Coluna

53 anos do AI-5

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Seria maravilhoso que pudéssemos hoje, mais de cinco décadas passadas, recordar essa data como um pesadelo que se foi - Wikimedia Commons
Relembrem o AI-5. Ditadura, nunca mais

Por José Carlos Garcia*

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Na última segunda-feira, dia 13 de dezembro, celebramos uma das datas mais trágicas da história do Brasil: os 53 anos da edição do Ato Institucional n.º 5. “Golpe dentro do golpe”, a edição do AI-5 representou uma escalada até então sem precedentes na repressão política do regime de 1964.

Até aquele momento, oposição e movimentos sociais ainda conseguiam algum espaço de respiro, se não democrático, ao menos de resistência. A Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, é um bom exemplo. Já ocorriam censura, restrições de direitos, prisões arbitrárias, ações policiais violentas, como o assassinato do estudante Edson Luís no Restaurante Calabouço, no Rio, em 28 de março daquele ano, mas a ação repressiva ainda se fazia minimamente conter.

Em 2 de setembro de 1968, o deputado federal Márcio Moreira Alves, adversário do governo João Goulart e, de início, apoiador do golpe, mas que passara a denunciá-lo após a edição do AI-1, fez contundente discurso no plenário da Câmara dos Deputados em reação à invasão da Universidade de Brasília pela Polícia Militar, no qual aludia à truculência e à tortura praticadas por agentes do governo. Pregava, ainda, o boicote das famílias brasileiras aos desfiles do 07 de setembro que se avizinhava, e um absoluto afastamento da população civil em relação às estruturas militares. “Esse boicote”, disse o deputado, “pode passar também às moças, aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje no Brasil com que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa aqueles que vilipendiam a Nação”.

O discurso foi tomado pela cúpula militar como uma afronta, um ataque inaceitável às Forças Armadas, e o governo enviou ao Congresso pedido de licença para processar o deputado Moreira Alves. O pedido, entretanto, foi negado pela Câmara, inclusive com o voto de 105 parlamentares da ARENA – Aliança Renovadora Nacional, partido do regime. Este teria sido o estopim que deflagrou a edição do AI-5.

Sua aprovação foi decidida em reunião do Conselho de Segurança Nacional no dia 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, com a presença do presidente da República, general Costa e Silva; do vice-presidente, Pedro Aleixo; dos ministros da Marinha, almirante Augusto Rademaker; do Exército, general Lyra Tavares; das Relações Exteriores, o banqueiro Magalhães Pinto; da Fazenda, Delfim Netto; dos Transportes, Mario Andreazza; da Agricultura, Ivo Arzua; do Trabalho, coronel Jarbas Passarinho; da Saúde, Leonel Miranda; da Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Souza e Mello; da Educação e Cultura, Tarso Dutra; de Minas e Energia, Costa Cavalcanti; do Interior, Albuquerque Lima; do Planejamento, Hélio Beltrão; das Comunicações, Carlos Simas; da Justiça, redator original do texto, Gama e Silva; do chefe do Serviço Nacional de Informações – SNI, general Emílio Médici; do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Orlando Geisel; do chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Adalberto de Barros Nunes; do chefe do Estado-Maior do Exército, general Adalberto dos Santos; do chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Alberto Huet; do chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, Rondon Pacheco; e do secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, Jayme Portella.

A reunião, cuja ata, transcrição e áudio integral podem ser acessados por qualquer um, produziu pérolas do autoritarismo brasileiro, algumas das quais amplamente conhecidas, outras nem tanto. O então chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Alberto Huet, disse, por exemplo, que “o fechamento do Congresso pura e simplesmente seria válido, bem como a reformulação do poder Judiciário, onde pontificam ainda juízes do governo deposto em março de 64”. Talvez a mais conhecida de todas seja a fala do ministro do Trabalho de Costa e Silva, Jarbas Passarinho, quando, refutando eventuais pudores frente ao texto do AI-5, mandou “às favas todos os escrúpulos de consciência”, logo após admitir expressamente que sua adoção implicava categoricamente uma ordem ditatorial (o que se pode ouvir aqui por sua própria voz). Esta passagem não deixa de ser significativa em tempos em que a própria expressão “ditadura” vem sendo questionada sobre sua aplicação àquele regime – não aos ditadores presentes na reunião, que tinham absoluta clareza sobre o que faziam e seus desdobramentos.

De todos os presentes à reunião, apenas o vice, Pedro Aleixo, foi contra a edição do ato, não propriamente por grandes discordâncias de conteúdo, mas por razões formais: defendia a decretação do estado do sítio. Coube a uma comissão formada por Gama e Silva, Rondon Pacheco e Tarso Dutra dar a redação final ao infame documento, que seria apresentado por Gama e Silva em cadeia nacional de rádio e televisão, ainda na noite do dia 13.

O AI-5 dava plenos poderes ditatoriais ao presidente da República. Ele podia fechar o Congresso Nacional, as assembleias legislativas e as câmaras de vereadores, decretar a intervenção em estados e municípios, sem quaisquer das limitações constitucionais, suspender direitos políticos, cassar mandatos, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade servidores, empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, ou mesmo agentes públicos protegidos por vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, como os juízes, vez que aquelas garantias constitucionais também estavam afastadas.

A suspensão do habeas corpus para crimes políticos ou contra a segurança nacional, prevista no seu art. 10, era das medidas mais draconianas e atrozes, sozinha era capaz de evidenciar, ao mais néscio e imbecil dos observadores, que se tratava inequivocamente de uma ditadura. Mas ela veio acompanhada, ainda, da proibição de discussão judicial de qualquer ato praticado com base nele ou em seus atos complementares, bem como de seus efeitos, prevista no art. 11. Desnecessário desenhar mais.

A consequência imediata da publicação do AI-5 foi o fechamento do Congresso Nacional, que só voltaria a ser reaberto em outubro de 1969, para o simulacro de eleição do novo ditador, general Emilio Garrastazu Medici. Na mesma noite de 13 de dezembro, veio a prisão do ex-presidente Juscelino Kubitschek – de quem muito se poderia dizer, menos que fosse comunista – quando saía de perigosa atividade subversiva: havia sido paraninfo de uma turma de engenharia cuja cerimônia de formatura ocorria no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. No dia seguinte, Carlos Lacerda, político de direita e conspirador de primeira hora a favor do golpe. As cassações e prisões arbitrárias seguiram-se indefinidamente, atingindo, até o fim de 1968, outros dez parlamentares.

A segunda lista de cassações veio em 19 de janeiro de 1969: dois senadores, 35 deputados federais, três ministros do Supremo Tribunal Federal (Hermes Lima, Vitor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva) e até mesmo um ministro do Superior Tribunal Militar, Peri Constant Bevilacqua, acusado de “dar habeas corpus demais”. Ao todo, 333 pessoas tiveram seus direitos políticos cassados – dentre os quais 78 deputados federais, 05 senadores, 151 deputados estaduais, 22 prefeitos, 23 vereadores.

A edição do AI-5 também abriu caminho para que os mais odiosos meios, que eram ilegais até mesmo para a legislação da ditadura, fossem usados pelo regime contra seus opositores. Sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver nunca foram práticas “legalizadas” por qualquer norma jurídica durante o regime de 64. Eram e continuam sendo crimes, simplesmente. A combinação de censura, cassações de mandatos, intervenções no Judiciário, suspensão do habeas corpus e da possibilidade de anular atos praticados com base nele e a disseminação de prisões arbitrárias, contudo, fez a tortura e o funcionamento de todo o aparato de terror da ditadura possível e confortável aos torturadores. O AI-5 não legalizou a tortura ou o assassinato, antes viabilizou-os como instrumento por excelência da repressão.

A sinistra celebração pela qual passamos na última segunda-feira não é, lamentavelmente, simples rememoração de um passado a não ser repetido. Dá-se no contexto em que igualmente sinistras figuras surgem buscando confundir e apagar o passado, com a intenção manifesta de o repetirem. Autoridades e pessoas ligadas aos núcleos de poder do que deveria ser um Estado Democrático de Direito evocam a odiosa figura do AI-5 e dos carrascos asquerosos que ele produziu e fomentou, como Carlos Alberto Brilhante Ustra, não como algo a ser defendido no passado, o que já seria repugnante em si mesmo, mas como uma possibilidade de desdobramento de futuro.

Autoridades que deveriam zelar pelo devido processo legal e pelas garantias democráticas do processo judicial pisotearam convicta e conscientemente essas garantias, ao argumento de que a corrupção era um mal maior a ser combatido, repetindo pateticamente, assim, outra passagem da fala vil de Jarbas Passarinho na reunião do Conselho de Segurança Nacional de 13 de dezembro de 1968: “quando nós encontramos a necessidade de tomar uma decisão fundamental, tudo aquilo que fundamental é em condições normais, passa a ser secundário em condições anormais”. E são estas as pessoas que querem ainda a unção do voto popular. Não 50 anos atrás, mas agora.

Seria maravilhoso que pudéssemos hoje, mais de cinco décadas passadas, recordar essa data como um pesadelo que se foi. Trata-se, entretanto, não de simples memória, mas de uma luta política em defesa da Constituição e da Democracia. O AI-5 segue como um dos capítulos fundamentais para entendermos as centenas de mortos e desaparecidos políticos da ditadura abjeta que articulou militares, grandes empresários, atores políticos, grande mídia, potências estrangeiras.

O Relatório final da Comissão Nacional da Verdade, ainda que abarcando, por força da Lei 12.528/2011, não só a ditadura pós-1964, mas o período de 18 de setembro de 1946 a 05 de outubro de 1988 (art. 8.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), fala em 434 mortos e desaparecidos políticos no Brasil e no exterior, sendo 191 mortos e 243 desparecidos, em lista tida expressamente como aberta, a depender de novas investigações e informações, especialmente quanto à violência praticada contra camponeses e indígenas. O relatório não lista nomes, apenas: traz a biografia de cada um, o contexto de suas mortes ou desaparecimentos e os documentos que os comprovam. São testemunhos de vidas que foram interrompidas pela violência política e pelos ataques sistemáticos à democracia, não raro em seu nome.

Honremos essas biografias e essas vítimas, honremos seus amigos e familiares, honremos suas trajetórias e lutas. Mais do que tudo, os honraremos com a luta decidida pela democracia e pelas liberdades constitucionais, contra toda forma autoritária e antidemocrática de violência, de censura, de arbitrariedade, de negacionismo e de ameaça à vida e à saúde atual e das futuras gerações.

Relembrem o AI-5. Ditadura, nunca mais.

 

*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Anelize Moreira