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Militância e trabalho de base

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"Na luta política o mais importante, antes de tudo, é estabelecer confiança, e ir fortalecendo esse laço" - Tuane Fernandes / Mídia NINJA
É muito mais fácil nos identificarmos com aquele que, naturalmente, procura se identificar conosco

As virtudes dos homens são semelhantes ao voo dos pássaros.

A ave que se habitua com a paisagem rasteira, perde o gosto pela altura.

Sabedoria popular indiana

O trabalho de base parece invisível, mas é o alicerce da luta para conquistar implantação política e construir núcleos militantes. Sem trabalho de base não há organização popular. Nas fábricas ou nas escolas, nos bairros ou nas categorias, entre as mulheres ou na juventude, é preciso muita conversa, preparação de reuniões, divulgação de reivindicações, construção de campanhas e, o mais importante, ações de luta. Todo este processo repousa no trabalho de base. Ele se articula com a formação política dos ativistas, mas é a principal escola de militância.

Trabalho de base é agitação e propaganda. Agitação são poucas ideias para muitos. Propaganda são muitas ideias para poucos. Só que, quando estamos em uma situação defensiva, é inevitável que o trabalho de base fique muito difícil. A razão é simples. A imensa maioria daqueles que nos cercam podem até nos respeitar, embora não concordem conosco. Não há muitas condições para agitação. Então, nos resta somente a propaganda.

Acontece que não é fácil defender, incansavelmente, ideias que não encontram respaldo. A tendência é que a paixão pelo trabalho de base arrefeça. A pressão para que a militância se restrinja a atividades internas a cada organização, ou a atividades de superestrutura ou de representação, uma forma de “recuo organizado”, é quase inexorável. Mas é perigosa.

Quando é mais difícil não é menos importante. A defesa de ideias é a chave para aumentar a influência, mas é indivisível de uma conduta. Trabalho de base só é possível com construção de relações de confiança. Empatia é a capacidade que cada um de nós tem de se colocar no lugar de outra pessoa que é diferente de nós. Alteridade é a capacidade de aceitar as diferenças sem desconfiança e, mais importante, sem hostilidade. A empatia é a capacidade de construir identificação com o outro.

Sem empatia não há como se estabelecer relações de confiança. Na luta política o mais importante, antes de tudo, é estabelecer confiança, e ir fortalecendo esse laço. O alicerce de todo trabalho de base é esse contato pessoal. Todo ativista, quando defende uma posição, está pedindo aos outros que confiem na honestidade de suas intenções. Para conquistarmos confiança, devemos oferecer primeiro aquilo que estamos pedindo aos outros.

A empatia que o militante procura com aqueles com quem discute no local de trabalho ou moradia, na escola ou Universidade, os seus iguais, deve ser grande o bastante para que ela mereça reciprocidade. Quem quer ser ouvido e respeitado, deve saber ouvir e respeitar. Não há empatia sem simpatia.

A simpatia é uma disposição subjetiva, uma atitude, uma postura de quem mantém a mente aberta. A simpatia não pode ser uma pose. A sinceridade é a chave para estabilizar relações de confiança. Ser sincero é ser capaz de compaixão pelo sofrimento dos outros. A vida das massas populares é muito dura. Compaixão é a capacidade de viver as ansiedades, os receios, os medos, as aspirações dos outros como nossas. A empatia é a capacidade de sentir o que a maioria está sentindo. As pessoas fazem suas experiências através de uma vivência emocional.

Bons argumentos são uma poderosa arma política. Mas não são tudo. A empatia não se constrói somente com palavras, mas com uma história de vida. Nenhuma liderança alcança autoridade somente com “discursos”. A autoridade política entre os trabalhadores ou as massas populares não é possível, se não houver antes das assembleias um robusto trabalho de base.

Os grandes líderes não se fizeram somente com microfones na mão, mas conversando com os trabalhadores nas empresas, nos sindicatos, em visitas às casas dos operários, marchando ao lado deles nas passeatas, enfrentando a repressão na primeira linha dos confrontos, ou seja, dando o exemplo. A retórica é somente uma técnica para a apresentação de argumentos. Lideranças sérias constroem organizações coletivas no dia a dia, não somente na hora das lutas e assembleias.

Claro que nenhum militante pode agradar a todos. Isso depende de muitos fatores. A capacidade de identificação de um ativista com seus colegas de trabalho ou de estudo facilita a empatia. Ser militante não deve fazer de nós “gente esquisita”. Ser militante nos distingue aonde atuamos porque defendemos, vigorosamente, nossas ideias, e aqueles que estão ao nosso redor descobrem isso, facilmente. Mas não precisamos ser, demasiadamente, “estranhos”.

Coluna: Militância e oratória

Grandes lideranças provocam empatia, mas é bom saber que isso é raro. Frequentemente, a capacidade de empatia, em máxima intensidade, é denominada, também, de carisma. É muito mais fácil nos identificarmos com aquele que, naturalmente, procura se identificar conosco, e é capaz de traduzir em palavras o que estamos sentindo, mas não as encontrávamos. A empatia é capacidade, em primeiro lugar, de despertar uma simpatia popular. O camarada que prefere ser antipático, melhor não ocupar o papel de figura pública.

A classe trabalhadora precisa, historicamente, de instrumentos de luta que sejam organizações coletivas para representá-la de forma independente. A construção de lideranças é imensamente mais difícil para a classe trabalhadora do que para a classe burguesa. O perigo das represálias é suficientemente poderoso para que uma grande parte das lideranças naturais, que surgem em qualquer conflito, se perca pelo caminho. Outros são cooptados, seduzidos pelas recompensas.

Por isso, também, pelas necessidades de autodefesa dos ativistas, a formação de lideranças entre os trabalhadores passou, historicamente, pela construção de organizações coletivas. Sujeitos coletivos como são os sindicatos ou os movimentos e partidos são uma forma de organização superior, mais complexa e muito mais poderosa do que a afirmação de líderes individuais. A capacidade de empatia é um trunfo para um militante, ainda que seja menos importante que a determinação e a inteligência. Porque a simpatia é um sentimento.

A armadilha da empatia é que aqueles que capazes de dominar este domínio emocional têm um enorme poder de condução, portanto, de manipulação. A burguesia aprendeu a usar a habilidade da empatia de seus líderes para competir pela direção política da classe trabalhadora. A classe trabalhadora em seu processo de amadurecimento histórico pode se sentir representada por líderes de outras classes, mas a burguesia não.

Como conseguir a empatia? As dores coletivas são anônimas, logo é sempre bom concretizar. Usando um exemplo. Contando uma história. Uma história real, das muitas que ouvimos todos os dias, mas lembrando que escutar não é o mesmo que ouvir, você pode escutar muitas coisas, você ouve o que quiser.

A maioria das pessoas se emociona com histórias concretas de companheiros que são seus iguais, a história de um drama que tem nome e RG, não com a abstração das dores anônimas. As dores humanas são coletivas, mas elas só comovem quando têm um rosto. Somente uma dor individual pode despertar a empatia, quando se transforma na bandeira da dor coletiva que incendeia a possibilidade da mobilização.

*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSOL e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thales Schmidt