O ano do luto

Retrospectiva da covid: pandemia levou Brasil ao pior ano da história

País chegou a concentrar 13% das mortes por covid no planeta, mesmo tendo menos de 3% da população mundial

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Brasil chega ao fim de um ano trágico com mais de 617 mil mortes por covid - ©️Evaristo Sa / AFP
A falta de políticas levou o Brasil ribanceira abaixo.

O Brasil começou 2021 vivendo o efeito dominó da falta de medidas restritivas para controle da covid-19. Os números de mortos e infectados avançavam cada vez mais rápido, consequência somada do aumento nas aglomerações no ano anterior, que começaram nos feriados de setembro e outubro, se estenderam pelas eleições municipais e registraram ápices nas festas de fim de ano.

Ainda na segunda semana de janeiro, o país registrou o maior número de casos da covid-19 já observado em sete dias até então, com quase 360 mil contaminados. O número de mortes relatadas no período passou de 6 mil, cenário que não era observado há meses em território nacional.

Também no início do ano, foi confirmado o surgimento de uma nova cepa no Brasil, que recebeu o nome de Gama pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em pouco tempo, ela se tornou predominante no país. Impulsionada pela lentidão no processo de vacinação, adoeceu milhões de pessoas.

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No fim de janeiro, o número de infectados chegou a 9 milhões. O patamar foi alcançado apenas 20 dias depois do registro de oito milhões, velocidade de crescimento mais intensa registrada até a ocasião.

Nos meses seguintes, veio a escalada. Com menos de 3% da população mundial, o Brasil chegou a concentrar mais de 13% das mortes de todo o planeta. Em 22 de março, o total de pessoas que pegaram o vírus em território nacional alcançou 12 milhões de pessoas, apenas 15 dias após a marca de 13 milhões.

Para a médica de família e comunidade Nathalia Neiva dos Santos, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, o país foi "ribanceira abaixo" por causa da falta de políticas, "Todas as negativas que a gente vivenciou - do uso de máscara, da importância das vacinas, do controle de políticas para barrar o aumento da transmissão - foram reafirmadas. Não teve mudança".

Março marcou o momento mais crítico da pandemia em solo brasileiro, que se estendeu até o fim de junho, mês em que o país passou de meio milhão de óbitos por causa da covid-19. Nos 12 meses anteriores, o número de vidas perdidas para a pandemia cresceu 10 vezes, escalou de 50 mil para 500 mil.

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Com hospitais lotados, pacientes morreram por falta de remédio e equipamento. Equipes de saúde trabalharam em ritmo inédito e chegaram a exaustão. O caos foi ignorado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que se empenhou em pregar contra o distanciamento social, desqualificou as vacinas, defendeu o charlatanismo com tratamentos ineficazes e usou a situação para politicagem.  

A Comissão Parlamentar de Inquérito, que investigou a atuação do governo ao longo da pandemia no Senado (CPI da covid), descobriu que o governo ignorou tentativas de contato de farmacêuticas para venda de vacinas por meses. Foi justamente a demora na aquisição de doses que levou à exoneração do general Eduardo Pazuello do cargo de ministro da Saúde.

Ainda que tenha trocado o comando da pasta, Bolsonaro continuou seguindo o caminho da displicência com as vidas perdidas. Ele chegou a perguntar em público até quando as pessoas "vão ficar chorando" e disse que era preciso parar com "frescura" e "mimimi". 

A médica Nathalia Neiva dos Santos, afirma que o descrédito à ciência e à saúde foi dominante nas respostas do governo. Na opinião dela, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi "açoitado" no processo, "no sentido de perder a capacidade de ser construtor de políticas da saúde, no sentido de democracia em saúde e do que precisamos enquanto sociedade".

As famílias brasileiras que optaram por se isolar em casa foram xingadas de "idiotas" pelo mandatário, que defendeu a desobrigação do uso de máscara para quem já havia passado pela infecção do coronavírus.

Com o andamento da CPI da covid - que também trouxe denúncias de tentativa de superfaturamento na compra de vacinas e expôs a existência de um gabinete paralelo, alheio à administração pública, para aconselhar o presidente no combate à pandemia - o governo se empenhou em mostrar preocupação com o andamento da aplicação da vacina.

Nem mesmo o direcionamento da gestão mudou o discurso. Bolsonaro encerra 2021 afirmando que não tomou a vacina contra a covid e propagando informações mentirosas sobre o imunizante. Ainda assim, a compra de doses seguiu, e a capilaridade do Sistema Único de Saúde garantiu quase 70% da população totalmente imunizada até o momento.

O negacionismo do presidente também não colou. Em maio, pesquisa do Instituto Datafolha indicou que mais de 90% da população com mais de 18 anos pretendia se vacinar. O agrupamento desses fatores teve impacto direto no crescimento da pandemia no Brasil. Atualmente, o avanço de casos e mortes está nos mesmos patamares registrados em março de 2020, início do surto.

Nathalia Neiva dos Santos alerta que no momento de relativa calmaria, o poder público deveria estar se planejando. Ela ressalta que é preciso preparar o sistema para a aplicação das próximas doses da vacina, retomar o fortalecimento da atenção primária e repensar orçamentos e investimentos - estagnados por causa da Emenda Constitucional do teto de gastos.

 "O planejamento de agora tem que caber dentro dessa realidade que foi construída nos últimos dois anos de pandemia. O SUS precisa começar a montar seu arcabouço para segurar inclusive próximas possíveis ondas da covid", finaliza.

Edição: Vinícius Segalla