em função de algumas manifestações e inúmeras tentativas – em vão – de minorar sua importância na vida das mulheres. Assistimos, resistentes, aos ataques que tentaram manchar a trajetória de Marília. Nós, feministas, sabemos que Marília Mendonça foi atacada por ser mulher. Uns tentaram reduzir sua história à sua variação de peso, outros quiseram posar de desconhecedores da sua fama, outros mais esbravejaram com a falácia de que ela era mais só mais uma cantora representante da indústria cultural.

Todos estes intentos são frustrados com fatos. Marília já era compositora antes mesmo de que pudéssemos ver o seu sorriso nas canções. Quando estourou como cantora foi categórica em sua luta cotidiana contra o estereótipo visual que buscavam lhe impor. Ela foi a cantora recordista mundial do YouTube com 3,3 milhões de acessos simultâneos em uma live em 2020. E essa foi a cantora que dois anos antes falou em alto e bom tom #EleNão, ressaltando a importância das mulheres se posicionarem contra o retrocesso que o atual presidente representa. Na oportunidade, ela reconheceu suas batalhas como mulher no meio sertanejo, um “mercado completamente machista”, e convocou as mulheres para que repensassem o apoio ao então candidato à presidência da República, por ser Marília “contra qualquer tipo de preconceito e a favor do amor”.

Marília extrapolou os limites sociais que são impostos a nós, vestiu- se como quis, escreveu, cantou, deu vida, corpo e voz às mulheres em suas letras. Sendo humanas, nas letras de Marília não somos belas, recatadas e do lar. Somos trabalhadoras, amantes, esposas, namoradas, podemos trair nossas parcerias, nos embriagar, brigar, chorar e sermos felizes também! Marília deu a nós a oportunidade de ser gente em suas letras, de não sermos previsíveis nem obedientes, de sermos contraditórias, de existirmos dentro de nossas vidas.

Ela sabia que chocou o mercado sertanejo quando escreveu letras em que as mulheres se sentiam representadas. Ela conheceu e expressou as agruras de ser mulher e expressou em suas letras a necessidade do respeito, da atenção, do amor às mulheres, inclusive entre nós mesmas, já que também combateu a rivalidade feminina com músicas e atitudes.

Marília foi forte, falou e cantou o nosso cotidiano. Foi filha, mãe, companheira, amiga, e ao ouvi-la percebemos que ela viveu e refletiu sobre cada uma dessas condições e suas contradições. Mas ela era mulher, e para ser mulher nesta sociedade é difícil até para morrer. Somos culpadas, expostas, tachadas e julgadas até depois de mortas. Duvidam de nosso talento, de nosso comprometimento, de nosso potencial. Não suportam que sejamos reconhecidas e amadas. E nem o sucesso de Marília a livrou disso tudo após sua morte.

Com julgamentos recheados de machismo, misoginia e preconceito à música sertaneja buscaram provar intelectualidades mudas. Não bastou o corpo de Marília ter perdido todos os sinais de vida na queda daquele avião, tentaram matá-la simbolicamente também, com discursos falaciosos que buscavam reduzi-la a apenas mais uma mercadoria do segmento sertanejo.

Apagaram o fato de que ela se posicionou contra o presidente aliado da bancada do agronegócio, de que ela clamou contra os preconceitos, de que ela anunciava a necessidade das mulheres serem felizes, exercendo o que lhes proporciona felicidade. Não quiseram saber que ela apoiava redes antirracistas para auxiliar jovens a entrar na faculdade, solicitando sigilo sobre este fato. Ignoraram que a live recordista do YouTube foi feita de sua casa localizada na periferia de uma cidade da região metropolitana de Goiânia. Não ouviram quando foi dito sobre os inúmeros shows com entrada franca feitos por ela. Eles nem sabiam que ela pretendia se aposentar aos 30 anos porque trabalhou desde os 12 para ajudar a mãe em casa e por não concordar com o ritmo frenético de shows, entrevistas e viagens, ou seja, por não achar necessária a busca incessante por fama e ganhos milionários, que coloca a vida em segundo plano.

O povo brasileiro chora a morte de Marília Mendonça e a mantém viva escutando suas músicas. E enquanto há alguns segmentos preocupado em diminuir a imensidão popular que Marília Mendonça representa para a classe trabalhadora brasileira, nós estamos sentindo saudades. Há um sem-número de homens brancos que se reivindicam progressistas mas estão envoltos em arrogância e machismo e isso os impede de enxergar como Marília era um fenômeno popular que dialogava com a população, como foi importante para nós, feministas e antifascistas o seu posicionamento.

Estamos órfãs de sua alegria, mas sobretudo de seu posicionamento. Quem vai estar conosco a partir de agora quando já gritamos #BolsonaroNuncaMais? Diversas cantoras do ambiente sertanejo declaram dar seguimento ao seu trabalho e canções. Mas será que teremos uma representação popular como foi Marília, dessas que conversam com a língua do povo e tem coragem de se posicionar? Manter vivo o legado de Marília Mendonça é seguir seu exemplo de luta contra todas as formas de discriminação, opressão e violência contra as mulheres. Ao mesmo tempo, seguimos acreditando em um feminismo popular, que dialogue com Marília, com as rádios, com o transporte público, afinal a petulância que não toca o chão, o ponto de ônibus, a classe trabalhadora não tem compromisso com a totalidade, com a compreensão e transformação real da sociedade, muito menos com a emancipação das mulheres da classe trabalhadora.

 

*Daisy  Caetano é Goiana, feminista marxista, doutoranda  em Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás - UFG; Damiana Sousa é Nordestina, feminista, mestra em Geografia pela Universidade Federal de Goiás - UFG; Mara Carvalho é Nordestina, mestra em Direitos Humanos pela  Universidade Federal de Goiás - UFG, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais IPDMS, membro da executiva da ABJD.

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Anelize Moreira