Pandemia

Pandemia foge do controle, de novo, no Amazonas

Estado bate recorde de casos e profissionais de saúde denunciam falta de condições para enfrentar a Covid-19

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Imagem acima mostra pacientes recebendo atendimento dentro de uma unidade de saúde de Manaus, em 14 de janeiro de 2022 - Raphael Alves / Amazônia Real

O Amazonas volta à fase vermelha da transmissão do novo coronavírus, o que na prática significa descontrole da pandemia. Na quinta-feira (27), foi o estado brasileiro que apresentou a maior taxa de transmissão (Rt), de 2,04, segundo dados da plataforma Loft Science. Cada 100 infectados podem transmitir o vírus a outras 204 pessoas. A Rt para o Brasil é de 1,78, de acordo com o Imperial College de Londres, a mais alta desde julho de 2020. Já no terceiro ano da doença, e tendo enfrentado duas ondas avassaladoras, o governo estadual ainda peca no combate à pandemia. Profissionais de saúde denunciam que falta até Equipamentos Proteção Individuais (EPIs) nas unidades.

Nos últimos dias, a reportagem da Amazônia Real ouviu o relato de enfermeiros que atuam em três hospitais da capital amazonense: o Pronto Socorro (PS) João Lúcio, na Zona Leste, Instituto de Saúde da Criança do Amazonas (Icam) e do PS da Criança, na Zona Sul. Além da falta de EPIs adequados, os profissionais denunciam a carga excessiva de trabalho provocada pelo afastamento de inúmeros colegas afastados de suas funções por contraírem o novo coronavírus. A situação é grave.

“A direção do Icam suspendeu os testes para Covid-19, porque muitos estão positivando e já estão ficando sem funcionários lá. Olha a palhaçada! E querem que a gente trabalhe doente”, conta uma enfermeira do Icam, que pede o anonimato por medo de retaliações. A cada plantão de 12 horas, segundo ela, estão disponibilizadas três máscaras de proteção, as descartáveis e a de tripla camada com clipe nasal. “Máscara N95, só quando o funcionário está cuidando de pacientes já positivado com Covid. A questão é que a transmissão está sendo feita de funcionário para funcionário”, explica. Eles estão recebendo capotes, forro e propés, mas a proteção não é total. As viseiras só foram utilizadas na primeira onda da pandemia.

“Tivemos afastamento de pelo menos 60% de profissionais positivados para Covid-19, nas duas primeiras semanas de janeiro. Economia com EPIs é uma atitude burra”, atesta a profissional. Na segunda semana de janeiro, os profissionais começaram a aparecer com sintomas gripais, alguns provavelmente já com covid-19, e procuraram o setor de farmácia para pedir máscaras protetivas do tipo N95.  “A resposta foi exatamente essa: só para quem está cuidando de pacientes com Covid-19”, relata.

A consequência é o descontrole da pandemia, de novo. O Amazonas enfrenta a terceira onda causada pelo novo coronavírus. Com a chegada da variante ômicron, o Estado já superou o número de novos casos, chegando a 81.627, na quinta-feira (27). No ano passado, em todo o mês de janeiro – considerado o pior da pandemia até então – foram registrados 66.381 novos casos. Até o momento, 13.913 pessoas morreram de Covid-19 em todo o Amazonas. São 9.561 óbitos em Manaus e 4.352 no interior. 

De acordo com o último boletim da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) do Amazonas, Manaus possui 581 pacientes de Covid-19 internados, sendo 447 em leitos clínicos, 120 em UTI e 13 em sala vermelha. Do total, 266 não foram vacinados e 154 têm esquema vacinal incompleto, o que corresponde a 74% das internações. Ou seja, as pessoas que se negam a completar a imunização são as que mais estão demandando agora os serviços de saúde.

Além do crescimento exponencial de transmissão do coronavírus no Amazonas, outros estados da região Norte estão com taxas RTs maiores que a média nacional, segundo a Loft Science: Amapá (1,95), Acre (1,66) e Rondônia (1,56). Os dados da Loft Science, plataforma desenvolvida pela empresa de comercialização de imóveis Loft, são atualizados diariamente pela equipe de data science da empresa e baseados em uma estimativa. A média nacional desta plataforma está em 1,49, portanto abaixo da apontada pelo Imperial College de Londres, a fonte mais confiável.

Máscaras N95 só na UTI


Profissional da saúde no atendimento para a Covid-19 dentro de uma unidade de saúde de Manaus, em 14 de janeiro de 2022 / Raphael Alves / Amazônia Real

No PS da Criança, a máscara N95, ideal para quem atua na linha de frente de enfrentamento, é fornecida apenas para os profissionais da UTI e da cozinha, como conta uma das enfermeiras que atua na unidade de saúde. Ela contraiu a Covid-19 pela primeira vez, nesta terceira onda.

“Quando eu pedi a máscara N95, me disseram que eu não tinha direito. Disseram, olha, quem trabalha na semi-intensiva, não tem direito, não. Essas máscaras são só para quem trabalha direto na UTI. Tu já pensou um negócio desse? Aí disseram que foi uma ordem da gerência”, revela. 

A enfermeira acredita que o alto número de profissionais afastados por Covid-19 poderia ser infinitamente menor se os protocolos fossem seguidos à risca. “Eles dão máscaras para a gente, mas não é a máscara adequada. A gente se sente desprotegido. Não tem N95 para todo mundo. O nosso trabalho na unidade semi-intensiva é bem puxado. Eu acho isso um absurdo”, protesta.

A enfermeira conta que sempre teve muito cuidado para não contrair a doença, e conta como foi no dia em que recebeu o diagnóstico positivo. “Quando eu recebi o resultado pensei que ia surtar. Tinha medo de sentir os sintomas ruins, falta de ar, mas o que senti foram os sintomas gripais. Foi muito diferente do quadro que tínhamos no ano passado, quando muita gente morreu. Mesmo assim fiquei preocupada, mas graças a Deus deu tudo certo”, conta a enfermeira que já sarou e até recebeu a dose de reforço da vacina contra o novo coronavírus.

No PS João Lúcio, no bairro São José, localizado na região mais pobre e populosa da capital amazonense, a situação se repete. “A única máscara aqui que tem disponível no meu setor é a cirúrgica”, conta a enfermeira que atua no PS da Zona Leste. Para ela, a falta do EPI já nem assusta tanto. “É óbvio que necessitamos dessas máscaras porque elas diminuem a probabilidade de contaminação, mas o medo é menor hoje em dia por conta da vacina. O número de casos graves da doença diminuiu muito”, pontua.

Para a enfermeira, a sobrecarga por conta do alto número de profissionais que precisam se afastar por conta da doença tem dificultado o combate à pandemia. “Tem setores aqui no João Lúcio que tem duas enfermeiras e três técnicos de enfermagem para dar conta de 22 a 25 pacientes. Tem muito funcionário de atestado. Acho que o dimensionamento do Estado não está correto. Soube com umas amigas que no HUGV há seis enfermeiras e dez técnicos para cada seis pacientes. Essa divisão não é satisfatória. A demanda do João Lúcio é muito grande e a equipe de saúde é pequena”, explica.

Problema é conhecido


Pacientes em enfermaria recebem atendimento para a Covid-19 dentro de uma unidade de saúde de Manaus, em 14 de janeiro de 2022 / Raphael Alves / Amazônia Real

Diretora do Sindicato dos Profissionais Enfermeiros Servidores Públicos no Estado do Amazonas (Sinproenf-AM), a enfermeira Hilda Rios confirma a situação denunciada pelas enfermeiras. “Todos os sindicatos estão cobrando (soluções) para o que está acontecendo. Então é uma situação geral mesmo. A sobrecarga de trabalho é porque tem muitos funcionários afastados”, conta.

O governo do Estado e a prefeitura de Manaus informaram, em reuniões com os sindicalistas, que estavam contratando profissionais. A presidente do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Área da Saúde do Amazonas (Sindsaúde), Cleidinir Francisca, faz um relato da situação dos hospitais da rede pública. “Falta de estrutura é geral, porque aumenta o número de atendimentos todas as vezes no início do ano, quando acontece essas ondas, e eu não vejo ainda uma preparação como deveria ser”, afirma.

Segundo ela, os representantes dos sindicatos ligados à área de saúde se reuniram diversas vezes com o poder público, mas os problemas se repetem. “Eles (profissionais de saúde) reclamam muito de falta de profissionais. É um déficit muito grande de recursos humanos, de insumo, de EPIs, de pessoas para lidar com uma onda, e essa aqui já é a terceira confirmada pela Fiocruz”, relata a sindicalista.

Uma portaria de 13 de janeiro suspendeu as férias programadas neste início de ano, por conta dos aumentos de internações causados pela variante ômicron. “Todas as vezes que acontece essa demanda, os profissionais de saúde são surpreendidos por essas portarias suspendendo as férias”, conta Cleidinir, que lembra que o Estado já assinou Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), e que mesmo assim, a solução parece longe de ser resolvida.

Falta uniforme completo


Protesto dos funcionários do Samu na Prefeitura de Manaus em 25 de janeiro de 2021 / Juliana Pesqueira/Amazônia Real

No Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), vinculado à prefeitura de Manaus, a oferta de EPIs está em dia, como conta o socorrista Denison Vilar. Por lá, os problemas são outros. “Nós temos a questão dos uniformes. Nós estamos há mais de cinco anos sem receber o uniforme completo, que é bota, macacão, camisa, boné”, revela.

Denison conta que solicitou recentemente, capas de chuvas para os profissionais e que, até o momento, o pedido não foi atendido. “Uniforme, camisa e boné são coisas que fazem parte indiretamente do nosso EPIs do nosso contato com o paciente”, afirma.

O socorrista aponta ainda o déficit de profissionais como sendo um problema que reflete diretamente na prestação de serviço e na carga de trabalho para os trabalhadores. “Vai ser realizado um concurso público, agora, que a gente não consegue entender. Porque tem 20 e poucas vagas para condutor-socorrista e a gente vive numa cidade com mais de 2 milhões e 200 mil habitantes. A gente sabe que um efetivo de 25 condutores após dez anos de concurso público – o último foi em 2012 – não vai suprir a necessidade”, analisa Denison.

O que dizem as autoridades


Pessoas aguardam atendimento na recepção da UPA José Rodrigues, na Zona Norte de Manaus, em 14 de janeiro de 2022 / Raphael Alves / Amazônia Real

Por meio de nota, a Secretaria de Estado de Saúde (SES-AM) negou a falta de EPIs para os profissionais de saúde da rede estadual. De acordo com o governo, esse material está disponível e em estoque em todas as unidades. “O HPSC da Zona Sul esclarece que todos os profissionais da assistência estão recebendo a máscara modelo N95 e assinando o protocolo. Com relação à testagem rápida, o profissional que estiver sintomático e que está de plantão da unidade poderá ter a testagem realizada”.

A SES-AM lembra que uma nota técnica, assinada com a FVS do Amazonas, recomenda que o teste rápido seja feito “apenas em indivíduos sintomáticos”. E finaliza garantindo que a pasta já disponibilizou 1.300 profissionais para recompor o quadro daqueles que foram afastados por questões de saúde.

Já a Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (Semsa), que é a gestora do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – Samu 192 Manaus, disse ser improcedente a informação de que os socorristas estão há mais de cinco anos sem receber o fardamento. A secretaria disse que um processo de aquisição de mais uniformes está em andamento.

No que diz respeito ao quantitativo de vagas no edital do concurso público em andamento, para suprir as vagas no Samu, a secretaria informa que a reposição de vagas é aberta “em razão de vacância, seja por óbito, exoneração ou quaisquer outros motivo”, e serve também para formação de cadastro de reserva.