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“Ano que vem, os acidentes vão acontecer de novo”, diz urbanista sobre deslizamentos em SP

Falta de planejamento urbano e processo de gentrificação faz com que famílias de baixa renda morem em áreas de risco

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Os temporais, que atingem o estado desde o último sábado (29), também causaram deslizamentos de terra, transbordamento de rios e alagamentos - Prefeitura de Franco da Rocha

Ano após ano, o cenário de acidentes causados pelas chuvas no verão se repete em São Paulo e em outras regiões do país. Desde a última sexta-feira (28), o estado paulista já soma 2.824 famílias desabrigadas ou desalojadas e 24 óbitos decorrentes de desmoronamentos, deslizamentos e enchentes, de acordo com o boletim da Defesa Civil estadual.  

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Do total de mortes, 17 foram registradas na capital paulista e região metropolitana, onde o volume total de chuva ficou acima da média histórica para o mês de janeiro, que é de 255,7 milímetros. Até as 13h de domingo (30), foram 284 milímetros, segundo o Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE) da capital paulista.  

A despeito da quantidade de água, “a culpa” pelos acidentes “nunca é da chuva”, afirma a urbanista Danielle Klintowitz, coordenadora do Instituto Pólis. “A gente tem um processo de desenvolvimento urbano que propicia a formação da cidade com pouca regulação urbanística para habitação popular.” 

Processo de gentrificação 

Segundo Klintowitz, o mercado imobiliário privilegia a construção de empreendimentos em áreas economicamente lucrativas e viáveis das cidades, com mais infraestrutura, oferta de serviços e, geralmente, centrais. Isso, no entanto, eleva o custo de vida nesses espaços, fazendo com que muitas famílias precisem se mudar para áreas mais afastadas, com menor custo de vida, mas também com menos infraestrutura. Nesses espaços mais periféricos, as áreas de risco aparecem, frequentemente, como uma das alternativas.  

“Como a gente não tem nenhuma política habitacional adequada, o que resta à população mais pobre é justamente ir para as áreas não valorizadas pelo mercado, que têm fragilidade ambiental, normalmente irregulares, e que acabam sofrendo quando tem esses eventos climáticos”, afirma. 

“Não há políticas habitacionais desenhadas para a população mais vulnerável. Portanto, no ano que vem, esses acidentes vão acontecer de novo. É uma tragédia anunciada, porque a única forma de resolver é ter uma política habitacional estruturada, o que não existe. O problema habitacional é um problema de vida ou morte. Essa semana a gente viu várias pessoas morrerem por causa de problemas habitacionais.” 

::Enchentes não são “puramente” naturais, explicam pesquisadores::

De acordo com Josué Rocha, um dos coordenadores nacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o cenário faz parte do processo de gentrificação, ou seja, de transformação social dos centros urbanos, com a ocupação predominante de moradores de camadas mais ricas da sociedade, acarretando na expulsão das mais pobres para as áreas onde o mercado não chega. 

“Isso é o que a gente observa no dia a dia em São Paulo. Não é à toa que as principais tragédias ocorreram nas franjas da região metropolitana de São Paulo”, como Francisco Morato, Franco da Rocha e Embu das Artes. 

Crescimento da população favelada 

Suzana Pasternak, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e vice-coordenadora do Observatório das Metrópoles, explica que a taxa de crescimento de domicílios favelados no Brasil cresce década após década num ritmo maior do que a taxa de crescimento de domicílios no geral, o que tem a ver com o processo de gentrificação. 

No estudo Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços nas análises a partir da Leitura Territorial do Censo de 2010, a pesquisadora mostra que "entre 1980 e 1991, os domicílios totais para o país cresceram a 3,08% ao ano, enquanto os favelados cresceram a 8,18% anuais. No período seguinte – entre 1991 e 2000 – os domicílios totais cresceram a 0,88% anuais, enquanto os favelados tiveram uma taxa de incremento anual de 4,18%. Entre 2000 e 2010, a taxa de crescimento anual do parque domiciliar brasileiro foi 0,57%, enquanto a dos domicílios favelados atingiu 6,93%”.  

Não há dados sobre a taxa de crescimento de domicílios entre 2010 e 2020, uma vez que o Censo Demográfico não foi realizado devido à pandemia e aos cortes de recursos por parte do governo federal. Pasternak acredita, no entanto, que a organização das cidades segue distanciando as populações em situação de vulnerabilidade para as áreas mais afastadas e frágeis. 

Políticas habitacionais  

A política habitacional não se restringe ao fornecimento de moradias, mas a uma questão mais ampla, que é o planejamento das cidades. Isso envolve, entre outros fatores, o provimento de infraestrutura e de acesso a espaços regulares.  

Faz parte de uma política urbana efetiva, explica Josué Rocha, do MTST, “o mapeamento das áreas de risco e a realocação dos moradores para moradias seguras”. Deve ser promovido, inclusive, “o combate à especulação imobiliária” por meio da legislação urbana, “para impedir que as áreas, que começam a receber melhorias do poder público, passem por um processo de gentrificação, de hipervalorização dos imóveis e de expulsão das famílias para locais cada vez mais distantes”. 

::Raquel Rolnik: "A captura da política habitacional pela lógica financeira é perversa"::

Mas, segundo Danielle Klintowitz, o que existem são apenas políticas emergenciais e de baixo impacto, como o auxílio aluguel. O benefício, cujo valor atualmente é de R$ 600, com duração de 18 meses, é destinado a famílias removidas em decorrência de obras públicas estratégicas e de acidentes em áreas de risco, como desabamentos, inundações e alagamentos.  

“É uma política habitacional muito ruim, porque paga muito pouco para as famílias. Com esse valor, onde as famílias vão morar? Nas mesmas áreas de risco de onde elas saíram. É uma política que enxuga gelo, que faz essas famílias migrarem de uma situação precária para outra situação precária, sem resolver verdadeiramente o problema”, afirma Klintowitz. 

Exemplo disso são as famílias de baixa renda que foram removidas das Favelas Aldeinha e do Sapo entre 2007 e 2011, durante a Operação Urbana Água Branca, por exemplo, e continuam vivendo em moradias precárias, apesar de receberem auxílio aluguel. Conforme o Departamento de São Paulo do Instituto de Arquitetos do Brasil, foram reservados R$160 milhões para a construção de 728 habitações para as famílias removidas. Entretanto, até o momento, nenhum edital para licitar o projeto foi publicado. 

Em 2020, a Prefeitura de São Paulo deixou de investir aproximadamente R$ 1 bilhão do saldo do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) – um dos mecanismos de financiamento do desenvolvimento urbano previsto no Plano Diretor Estratégico (PDE) –, segundo a Nota Técnica Políticas Públicas, Cidades e Desigualdades, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), sediado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). 

Os responsáveis pela nota técnica afirmam no documento que o saldo acumulado “denota a não priorização e/ou a não urgência desses investimentos, a dificuldade da gestão local em executar esses recursos, ou ainda a possibilidade de compor um saldo de caixa positivo, na direção do superávit fiscal do município”. Em outro trecho, afirmam que “a não execução dos recursos do fundo chama atenção tendo em vista a demanda não atendida em habitação social e mobilidade urbana”. 

Nas palavras de Klintowitz, “a gente não tem falta de leis, nem de planejamento. A gente tem falta de implementação das políticas urbanas, tanto as de regulamentação de solo quanto as habitacionais, por parte dos governos estadual, municipal e federal”. 

Prefeitura de São Paulo

O Brasil de Fato enviou um e-mail à Prefeitura de São Paulo e à Secretaria Municipal de Habitação questionando o uso do Fundurb e a publicação do edital para a construção de casas para as famílias removidas pela Operação Água Branca.

A Prefeitura de São Paulo informou, por meio da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab-SP), que "o processo licitatório para a construção das 728 unidades habitacionais foi iniciado, no entanto, houve a suspensão temporária para realização de ajustes técnicos". A gestão ainda informou que 587 famílias que foram removidas "recebem o benefício de auxílio aluguel, que será concedido até o atendimento habitacional definitivo".

Sobre o Fundurb, a Prefeitura afirmou que o fundo "possui um Conselho Gestor, constituído por integrantes da sociedade civil e do Poder Público, sendo atribuição deste Conselho deliberar sobre os projetos que receberão os recursos disponíveis no Fundo. A liberação da verba acontece numa etapa posterior à apresentação pelas Secretarias competentes dos projetos aprovados".

Edição: Monique Santos