Ceará

VISIBILIDADE TRANS

Entrevista | "Os dados de violência contra travestis e transexuais têm aumentado no nosso país"

Andrea Rossati falou com o Brasil de Fato sobre as lutas e direitos da população trans e travesti brasileira

Brasil de Fato | Juazeiro do Norte CE |

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A ATRAC além de realizar ações de prevenção, faz também o acompanhamento de violações dos direitos humanos contra a população trans - Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará

O Dia Nacional da Visibilidade Trans é celebrado em 29 de janeiro, dia que, em 2004, um grupo de ativistas transexuais foi ao Congresso Nacional pela primeira vez para um ato político em defesa da diversidade de gênero. Para falar sobre a importância da data, sobre as lutas e direitos da população transexual e travesti brasileira, o Brasil de Fato conversou com Andrea Rossati, presidenta da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (ATRAC). Confira

Brasil de Fato – Qual a importância do Dia Nacional da Visibilidade Trans?

Para nós, mulheres e homens trans, e para as travestis, essa data possui uma simbologia muito grande. Foi em 29 de janeiro 2004 que pela primeira vez o Ministério da Saúde recebeu uma comissão de travestis e mulheres transexuais que estavam ali para reivindicar políticas públicas para a comunidade trans, para uma população que sofria e sofre tanto preconceito e tanta discriminação que é o movimento trans do Brasil e do mundo como um todo.

Então, essa data tem grande importância porque o governo abriu  pela primeira vez as portas para receber o movimento de travestis e mulheres transexuais, e marcou o início do diálogo entre o governo federal e o movimento de travestis, mulheres transexuais e homens trans.

Brasil de Fato – Quais são os desafios da população trans do Brasil com o atual governo?

Podemos dizer que de lá para cá a nossa realidade teve um retrocesso. Nós tivemos um retrocesso gigantesco em relação a políticas públicas de direito humanos para a população LGBTQIA+ brasileira e, principalmente, para travestis, mulheres transexuais e homens trans. Se em 2004 iniciamos um diálogo com o governo federal que marcou o dia da visibilidade trans e abriu caminhos para o movimento LGBT, para população de travestis e mulheres transexuais hoje nós podemos dizer que não temos mais essa abertura. Hoje não existe um diálogo democrático e saudável entre governo federal e a população LGBTQIA+ do Brasil. Na verdade, o que existe é um diálogo truculento por parte do governo federal que, de certa forma, não tem esse cuidado, não tem esse tratamento humanizado para com a população LGBT, sobretudo para com a de travestis e mulheres transexuais.

Então nós tivemos esse retrocesso e nesse momento estamos nos articulando e somando forças inclusive com outros movimentos populares como de Mulheres, Movimento Negro e tantos outros movimentos de direitos humanos para que possamos, de certa forma, reivindicar os acessos aos nossos direitos, para que possamos ser pelo menos ouvidas nesse atual desgoverno.

Brasil de Fato – Andrea, você falou um pouco sobre os retrocessos. Você consegue listar alguns desses retrocessos que estão acontecendo?

Olha, eu acho que o pior retrocesso nos direitos humanos é você ter uma pessoa sentada na cadeira presidencial que a todo momento destila o ódio, a intolerância, o desamor, a falta de afeto, a falta de respeito e a violência. Eu acredito que não existe maior retrocesso do que ter hoje na figura do presidente da república um homem que, ao invés de dar exemplo do respeito, da fraternidade, do amor ao próximo, faz totalmente o contrário.

Brasil de Fato – Qual é a realidade atual sobre a violência contra as pessoas trans no Ceará e no Brasil de uma maneira geral?

Infelizmente a realidade, a conjuntura, os dados estatísticos sobre o quantitativo da violência contra a comunidade LGBTQIA+ brasileira, sobretudo para com travestis e transexuais são dados preocupantes e são dados horrendos. Hoje, a região nordeste, assim como a região sul do país, possui estados onde se mais violam os direitos humanos em razão da orientação sexual e da identidade de gênero, e dentro da região nordeste o Ceará está aí como um dos pioneiros nesse ranking de violação contra a população trans.

Os dados estatísticos de violência, de assassinatos contra travestis e transexuais têm aumentado significativamente no nosso país e é triste dizer e reconhecer que nós vivemos em um país que é visivelmente um dos principais países onde mais tem violações de direitos humanos contra a população LGBTQIA+, e isso requer uma atenção enorme do poder público, das autoridades, do judiciário, da universidade, da sociedade civil como um todo.

Tenho dito que o preconceito, a homofobia, a discriminação, e todo tipo de preconceito só vão acabar quando os não-LGBTs, ou seja, quando os homens e mulheres heterossexuais e cisgêneros de boa vontade disserem que não querem mais viver num país onde se tira vida de outra pessoa por não concordar com a orientação sexual e identidade de gênero dessa pessoa. E somente assim eu acredito que a LGBTfobia possa diminuir.

Brasil de Fato – Você acredita que esse movimento já se iniciou ou ainda não?

Já começou. Eu acredito que já começou. Inclusive nós temos provas disso quando vemos pessoas heterossexuais que não são preconceituosas, que não toleram o preconceito e estão sim, muitas vezes nas ruas, nas redes sociais, nos espaços de comunicação lutando contra esses preconceitos e contra essas discriminações.

Brasil de Fato – O estado do Ceará oferece algum tipo de cuidado, apoio ou acompanhamento para pessoas trans que sofrem algum tipo de agressão?

Sim. Nós temos hoje várias legislações no estado do Ceará, no município de Fortaleza que veda a discriminação contra a população LGBT, principalmente contra travestis e transexuais. E hoje nós temos dois equipamentos importantíssimos que eu posso citar aqui, sendo um deles no município de Fortaleza e outro no âmbito do estado do Ceará. O primeiro é o Centro de Referência Municipal de Enfrentamento LGBTfobia Janaína Dutra, equipamento da Prefeitura Municipal de Fortaleza que recebe denúncia de violação de direitos humanos, de homofobia, transfobia e tem acompanhamento dessas denúncias através de uma equipe técnica formada por advogados, psicólogas e assistentes sociais. Janaína Dutra que foi a fundadora e primeira presidenta da associação foi também a primeira travesti a ter carteira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e primeira travesti advogada do Brasil, onde contribuiu com a criação do programa Brasil Sem Homofobia na gestão do ex-presidente Lula (PT)

Além do centro municipal nós temos hoje o Centro de Referência Estadual Tina Rodrigues, equipamento do Governo Estadual que combate o preconceito, discriminação e violação de direitos humanos no interior do estado. Esse equipamento leva o nome da ex-presidenta da ATRAC, a Tina Rodrigues, que me antecedeu e que faleceu por conta da covid-19.

Tenho muito orgulho em hoje estar ocupando essa presidência que já foi de duas grandes guerreiras, Janaína Dutra e Tina Rodrigues.

Brasil de Fato – Quais atitudes uma pessoa trans deve tomar em situação de agressão? Para onde ela deve ir e o que deve fazer a partir do momento da agressão?

A primeira coisa que uma travesti ou uma mulher transexual deve fazer ao ser agredida ou sofrer qualquer tipo de violência é procurar a delegacia especializada da mulher mais próxima. Hoje, a Delegacia Especializada das Mulheres acolhe e atende travestis e mulheres transexuais vítimas de violência.

Na delegacia elas serão acolhidas por outras mulheres que são agentes de segurança, que são orientadas a prestarem um atendimento mais humanizado. Então travestis e mulheres transexuais que sofrem algum tipo de violação de direitos humanos tem que procurar a Delegacia da Mulher, fazer o boletim de ocorrência, abrir um termo circunstancial de ocorrência e fazer a denúncia no Centro de Referência Janaína Dutra ou Tina Rodrigues.

Essa denúncia deve ser acompanhada e nós não podemos esquecer que o Supremo Tribunal Federal (STF) considera a LGBTfobia como crime, equiparando à lei do racismo. Então as pessoas tem que ter muito cuidado porque a homofobia, transfobia, violações, violência, agressão física, verbal ou psicológica contra as travestis, contra transexuais, contra gays ou contra lésbicas são crimes, e caso a vítima consiga provar que sofreu aquele tipo de discriminação você pode ser presa por conta desse preconceito e dessa violação em direitos humanos.

Brasil de Fato – Atualmente é possível vermos pessoas transexuais em diversos segmentos sociais. Qual a importância de ter essas pessoas ocupando esses espaços?

Muito importante, apesar da intolerância e do preconceito, porque a própria sociedade não-LGBTfóbica está aí contribuindo e ajudando para que a população LGBT como um todo consiga adentrar todos os espaços da sociedade, seja na arte, na cultura na teledramaturgia, ou em outras áreas. Hoje já conseguimos assistir gays, travestis, lésbicas em séries, filmes, novelas. Isso é sinal de que nós estamos adentrando cada vez mais esses espaços, e para além desses espaços, estamos adentrando também na educação, saúde, comunicação, jornalismo, etc. Mas é porque antes as pessoas não tinham essa coragem de se assumirem, mas agora acontece diferente, as pessoas tem aí diversas funções, carreiras, profissões e buscam se assumir mais cedo ainda para dar a sua parcela de contribuição para um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

Brasil de Fato – Você é presidenta da Associação de Travesti e Mulheres Transexuais do Ceará (ATRAC), queria que você explicasse pra gente o que é a ATRAC?

Bom, Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Estado do Ceará, a qual é uma honra muito grande eu estar hoje como presidenta, porque representa todas as travestis e todas as mulheres transexuais do estado do Ceará, além disso, me honro em hoje ocupar a mesma cadeira já ocupada por Janaína Dutra e Tina Rodrigues. Janaína foi a primeira presidenta e Tina foi a primeira vice-presidente da ATRAC, elas fundaram a associação no intuito de que pudessem acolher todas as travestis e transexuais do estado e pudessem, de certa forma, orientar essas meninas a resgatarem a cidadania que muitas vezes é nos arrancada, muitas vezes, inclusive, por nossos próprios familiares. Quando a maioria de nós somos expulsas de casa – eu fui expulsa de casa – quantas de nós fomos agredidas fisicamente? Quantas de nós fomos apedrejadas simplesmente por amar diferente, simplesmente por ter uma orientação sexual e uma entidade de gênero diferente?

A associação vem justamente para isso, acolher e orientar essas meninas de que outro mundo é possível, que nós podemos sim, mesmo com todo o preconceito, com toda a discriminação, concluir o ensino fundamental, concluir o ensino médio, prestar o vestibular, Enem, entrar para faculdade e nos formar. E é por conta desse apoio institucional da ATRAC, apoio muitas vezes psicológico e emocional que dizemos para essas meninas que elas não estão sozinhas, que elas podem reivindicar políticas públicas na área da segurança, da saúde, na área da educação. Então, de fato a ATRAC veio para cutucar o poder público, o poder judiciário, o poder executivo, para que a gente possa ter políticas públicas efetivas e de direito para a população de mulheres transexuais do estado do Ceará. Esse é o papel da ATRAC.


Ação de distribuição de mais de 1.600 itens para travestis e pessoas trans em Fortaleza. / Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará

Brasil de Fato – Quais são as ações que vocês desenvolvem na associação?

Nós realizamos ações de prevenção, de distribuição de preservativos, géis lubrificantes, encaminhamento de exames médicos, acompanhamento psicológico e emocional, mas o foco maior da ATRAC é a legislação, é o acompanhamento dessas violações de direitos humanos, é o combate ao preconceito, a transfobia, é o acompanhamento das denúncias, desde a realização da denúncia até saber se o juiz já abriu o processo e depois disso saber como é que o processo está, se já possui algum réu, se terá julgamento, ou seja, o papel da ATRAC hoje é esse papel de advocacia, é de fazer com que a lei do racismo possa ser cumprida para o enfrentamento da transfobia, fazendo esse papel de fiscalização e de acompanhamento do que foi instaurado pelo STF, e saber que quem cometer vai ter que pagar por isso.

Brasil de Fato – E quem quiser conhecer mais sobre o trabalho da ATRAC, onde pode pegar essas informações?

Nesse momento nós estamos sem sede, mas podem estar entrando em contato conosco pelas redes sociais, basta procurar por ATRAC que pode ser encontrado e contatado. Pelas redes as pessoas podem ver e acompanhar as nossas ações e podem contribuir com apoio moral e também até mesmo está contribuindo de outras maneiras com a nossa associação.

Brasil de Fato – Andrea, a gente está chegando ao final da nossa entrevista e quero muito agradecer a sua participação. Você gostaria de deixar alguma mensagem final?

Eu espero que as pessoas que estejam me escutando possam, de certa forma, buscar fazer a parte delas, ou seja, muitas vezes a gente fala: "ah, mas tem preconceito, como é que pode tirar a vida de uma pessoa, porque é gay ou porque é travesti?", mas assim, muitas vezes me pergunto o que você está fazendo hoje para um mundo melhor? O que você está fazendo hoje para a gente ter um Ceará e um Brasil mais humano, sem preconceitos e discriminações? Quando a gente começa a fazer a nossa parte dentro de casa, na nossa família, com o vizinho, começamos a contribuir para um Ceará e um Brasil mais humano, sem LGBTfobia.

Então precisamos fazer a nossa parte, começar com a reeducação dentro de casa, com nossos parentes, vizinhos, colegas, amigos e dizer:" cara, olha, você paga o aluguel dela? Você paga os impostos dela? Você dá uma cesta básica pra ela? Deixa a pessoa ser feliz". Acho que quando nós começarmos a visualizar o outro como ser humano, quando nós começarmos a fazer a empatia, quando nós começarmos a nos colocar no lugar do outro, a gente melhora, cresce e evolui.

Para nós termos um Ceará, uma Fortaleza e um Brasil mais humano, livre de preconceitos e de discriminações e alcançarmos a tão sonhada cultura de paz, eu preciso fazer a minha parte e você precisa começar a fazer a sua parte. A gente não pode estar esperando pelo outro não. E da mesma forma que eu possa pensar em minimizar tanto sofrimento e tanto preconceito que essas pessoas passam outras pessoas também podem, e assim conquistaremos um mundo livre de tanto preconceito e de tanta discriminação.

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Edição: Francisco Barbosa