Fim da Geringonça?

Vitória dos Socialistas em Portugal tem sabor agridoce para as esquerdas

Maioria absoluta do Partido Socialista contrasta com o crescimento da extrema direita, que passa a ser a terceira força

Lisboa, Portugal |

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António Costa, premiê de Portugal, disse que “maioria absoluta não é governar sozinho” - Patricia de Melo Moreira / AFP

O gosto doce da vitória surpreendente do Partido Socialista (PS) nas eleições legislativas antecipadas de Portugal, quando o primeiro-ministro António Costa conquistou a maioria absoluta no Parlamento após seis anos de Geringonça, se misturou ao sabor amargo do forte crescimento da extrema direita representada pelo partido Chega, que saltou de um extremista solitário para 12 deputados. Agridoce foi a palavra mais repetida nos debates políticos para sintetizar o que as urnas disseram no último domingo (30).
 
A surpresa geral veio porque as pesquisas de intenções de voto na semana anterior à eleição colocavam PS e PSD — o tradicional partido da direita portuguesa — tecnicamente empatados. Essa situação levou ao voto útil nos socialistas, que terminaram a noite com 117 dos 230 deputados. Após seis anos de governo, com uma pandemia no meio, Costa não terá a pressão dos antigos aliados de esquerda no próximo mandato. Com maioria absoluta, pode governar sem ter que dar demasiadas satisfações, mas terá que lidar com uma oposição que é uma incógnita.
 
O "Novo português", o Iniciativa Liberal, criado em 2017, vai estrear com uma bancada de sete parlamentares e o Chega, de extrema direita, terá mais 11 representantes além de André Ventura - uma espécie de Bolsonaro que sabe usar talheres e tem estudos universitários. O líder do Chega teve uma carreira meteórica na política: ex-vereador no interior, foi eleito para o Parlamento pela primeira vez em 2019, concorreu à Presidência em 2021 e ficou em terceiro lugar com quase meio milhão de votos. Os seguidores dele devem fazer uma oposição barulhenta e há um temor sobre como será a atuação desses parlamentares.

Houve um nítido derretimento das bancadas mais à esquerda, do Bloco de Esquerda (BE) e da CDU (Coligação Democrática Unitária), coligação entre o Partido Comunista Português (PCP) e os Verdes. O BE e a CDU são os partidos que, em 2015, viabilizaram o governo do PS com Costa à frente numa aliança não-oficial que ficou conhecida como Geringonça.

Eles não integraram a administração, mas concordaram em permitir a formação do governo socialista simplesmente não votando contra. Durante os seis anos de governo dos socialistas, por vezes foram críticos, mas foram as divergências sobre o orçamento pós-pandemia que desmontaram a frágil Geringonça.

Catarina Martins, líder do BE, atribuiu ao voto útil no PS o mau resultado. “A estratégia do PS de criar uma crise artificial para ter uma maioria absoluta foi bem-sucedida”, disse, ao se referir à crise política que culminou na convocação de eleições antecipadas.
 
Apesar de ter atribuições mais institucionais, é o Presidente da República quem decide dissolver o Parlamento e convocar eleições quando não há acordo político. E foi exatamente o que Marcelo Rebelo de Sousa fez no final de outubro, quando ainda não havia notícias sobre a variante ômicron do coronavírus.

“O que está feito, está feito”, disse aos repórteres o ex-professor universitário e ex-comentarista de política da televisão de 73 anos conhecido por adotar um perfil neutro na Presidência, apesar de ter históricas ligações com a direita.
 
Mesmo com a pandemia, a participação foi maior (58% foram votar, contra 49% em 2019), um ponto comemorado por todos os partidos em um país no qual a abstenção vem crescendo desde 1975, quando a Revolução dos Cravos derrubou a ditadura de Salazar.

Durante a campanha, todos os líderes políticos reforçaram que era seguro votar, mesmo com o alto número de casos de covid-19. Cerca de 1 milhão de portugueses, 10% da população, estavam em isolamento profilático no dia da votação, seja por teste positivo ou por contato com casos da doença, e puderam votar na última hora de urnas abertas.

Os primeiros sinais de como será a próxima legislatura foram dados nos discursos dos líderes de cada partido na noite eleitoral. António Costa sinalizou que “maioria absoluta não é governar sozinho”. “Essa será uma maioria de diálogo com todas as forças políticas”, disse.

Rui Rio, líder do PSD, lamentou a desunião da direita e indicou que pode deixar a liderança do partido: “E agora, como eu posso ser útil?”. Já o tom de caos da oposição de extrema direita ficou evidente no discurso de vitória do líder do Chega, André Ventura: “António Costa, eu vou atrás de ti agora”, gritou.
 
A vitória do PS foi comemorada além-mar. Para o Brasil, a proximidade histórica entre os socialistas portugueses e o PT garante mais um trunfo para a campanha de Lula.

Os movimentos observados nas eleições portuguesas se assemelham ao cenário atual de dois países onde o ex-presidente brasileiro esteve recentemente na Europa: na Espanha um partido de extrema direita também é a terceira força política e os socialistas estão no governo, e na Alemanha, onde recentemente os sociais-democratas voltaram ao governo e os extremistas têm cerca de 10% do eleitorado.

Em Portugal, a onda extremista demorou um pouco mais do que em outros países, mas chegou com força e não é assim tão diferente do bolsonarismo. Tirando a apresentação, o conteúdo é o mesmo. Os integrantes do Chega frequentemente fazem manifestações racistas, homofóbicas e xenófobas. Não será surpresa se o debate no Parlamento de Portugal ficar mais parecido com o cercadinho do Alvorada.

Edição: Thales Schmidt