resistência em campo

Artigo | O técnico da Seleção Brasileira que participou da luta armada para defender camponeses

João Saldanha foi o responsável por montar o esquadrão considerado o melhor time de futebol da história

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
“Eu e o presidente, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol. E nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala time”, afirmou Saldanha - Wikimedia Commons

Por Ednilson Valia*

 

Entre 1948 e 1951,‌ camponeses‌ no norte do Paraná ‌desbravava‌m ‌terras‌ ‌que‌ ‌ninguém‌ ‌queria‌, acreditavam ser ‌a‌ ‌parte‌ ‌que‌ ‌lhes‌ ‌cabia‌m ‌no‌ ‌latifúndio.‌ Os “grileiros” exigiram ao governo estadual que o solo fértil não fosse mais dividido e uma cova nem rasa e nem funda fosse dada para quem abrisse boca. 

Esse foi o enredo da Revolta do Quebra-Milho ou Guerrilha de Porecatu, um conflito entre posseiros e “grileiros” com apoio do governo estadual nas margens do Rio Paranapanema, envolvendo as cidades de Centenário do Sul, Guaraci, Jaguapitã, Miraselva e Porecatu, na divisa dos estados do Paraná e de São Paulo.

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A luta em Porecatu pode ser considerada uma precursora do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), no final da década de 40 e no início de 50, muitas ligas de trabalhadores rurais haviam se organizado.

O Partido Comunista Brasileiro teve um papel crucial no movimento de resistência dos posseiros. Os comunistas atuavam na clandestinidade, o presidente Marechal Eurico Gaspar Dutra cassou o registro do partido em 1947. O apoio do "Partidão" aos camponeses foi alinhado pelo vereador de Londrina (PR), Manoel Jacinto.

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Os integrantes do PCB convenceram os lavradores que o único caminho era a resistência armada. O  “Partidão” entendeu ser o momento de militantes experientes dar o suporte necessário em treinamento com armas, logística e estratégia para a resistência armada. 

O militante que faria o contato direto com o comitê central, o camarada João Alves Jobim Saldanha se fixou na cidade de Londrina como repórter do jornal comunista "Hoje". João Saldanha foi o responsável por montar o esquadrão considerado o melhor time de futebol da história, eleito por Franz Beckenbauer, Bobby Charlton e Vicente Del Bosque, a Seleção Brasileira tricampeão do Mundo em 1970. 

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A campanha de João como treinador na Seleção Brasileira foi espetacular, com 100% de aproveitamento nas eliminatórias para o Mundial de 70. Em seis jogos, seis vitórias, marcando 25 gols e não sofrendo nenhum. 

O Brasil vivia sob a presidência de um ditador, Emilio Garrastazu Médici, que pressionava para a convocação do então centroavante do Atlético Mineiro Dario Maravilha.

Saldanha considerava Médici, o maior assassino entre os presidentes militares e perguntado sobre a polêmica  respondeu: “eu e o presidente, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol. E nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala time”.  Oito dias antes de embarcar para o México, João foi demitido. 

Angelo Priori, Doutor em história e professor da pós-graduação da Universidade Estadual de Maringá (UEM), descreveu as responsabilidades de Saldanha  em Porecatu: “Organização política dos camponeses, apoio Logístico, organização dos grupos armados e elo dos camponeses com a direção do  comitê central”.

No início da década de 1940, o estado paranaense proporcionou que pequenos agricultores tomassem posse de parcelas de território, com a promessa de emitir o título de propriedade, caso esses confirmassem a posse efetiva.

Posteriormente, o governador Moisés Lupion incentivou os grileiros a utilizar toda categoria de violência. Mesmo apoiados pela força policial, acreditavam  ser preciso ter mais rigidez para expulsar os camponeses das terras e assim contrataram jagunços para realizar o “serviço”.

Celestino, cujo nome verdadeiro era José Ferreira de Souza, foi o escolhido para jagunço chefe. Acusado de roubo, despejos violentos, estupros e assassinatos. Celestino cruzou a linha da tolerância dos resistentes. 

O líder da Liga de Lavradores de Jaguapitã, Francisco Bernardo, foi espreitado pelo Departamento de Ordem Social e Política (DOPS) de São Paulo, que alegando o perigo de fuga, quebraram às duas pernas, ferido foi entregue aos jagunços onde foi torturado e morto sob o comando de Celestino. 

João Saldanha percebeu que a situação tomou tal tento entre os camponeses que não haveria tempo para consultar o comitê Central. Os campesinos decidiram o “futuro” de Celestino pelo voto direto. Por 15 votos a favor e 3 abstenções, o assassinato  do Jagunço não seria mais discutido.

Celestino, uma vez por mês, ia sozinho à casa de uma amante perto da cidade de Apucarana, a 100 quilômetros de Porecatu.

Os resistentes ficaram de sentinela por três dias. O terceiro dia se despedia e a escuridão da noite os cumprimentava, quando vagarosamente era avistado no horizonte um “caboclo” com todas as feições conhecidas do jagunço chefe. 

Os campesinos decidiram aguardar o clarão do dia para o ataque. O amanhecer não demorou por vir, um “piá”, de no máximo quinze anos, deu água ao cavalo, verificou o estribo, a sela e o arreio calmamente, esperando pelo rude montador. 

Celestino surge a frente da casa, se despede, caminha lentamente retirando a rédea da mão do “piá”. No primeiro trote do cavalo, Martinzão do grupo dos resistentes deu dois tiros, o animal caiu, o garoto correu e Celestino recebeu dezenas de tiros.

João Saldanha junto aos “guerrilheiros de Porecatu” transportaram o corpo de Celestino da cidade de Apucarana ao cruzeiro que separava as cidades de Porecatu e Centenário do Sul, pendurando o morto junto a uma faixa escrita: morte aos jagunços. 

A repercussão da disputa na mídia causou um desgaste público e o poder estadual foi obrigado a elaborar um acordo. O governo do Paraná estava sob nova administração, a do ex-deputado Bento Munhoz. 

O professor Priori revelou como o político encaminhou a proposta para o fim da “Revolta”: “Em 15 de março de 1951, Munhoz instituiu uma tal de Comissão de Terras e sugeriu a transferência dos lavradores. Munhoz também usou das forças da polícia política e da Polícia militar, com o apoio do exército, para fazer a limpeza da área, ou seja, a expulsão dos posseantes”.

A resolução do impasse no norte paranaense progrediu devido à participação dos líderes do PCB: “Sei que meu pai participou dessa articulação. Considerando que havia sincronia no pensar e nas opiniões entre eles (Manoel e Saldanha)”, concluiu Elza Correia, filha de Manoel Jacinto.

João Saldanha conhecido no jornalismo pela capacidade de síntese em situações mais improváveis definiu a “Revolta do Quebra Milho” na entrevista dada a “Folha de Londrina”: “O único movimento de luta armada vitorioso no Brasil”.

 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo