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Gás da Rússia vira instrumento geopolítico na crise ucraniana

Ameaça de sanções contra Moscou gera alerta sobre possível interrupção de fornecimento de energia na Europa

Rio de Janeiro (RJ) |
Campo de gás petroleira estatal russa Gazprom na península de Yamal - ALEXANDER NEMENOV / AFP

O fornecimento de gás da Rússia para a Europa se tornou um elemento central na crise entre Moscou e o Ocidente. Responsável por cerca de 40% do consumo da Europa, o gás russo é ameaçado de sofrer sanções dos EUA e da União Europeia no caso de uma ofensiva contra a Ucrânia.

O novo gasoduto Nord Stream 2, que possui capacidade de fornecer cerca de 55 bilhões de metros cúbicos por ano à Alemanha, foi concluído em 10 de setembro de 2021, mas ainda precisa de certificação final para operar. Os EUA buscam persuadir a Alemanha e a União Europeia para que a documentação seja adiada. No cenário da escalada da crise ucraniana nas últimas semanas, a plena realização do projeto econômico que conecta a Rússia e a Europa colocou a questão energética no epicentro de uma disputa geopolítica.

Enquanto o Kremlin vem repetidamente negando as acusações do Ocidente de que a mobilização de suas tropas perto da fronteira da Ucrânia significa a preparação para uma invasão, a temperatura em torno da crise ucraniana permanece alta. Nesta semana, as potências ocidentais subiram o tom sobre a adoção de sanções econômicas contra Moscou.

A ministra das Relações Exteriores do Reino Unido, Liz Truss, anunciou na última segunda-feira (31) que buscará endurecer a legislação do país para impor sanções mais rígidas à Rússia por conta do grande acúmulo de tropas russas perto da fronteira ucraniana. 

Segundo ela, até agora o Reino Unido só conseguiu impor sanções a figuras ligadas à desestabilização da Ucrânia, no entanto, a nova legislação proposta “dará o poder de impor sanções a uma gama muito mais ampla de indivíduos e empresas”. “Seremos capazes de atingir qualquer empresa que esteja ligada ao Estado russo, que se envolva em negócios de importância econômica para o Estado russo ou que opere em um setor de importância estratégica para o Estado russo”, destacou a ministra.

Quem depende de quem energeticamente?

O trunfo estratégico do projeto Nord Stream 2, para a Rússia, reside no fato de que o fornecimento de gás russo para a Europa poderá ser feito por uma rota alternativa ao transporte pelo território ucraniano. Hoje o gás que Moscou fornece à Europa passa necessariamente pela Ucrânia. O novo gasoduto tem uma rota de 1.900 quilômetros mais curta do que a atual.


Ao atravessar o Mar Báltico, o novo gasoduto poderá abastecer os alemães sem passar pela Ucrânia. / Nord Stream 2 AG / AFP

O analista-chefe do Fundo Nacional de Segurança Energética da Rússia, Igor Ushkov, afirmou ao Brasil de Fato que, em primeiro lugar, a produção de gás russo acontece cada vez mais ao norte. A principal base de obtenção de gás passou a ser na península de Iamal. "Assim, acontece que de Imal para a Europa é mais curto utilizar a rota do norte", observou.

Preocupada com o aumento da dependência energética da Europa em relação à Rússia, a Casa Branca declarou que tenta negociar rotas alternativas através de acordos de fornecimento de gás para Europa com outros países.

Segundo Ushkov, a Europa ainda é muito dependente do gás russo e não tem alternativa a curto prazo para suprir este abastecimento.

“Todas as conversas de que os EUA iriam chegar a acordos com Qatar, Austrália, Algéria e outros países africanos, de que todo o mundo de uma vez vai fornecer gás para a Europa são meras tentativas de acalmar os europeus, são tentativas de dizer para eles: 'Nós cuidamos de tudo, vocês terão gás sem o fornecimento russo, só não tenham medo de adotar duras sanções contra Rússia'”, argumenta.

De acordo com Ushkov, se a Rússia for excluída do fornecimento de gás da Europa, primeiramente o mercado europeu pode sofrer um aumento de US$ 5 mil a US$ 10 mil por mil metros cúbicos, o que levaria a uma crise energética global. “Se isso ocorrer durante a temporada de aquecimento, os europeus vão congelar, e possivelmente poderá haver falta de energia elétrica”, acrescenta.

Já no caso da Rússia, uma possível interrupção nas exportações de gás também seria um golpe forte na economia, pois a Europa é o principal mercado de exportação de Moscou. Para efeito de comparação, a Rússia exporta cerca de 175 bilhões de metros cúbicos quadrados para a Europa, enquanto vende para a China apenas 10 a 13 bilhões de metros cúbicos quadrados.

“Mais de 10% da renda do orçamento federal vem dos recursos de gás, logo das taxas de exportação sobre as vendas de gás. Por isso é claro que o orçamento federal também sofrerá [...] Para todos essa medida seria nociva e eu acredito que a Europa não considera seriamente a opção de proibir a compra do gás russo ao adotar sanções”, afirma Ushkov.

Ele ressalta também que a Rússia não tem a intenção de excluir o mercado europeu, lembrando que o país fornece gás à Europa há mais de 50 anos e nunca foi colocada a questão sobre a interrupção do abastecimento energético.

Leia mais: Rússia e EUA em pé de guerra na Ucrânia: cenário de conflito é real ou blefe de alto risco?

Ao comentar em que medida a segurança energética vem sendo usada como instrumento geopolítico, Igor Ushkov lembra que nas últimas semanas os estadunidenses e europeus têm falado abertamente que o Nord Stream 2 é um projeto muito bem-sucedido, porque o Ocidente está utilizando-o como instrumento de pressão contra Moscou. “Eles declaram isso aberta e oficialmente tanto a nível de ministros, quanto primeiros-ministros e chefes de Estado. Por isso, sim, no plano geopolítico a energética está sendo utilizada, mas justamente não da parte da Rússia, mas do lado ocidental”, completou.  

Gás russo movimenta interesses geopolíticos distintos

O economista russo, Vassily Koltashov, em entrevista ao Brasil de Fato, observa que o projeto Nord Stream 2 colocou o Ocidente em posições diferentes na sua relação com a Rússia. Enquanto os EUA optaram por uma retórica dura em relação a Moscou, a Alemanha sempre se posicionou mais hesitante, adotando uma postura de não estabelecer conexão entre a crise na fronteira ucraniana com a cooperação econômica no setor energético.

No entanto, no último dia 20 de janeiro, a Alemanha se juntou aos EUA ao declarar que pode aplicar sanções contra o Kremlin no caso de uma ofensiva militar russa na Ucrânia.


Desembarque de material bélico enviado pelos EUA para a Ucrânia em Kiev. / Sergei Supinsky / AFP

De acordo com Koltashov, é apenas uma “impressão que há uma contradição no fato de que o governo alemão inicialmente defendeu a construção do Nord Stream 2 e depois bloqueou o seu lançamento”. A estratégia da Alemanha, ao ameaçar não conceder a certificação final, tem o objetivo de “enfraquecer a posição dos EUA na Europa” em uma possível resolução da crise ucraniana.

“É possível que essa crise tenha uma resolução, que pode acontecer nos próximos meses. E se isso acontecer, a Alemanha gostaria muito de que isso aparentasse como um fracasso da política dos EUA no Leste europeu para que a Alemanha pudesse reforçar a influência sobre países como Polônia, República Checa, possivelmente nos Bálcãs”, argumenta o economista.

A estratégia dos EUA é clara. Com o desenvolvimento das reservas domésticas de xisto e a necessidade de exportá-lo na forma liquefeita, o aumento da dependência da Europa em relação gás russo transforma a Rússia em um concorrente mais competitivo na região.

“Neste sentido, o jogo que está se desdobrando agora em torno da Ucrânia, com todos esses rumores de uma ‘invasão russa’, representa um jogo muito complexo em que os interesses da Alemanha e da França não correspondem aos interesses dos EUA e Reino Unido. Podemos dizer que os parceiros da União Europeia pretendem colocar seus parceiros sob uma derrota de recursos e de moral, para que a Alemanha saia fortalecida”, acrescentou.

Vassily Koltashov diz ainda que, diante da instabilidade na Ucrânia, é difícil prever o que pode acontecer no país do Leste europeu. Com isso, a estratégia alemã seria conseguir garantir o fornecimento de gás através da Ucrânia, mas já com um governo não controlado por Washington.

Edição: Thales Schmidt