Pandemia

Covid-19: crise de oxigênio em Manaus completa um ano

Apesar das denúncias sobre o caso, ninguém foi condenado pelo colapso e pelas mortes por asfixia.

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Amazonas vive sua terceira onda da pandemia, mas autoridades insistem em fórmulas que deram errado - Márcio James/Amazônia Real

O silêncio de uma casa vazia e agora imensa. Dar apenas alguns passos por ela virou um desafio. As pernas doem, o corpo está fraco, a memória falha. São sequelas da Covid-19. Para Ozimar Gualberto Auzier, a vida nunca mais será a mesma. Ele perdeu a esposa Raimunda Alexandre Auzier, de 60 anos, e dois dos quatro filhos na pandemia. “Perdi minha esposa, minha filha, meu filho. Agora é só esperar o tempo que ainda tenho aqui para poder ir embora”, conforma-se esse torneiro mecânico de 63 anos.

Há um ano, a reportagem de Amazônia Real contou a história de Ozimar e Raimunda. O casal foi uma das vítimas da crise da falta de oxigênio em Manaus, deflagrada em 14 de janeiro de 2021. Sem leitos nos hospitais, a família precisou buscar cilindros de oxigênio por conta própria, na tentativa desesperada de salvar Ozimar e Raimunda. Em casa, os dois chegaram a dividir o mesmo cilindro de oxigênio. “Eu caí doente e a minha mulher estava me cuidando. Quando dei por mim, ela já estava ao meu lado, doente. Um dia, eu acordei, olhei para a cama e ela não estava mais lá. Tinham levado ela para o hospital, e lá mataram ela”, conta Ozimar.

Ozimar Auzier com o filho Roney no Natal de 2021 (Foto: Arquivo pessoal)

Relembrar as histórias e os episódios que marcaram o maior colapso sanitário do Amazonas é dramático diante da iminência de uma terceira onda da pandemia. Mais uma vez uma variante, desta vez a ômicron, está fora de controle. Em 1º de janeiro, foram registrados 37 casos do novo coronavírus. Na última quarta-feira (12), o número saltou para 2.404, o que representa 65 vezes mais que na virada do ano. O Hospital Adventista de Manaus suspendeu, nesta sexta-feira (14), os atendimentos de urgência e emergência dos pacientes particulares diante do aumento exponencial de internados por Covid-19 e outras síndromes respiratórias.

Em janeiro de 2021, o Amazonas registrou 2.832 mortes a mais por Covid-19, sendo que 2.195 delas foram em Manaus, a única cidade do estado com leitos de UTI. No dia 20 de janeiro do ano passado, morria Raimunda Auzier, que quase chegou a ser transferida de Manaus para Goiás numa derradeira tentativa para salvar sua vida. Diante do colapso no sistema de saúde, muitos pacientes amazonenses tiveram que ser transferidos de avião para outros estados brasileiros. 

No dia 15 de janeiro de 2021, nove pacientes provenientes de Manaus chegaram em Teresina (PI) (Fotos Thiago Amaral/Amazônia Real)

No dia 14 de janeiro de 2021, o marco inicial da crise de oxigênio no Amazonas, Ozimar e Raimunda foram ao centro médico montado na Universidade Nilton Lins, no bairro Parque das Laranjeiras, na zona Centro-Sul de Manaus. “Lá, a minha avó não fez o teste porque achavam que ela não tinha sintomas suficientes. Mas eu e o meu avô fizemos. Os dois deram negativo. O meu avô já estava ruim. Foi preciso fazer uma tomografia para o diagnóstico. Levamos ele com a tomografia no (PS) Platão Araújo, e o médico disse: ‘Posso internar, mas o senhor vai ter que ficar numa cadeira, porque não tem leito no hospital. Ele (Ozimar) não quis ficar. No dia seguinte ele e minha avó já estavam muito mal”, lembra a neta Letícia, professora de 27 anos.

Havia razão para o medo da internação disseminado na população amazonense e, em particular, na família Auzier. A primeira onda da pandemia de Sars-CoV-2 já havia levado Ozias Alexandre, de 39 anos, filho do casal. Ele morreu em 28 de abril de 2020. Diante da sugestão de ser tratado precariamente, Ozimar preferiu continuar recebendo cuidados em casa. “E olha que eu tenho quatro stents (uma pequena prótese) no coração, sou diabético, e eu fui reagindo. Só depois de 20 dias é que eu vim saber que ela tinha morrido. Eu não sabia”, conta hoje o torneiro mecânico. “Eu quase enlouqueci quando soube da notícia. Mataram a minha esposa naquela crise de oxigênio. Ela não tinha nem cama no hospital. Ficava numa cadeira.”

Lições de vida

Sobreviventes da covid 19 em Manaus Nazareth Araújo, 86 anos, Jackeline Araújo, 49 anos, acompanhadas de Francisco Chagas Netto (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real/2021)

Durante a crise causada pela falta de oxigênio em Manaus, em janeiro de 2021, a Amazônia Real acompanhou também a jornada do empresário Francisco da Chagas Netto, 42 anos. A avó de Netto, Maria de Nazareth Araújo, de 86 anos, e a tia dele, Jacqueline Araújo Cruz, de 49, sobreviveram à tragédia. 

No dia do colapso, Netto peregrinava pela capital tentando recarregar os cilindros de oxigênio para mantê-las vivas. “Nossa, foi muito desesperador. Aqueles dias foram difíceis demais”, recorda Netto, que hoje se conforta por poder ver a avó e a tia fortes e saudáveis, sem nenhuma sequela. “É um privilégio ter as duas conosco. Deus é bom demais.”

O drama sofrido naquele janeiro de 2021 deixou aprendizados que Netto e a família carregam até hoje. O principal? Manter o distanciamento social. “A família não se reuniu no Natal e nem no Ano Novo. Estávamos receosos. Apesar delas estarem vacinadas, não descuidamos. Sabemos o que todos passamos naqueles dias. Esse Natal e Ano Novo, foi através da tela do celular com elas. Não deixamos os parentes visitar por conta dessas novas variantes terríveis que estão por aí”, ressalta Netto.

Naquela manhã de 14 de janeiro, as redes sociais foram tomadas por relatos desesperados de familiares vendo os infectados pela Sars-Cov-2 morrerem por asfixia. O Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam) estimou que entre 20 a 40 amazonenses podem ter morrido por asfixia, números até hoje não contestados pelas autoridades. Nos dias seguintes, os hospitais colapsaram. Até uma unidade de recém-nascidos sofria com a falta de oxigênio. O desespero de médicos e enfermeiros para manter os pacientes vivos nada fazia lembrar que a capital amazonense já tinha vivido seu drama particular, com a primeira onda da pandemia. 

O primeiro caso registrado na capital amazonense foi em março de 2020. Diante da falta de leitos de UTIs em hospitais públicos da rede pública e privada preparados para receber pacientes infectados de Sars-CoV-2, Manaus concentrou o atendimento dos casos graves. E sem políticas claras de contenção da pandemia, houve explosão de casos e de mortes. Valas comuns foram abertas nos cemitérios para dar conta dos óbitos diários. O estado amazonense fechou o ano de 2020 com 5.285 óbitos por Covid-19, sendo 3.380 na capital.

Erros em série

O epidemiologista Jesem Orellana (Foto: Arquivo pessoal)

As mortes por asfixia durante a crise da falta de oxigênio em Manaus de um ano atrás chocaram o mundo. O epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, enumera cinco pontos para entender aquele fatídico janeiro de 2021. Faltou aprender com os erros cometidos durante a primeira onda. A testagem permaneceu restrita e a fiscalização do uso de máscaras e aglomerações nunca se efetivou. O segundo ponto, para Jesem, foi “não terem descentralizado a testagem por RT-PCR  e leitos de UTI para vários municípios pólo do interior”, pontua. Até hoje, a testagem em massa não é realizada no País.

“Terem ignorado a ciência, ao não combaterem fortemente fake news como tratamento precoce ou a falaciosa tese da imunidade de rebanho, bem como não terem aceitado que Manaus já estava na segunda onda, em setembro de 2020”, é outro ponto levantado por Jesem. Faltou ainda a implementação de um Serviço de Verificação de Óbitos (SVO).

“Todos os erros cometidos na primeira e, principalmente, na segunda onda explosiva de contágio e mortes por Covid-19, foram mantidos, ao longo de 2021, e agora em 2022. Infelizmente essa disseminação viral forte que está vindo agora é fruto dessa negligência sanitária de mão dupla, tanto das autoridades sanitárias, como de parte expressiva da população de Manaus e do Amazonas”, critica.

Durante a crise de 2021, o governo federal tentou impor o tratamento precoce e o uso do Kit-Covid, fazendo da população do Amazonas como cobaias. O presidente Jair Bolsonaro despachou o então ex-ministro da saúde, general Eduardo Pazuello, para a capital amazonense, que levou de tiracolo Mayra Isabel Correia Pinheiro, a chamada “capitã cloroquina”. Então secretária de Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde do Ministério da Saúde, Mayra se celebrizou por tentar fazer a população usar medicamentos sem eficácia comprovada, durante a pandemia. O governo federal também entupiu as aldeias indígenas com cloroquina e ivermectina.

O Ministério Público Federal (MPF) moveu uma ação por improbidade administrativa que teve como alvo Pazuello; Mayra Pinheiro, Luiz Otávio Franco Duarte, secretário de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde; e Hélio Angotti Neto, Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde.

Bolsonaro não enfrentou dificuldades para fazer do Amazonas um laboratório prático de seu negacionismo. O governador Wilson Lima (PSC) e o prefeito de Manaus David Almeida (Avante) eram seus aliados políticos. O ex-secretário de Saúde do Estado do Amazonas, Marcellus José Barroso Campelo, e Francisco Ferreira Máximo Filho, coordenador do comitê de crise, também foram elencados na ação do MPF, que corre sob segredo de Justiça. 

Wilson virou réu

Wilson Lima e os respiradores (Foto: Diego Peres/Secom)

Já o governador Wilson Lima se tornou réu no julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que aconteceu no dia 20 de setembro. Na ação, Lima foi investigado pela compra fraudulenta de 28 respiradores em uma loja de vinhos, em Manaus, durante a primeira onda da pandemia, em 2020.

Wilson responderá ainda pelos crimes de licitação fraudulenta, dispensa de licitação, crime de formação de organização criminosa e por embaraço à investigação. Apesar de ter se tornado réu, o governador do Amazonas não foi afastado de suas funções e ainda não há data para o seu julgamento. 

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, depois de quase seis meses de trabalho, pediu o indiciamento de 78 pessoas e duas empresas. Bolsonaro e o governador Wilson Lima (PSC) estão nessa lista. Nove crimes foram atribuídos a Bolsonaro: prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado morte; infração a medidas sanitárias preventivas; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade. 

Wilson Lima foi enquadrado nos artigos 267 e 319 do Código Penal (por causar epidemia e por omissão). Convocado para a CPI da Pandemia, ele conseguiu no Supremo Tribunal Federal o direito de não prestar depoimento

Para a titular da 1ª Vara da Justiça Federal do Amazonas, juíza Jaiza Fraxe, o episódio da falta de oxigênio em Manaus em 2021 fez os governantes acordarem para o enfrentamento da pandemia. “Por enquanto, e pelo que consta dos processos, o planejamento está adequado. Os órgãos de controle têm realizado um bom trabalho. Não há até agora judicialização de problema referente a planejamento e fornecimento do insumo em 2022”, informa.

O pesquisador Lucas Ferrante, doutorando do programa de biologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), não vê assim a situação atual. Para ele, o Amazonas já vive uma terceira onda de Covid-19. “Isso é um fato inegável, mas uma vez as autoridades de saúde pública não estão reconhecendo este fato que é grave e preocupante, e a situação em Manaus deve continuar se agravando nas próximas semanas”, alerta Ferrante, que afirma que a nova onda é gerada pela variante delta, agravada pela variante ômicron e potencializada pelo surto de gripe.

Pelas contas do pesquisador, ainda há 100 mil pessoas em Manaus que sequer tomaram a primeira dose de uma das vacinas contra a Covid-19. O ideal é que mais de 90% da população já estivesse imunizada, mas o índice atual é de 70%. Ele acredita que, “potencialmente”, a terceira onda será menor que as anteriores, mas ainda assim “preocupante”.

“A cidade não está se preparando, tampouco o Estado. Nós vemos ainda uma ausência de respostas para conter essa crise. Nós já deveríamos estar declarando uma situação de emergência e de isolamento social para frear esse aumento de transmissão comunitária. Decretar isso tardiamente simplesmente faz com esses óbitos já estejam programados, a gente sabe e conhece o ciclo viral muito bem, e uma vez que os casos já estejam aumentando, os obtidos já tendem a acontecer em algumas semanas”, finaliza Ferrante.

Lucas Ferrante (Foto:FER)

Orellana lembra ainda de outros erros cometidos pelas autoridades. “O governador do Estado do Amazonas em menos de dez dias permitiu dois grandes eventos na cidade de Manaus. Fez pouquíssima coisa em relação à contenção da circulação viral durante o mês de dezembro todo, sabendo que tem confraternizações, Natal, Ano Novo, e infelizmente nada de positivo vimos com relação a essas estratégias”, ressalta.

Jesem Orellana também criticou a prefeitura da capital. “O prefeito de Manaus repete essa experiência, mas com a testagem no Studio 5, novamente com filas quilométricas e com o agravante de que nós estamos num momento de explosiva transmissão comunitária do novo coronavírus, muito provavelmente da variante ômicron”, condena.  

O número de casos positivos (testes de antígeno) em Manaus aumentou de forma alarmante (49% em dados da última quarta-feira, 12). Ou seja, há um positivo a cada dois testados. Os testes de RT-PCR seguem o mesmo rumo. As internações diárias médias em leito clínico aumentaram 76% e em UTI, 60%.

As duras lembranças

O casal Raimunda e Ozimar Auzier, em foto de acervo pessoal antes da pandemia

Para os sobreviventes da crise de oxigênio de 2021, restam as lembranças, muitas delas doloridas e impossíveis de serem esquecidas. Dos 45 anos em que o casal Ozimar e Raimunda viveu junto, restou a saudade. “Em tudo que eu olho, ela está. Temos um terreno em que ela plantou todas as árvores frutíferas. Eu roçava e capinava, e ela plantou tudo que está ali. Eu só andava com ela. Era o amor da minha vida”, lembra o torneiro-mecânico.

A morte de Raimunda afetou profundamente a família, que a considerava como uma espécie de elo de união entre todos. “A minha avó era a cola da família, sabe? O Natal e o Ano Novo foram as datas mais difíceis de todas, para todo mundo. Teve o Natal e o Ano Novo, mas não com a mesma vibração”, conta Letícia. 

“Depois que ela se foi tudo desandou. A família ficou mais distante”, pontua a nora de Raimunda, Rocicleia Pereira Gomes. “Aceitar a partida dela não está sendo fácil. Não foi fácil para os filhos, netos e esposo. O que nos conforta é sabermos que ela está em um lugar melhor livre dos sofrimentos”, ressalta. Em fevereiro de 2021, a família Auzier sofreria um novo baque. Rosemary Alexandre, 41 anos, filha do casal, também morreu vítima da Covid-19. 

“Eu perdi a minha sogra, a minha cunhada, foi difícil pra mim, só que eu sei que para o meu esposo foi mais dolorido. Eu sei que a gente tem que ser forte para superar tudo isso e foi o que eu tentei mostrar. Que eu era forte para ajudar eles. É difícil para qualquer um, mas para eles foi mais”, conta Rocicleia.

Para Letícia, tudo poderia ter sido diferente se a pandemia tivesse sido levada a sério pelas autoridades. “Estamos alcançando cerca mil positivos para Covid por dia atualmente. Por que não ouvimos burburinho? Porque não tem mortes. E por que não tem mortes? Vacinas. Se tivéssemos nos vacinado um ano atrás, não teríamos o colapso que foi e gerou dores que até hoje são sentidas. Politicagens à parte, temos um presidente negacionista. E mesmo que não fosse somente dele a obrigação, a posição de liderança necessária para que as coisas fossem diferentes, não houve e não há até hoje”, revolta-se.

O empresário Francisco da Chagas Netto fala das lições que ficaram. “Foi um aprendizado para nossa família inteira. No sentido de união, amor ao próximo e ao ajuntamento da família”, celebra, ressaltando que a sua família conseguiu vencer apesar dos prognósticos contrários. “Quando você se depara com todas as impossibilidades de tratamento da época, crise de oxigênio, colapso em hospitais, estatísticas absolutamente contra nós. Porque de 70 anos para cima, morria uma porcentagem muito alta, e ela (a avó) estava com 85 anos”, lembra.