Guerra Fria?

Na sua "Cúpula da Democracia", EUA articulam aliados em movimento contra a China

Pesquisadores afirmam que evento organizado por Biden tem como objetivo isolar Rússia e China

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Biden busca reunir seus aliados na disputa contra a China - Somodevilla / Getty Images via AFP

Os Estados Unidos, com evento batizado como “Cúpula da Democracia” a ocorrer nos dias 9 e 10 de dezembro, afirmam promover uma festa da democracia. De acordo com os EUA, o objetivo é discutir com membros de governos, sociedade civil e iniciativa privada três "temas chave": a defesa contra o autoritarismo, o enfrentamento e combate à corrupção e a promoção do respeito aos direitos humanos. Em 2022, o objetivo é realizar a mesma reunião, mas dessa vez de maneira presencial.

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A controvérsia ocorre porque apenas a Casa Branca decide quem entra e quem fica do lado de fora da comemoração. Barrada no baile, a China não gostou de ficar de fora e publicou documento com críticas ao sistema político estadunidense.

Foram convidados 110 países para a Cúpula e a lista incluí países com histórico de assassinato de lideranças sociais, como Colômbia, Brasil e Israel, e outras nações cujo histórico político recente é controverso. As Filipinas, governadas por Rodrigo Duterte, foram convidadas. A Organização das Nações Unidas (ONU) já pediu a Duterte o fim dos assassinatos extrajudiciais cometidos por seu governo sob a justificativa de uma “guerra às drogas”. 

Além de não incluir a China, a Casa Branca convidou Taiwan, ilha que afirma ser um país independente, mas Pequim considera parte de seu território. A soberania desse território é um ponto de fricção na política internacional. Os Estados Unidos vendem material bélico para a ilha e os chineses costumam sobrevoar a região com aviões militares. 

Outro incidente recente também colaborou com o aumento da tensão entre os dois países: os EUA informaram que irão realizar um boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022. 

Pequim reagiu. O Conselho de Estado da China publicou o documento "China: Democracia que funciona". O texto destaca que os chineses desfrutam de "liberdade de expressão, de imprensa, reunião, associação, processão, demonstração e crença religiosa”, e que os direitos humanos são “totalmente respeitados e protegidos” no país. 

O documento afirma que o modelo político da China “evita a fragilidade dos sistemas partidários de estilo ocidental” e que Pequim não seguiu o “caminho estabelecido” do Ocidente e de seu modelo de democracia. 

A Rússia também não foi convidada para a Cúpula e seu embaixador nos EUA, Anatoly Antonov, publicou artigo com o embaixador chinês, Qin Gang, com críticas ao evento promovido por Biden. Na revista The National Interest, a dupla diz que o evento dos EUA é um “evidente produto de sua mentalidade de Guerra Fria”. O texto destaca que a promoção da "democracia" está ligada com guerras e conflitos ao redor do mundo e cita os bombardeios na antiga Iugoslávia, intervenções no Iraque, Afeganistão e Líbia. 

“Nenhum país tem o direito de julgar o vasto e variado cenário político mundial por um único critério, e fazer com que outros países copiem seu sistema político por meio de uma revolução colorida, mudança de regime e até mesmo o uso da força”, diz o texto dos diplomatas na National Interest


Em celebração do centenário do Partido Comunista, Presidente Xi Jinping faz discurso destacando o desenvolvimento do socialismo / Noel Celis / AFP

Para o professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Paulo Velasco, a Cúpula da Democracia aposta em uma visão "anacrônica e pouco funcional" da diplomacia já que divide o mundo entre "amigos e inimigos" em uma época em que as grandes questões da política internacional, como a emergência climática, precisam de uma abordagem multilateral. O pesquisador questiona o mote do evento.

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“A bandeira da democracia sempre foi usada de maneira muito ‘a la carte’ pelos EUA. Sempre de maneira muito pontual, quando interessa, para atender a determinadas finalidades políticas. Tem sido assim pelo menos desde o pós-Segunda Guerra Mundial (1945), quando tivemos uma ordem mundial mais americana, com a democracia sempre utilizada como instrumento, uma desculpa, inclusive para patrocinar intervenções e atos muitíssimos abjetos ao longo da história”, diz Velasco ao Brasil de Fato. 

Presenças e ausências

O professor da UERJ diz que o objetivo do evento é “dificultar o avanço da China” e destaca algumas particularidades da lista de convidados elaborada pela Casa Branca: a presença do Paquistão, “um aliado chinês no contexto da Ásia”, e também o convite feito à Índia. Embora Narendra Modi, o primeiro-ministro indiano, não possa ser considerado o mais democrático dos líderes, a Índia é um importante parceiro na hora de enfrentar Pequim.

Membro do Instituto Confúcio e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos, Marcos Cordeiro avalia que a Cúpula da Democracia tem como objetivo “criar constrangimento para seus dois adversários estratégicos, no caso o governo da China e o governo da Rússia”.

Cordeiro destaca que há muito da disputa nacional local dos Estados Unidos no evento organizado por Biden já que o presidente democrata busca se diferenciar do republicano Donald Trump. Todavia, o pesquisador destaca que os democratas não podem aparentar serem “cúmplices” de Pequim por conta do sentimento anti-China que avança nos Estados Unidos.

De acordo com pesquisa do Pew Research Center, apenas 20% da população dos Estados Unidos tem uma visão favorável à China. A desconfiança com os chineses, contudo, não é uma exclusividade dos estadunidenses. A mesma pesquisa foi realizada em 17 países e em apenas dois deles, Grécia e Singapura, a visão favorável da China supera a visão desfavorável. Entre as 17 nações pesquisadas, a mediana de visão favorável dos EUA é de 61%, enquanto a mediana de visão favorável da China é de 27%.

Cordeiro, que também é professor da Unesp, diz que embora Pequim e Washington tenham trocado farpas e declarações fortes, suas economias são mutuamente dependentes e um cenário similar ao da Guerra Fria não deverá se repetir.

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“Diferentemente da União Soviética, que estava apartada da economia mundial, a China é hoje o principal parceiro comercial da maior parte dos países do mundo, mesmo para muitos países da América do Sul. Ela também é o maior parceiro comercial dos Estados Unidos. Desde 2019, quando se intensifica essa disputa ideológica, quando começam a constranger a China, inclusive com mentiras, o comércio bilateral entre os dois países só tem aumentado”, destaca o pesquisador ao Brasil de Fato.

Edição: Arturo Hartmann