REPRESENTATIVIDADE

Na Venezuela, mulheres criam grupo de tambores afro: "Nós também podemos tocar"

Grupo Mulher Herança Tambor reúne cerca de 100 pessoas para resgatar identidade afro-venezuelana

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O Grupo Herança se reconhece como afro-contemporâneo, pois resgata as raízes africanas, mas também propõe novos ritmos - Michele de Mello / Brasil de Fato

 Tum tum tá, tum turum tá.

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Quase como um mantra, os tambores anunciam o caminho para chegar às oficinas do Grupo Herança. No coração do Parque Los Caobos, região central de Caracas, todas as quintas-feiras cerca de 100 mulheres se reúnem para compartilhar histórias de vida e aprender a tocar tambores afro-venezuelanos. 

"O centro de tudo é a libertação. Necessito dizer, necessito de um tempo. Para as mulheres o grupo Herança Tambor tem sido seu espaço próprio", conta a percussionista Monica Mancera.

O Grupo Herança surgiu há 22 anos, criado pelo maestro Manuel Moreno, quem decidiu transmitir para outros jovens tudo que sabia sobre os tambores e que aprendeu de maneira autoditada.

"Sempre fui um ser que se expressou através das mãos. Cada situação de ira, de medo, cada vez que deveria me expressar fazia através das mãos. Aprendi que o primeiro tambor que temos é o coração", relembra Moreno.

"Cada uma tem um objetivo que pode ser tornar-se percusionista e também ter contato pela primeira vez com essa identidade afro-venezuelana. Elas vem gritar, através do tambor, aquilo que estava contido. Esse é um espaço terapêutico, formativo e de empoderamento", afirma Mancera.


Há cinco anos, o Grupo Herança reúne cerca de 100 mulheres para aprender os tambores afro-venezuelanos / Michele de Mello / Brasil de Fato

O espaço era aberto para homens e mulheres, mas em 2016 elas decidiram criar um espaço só delas. A ideia era ter um grupo de percussão que pudesse animar os atos feministas na cidade, mas que também mostrasse que as mulheres tamboreiras existem. 

"Historicamente o tambor sempre foi pensado para os homens. Por causa da força, da batida, porque é visto como algo masculino, daquele que vai para a guerra, que sai para caçar, atropologicamente falando, foi assim estereotipado. Mas nós mulheres também sempre estivemos presentes nos tambores", defende Monica Mancera.

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O grupo se reconhece como uma proposta afro-contemporânea, que resgata os conhecimentos ancestrais dos tambores africanos, mas também propõe novos formatos e ritmos.

"O que eu dizia é me diga com suas mãos quem você é. E a partir desse exercício, percebi que não necessariamente a pessoa teria que conhecer o tambor para fazer som, e comecei a experimentar, a ensiná-los os ritmos que eu havia criado e a ajudá-los a se descobrir através do tambor quem eram", conta Moreno.


Antes de cada prática, o maestro Manuel conversa com o grupo e propõe exercícios de expressão corporal / Michele de Mello / Brasil de Fato

Além de aprender os golpes de tambor, suas origens e distintos significados, o grupo tornou-se um espaço de acolhimento a dezenas de mulheres e adolescentes. 

"Há uma ruptura de paradigmas constante para fazer com que o tambor chegue a todas. Nosso debate é que se podemos fazer, vamos ampliar o espectro", afirma Mancera.

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A Venezuela, assim como o Brasil, tem na base da sua formação social uma história marcada pelo sangue e suor de povos negros trazidos à força da região centro-oeste da África. No final do século 18, esitma-se que cerca de 60 mil negros e negras viviam como escravos no território venezuelano. 

Negros, indígenas e o povo pobre em geral formaram o exército de libertação do país, e conduzidos por Simón Bolívar alcançaram a independência da Venezuela em 1811 e mais tarde a abolição da escravidão, em 1854. 

"Nós tivemos muitos quilombos de negros escravizados. Então essa herança está aí e o tambor é muito importante porque exalta e mantém vivo esse legado de todos os meus ancestrais. É através dos meus avós e tataravós que eu toco o tambor, sinto eles vivos, e quando toco sinto que estamos vibrando nessa condição de liberdade", afirma o maestro Manuel Moreno.

Edição: Thales Schmidt