DISCURSO EM BRASÍLIA

Leonardo Sakamoto: Maior agressor de jornalistas, Bolsonaro defende 'liberdade de imprensa'

Presidente queria cutucar Lula na abertura dos trabalhos do Legislativo, mas acabou dando uma aula de cinismo

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Antes de participar da abertura dos trabalhos do Legislativo, Jair Bolsonaro compareceu à cerimônia que anunciou mudanças na prova de vida do INSS - Valdenio Vieira/PR

Apontado por relatório da Federação Nacional dos Jornalistas como a principal ameaça à liberdade de imprensa no Brasil, Jair Bolsonaro (PL) defendeu, nesta quarta (2), vejam só, a liberdade de imprensa. E nem corou as bochechas diante da contradição.

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"A nossa liberdade, a liberdade de imprensa garantida em nossa Constituição, não pode ser violada ou arranhada por quem quer que seja nesse país", disse o presidente em discurso na abertura dos trabalhos de 2022 do Poder Legislativo.

Jair queria cutucar o ex-presidente Lula, que defende o debate sobre a regulação de imprensa. Acabou dando uma aula de cinismo.

O Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, elaborado pela Fenaj, foi divulgado na semana passada com os dados de 2021. Nele, o presidente da República repete 2020 e aparece novamente como o principal agressor de jornalistas, responsável por 147 casos registrados, ou 34,19%. No total, foram 430 casos em 2021, dois a mais que o ano anterior.

Dirigentes da EBC, empresa pública de comunicação sob responsabilidade de Bolsonaro, responderam por outros 142 casos - ou 33,02% dos registros, principalmente por conta da censura baixada durante a atual gestão. E 4,65% dos casos partiram de manifestantes bolsonaristas.

Ele também aproveitou para cutucar o Tribunal Superior Eleitoral e setores do Congresso Nacional que analisam a exigência de que plataformas digitais tenham escritório no Brasil para poder operar em nosso território a partir de uma quantidade de usuários. "Os senhores nunca me verão pedir pela regulação da mídia e da internet. Eu espero que isso não seja regulamentado por qualquer outro poder", disse.

Das grandes plataformas, a única que não tem representação e, por isso, ignora sistematicamente as decisões judiciais sobre retirada de material de ódio, é o Telegram - aplicativo que Bolsonaro está preparando para articular seus seguidores nas eleições de outubro.

"A nossa liberdade acima de tudo", defendeu o presidente. O problema é que essa frase não apenas é um equívoco, mas vai contra as leis do país.

De acordo com a Constituição, nossos direitos individuais são limitados pelos direitos de terceiros e da sociedade, em um delicado equilíbrio. Sabemos que a liberdade de expressão não é direito absoluto porque não há direitos absolutos - nem a vida é, caso contrário, não haveria a legítima defesa. E que todos nós podemos ser responsabilizados quando abusamos desses direitos, usando nossa liberdade de expressão, por exemplo, contra a saúde ou a integridade física de outras pessoas.

Bolsonaro veio subverter esse processo, tornando regra a impunidade pelo ódio e pela mentira que mata e machuca espalhada em massa.

Desde que assumiu o poder, trabalha para propagar a ideia de que o interesse dos indivíduos é sempre mais importante do que o bem-estar da coletividade. Isso não vale a todo o indivíduo, apenas para o "povo escolhido" de Jair Messias, ou seja, os grupos que o apoiam, que fazem parte dos 15% que acreditam em tudo o que ele diz ou dos 9% que estão, hoje, com ele por conveniência.

Entre eles, estão garimpeiros, madeireiros, agropecuaristas que agem de forma ilegal, líderes religiosos ultraconservadores, empresários que desejam fazer o que quiserem sem ser importunados pela CLT, políticos e servidores públicos interessados em levar vantagem, milicianos e parte da banda podre das Forças Armadas e das polícias, entre outros.

No culto bolsonarista, a liberdade individual de não vacinar seus filhos contra a covid-19 é mais importante do que a vida das crianças e dos adultos que têm contato com elas; a liberdade de não usar máscara é mais importante que salvar vidas na pandemia; a de desmatar a Amazônia é maior do que os impactos mundiais das mudanças climáticas e a consequente falta de água para gerar energia e matar a sede; a de lucrar a qualquer custo é mais relevante do que a de garantir um mínimo de dignidade aos trabalhadores; a de correr nas rodovias está acima da integridade física de outros motoristas e da vida de suas famílias.

É esse culto que ele veio defender no Congresso Nacional nesta quarta. E é esse projeto de país que ele vai tentar aprofundar nas eleições do ano que vem. Vende-se como humilde, pedindo harmonia entre os outros poderes no discurso. Enquanto isso, na prática, erode o equilíbrio entre eles.

*Artigo publicado originalmente no Portal UOL.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.