Direitos humanos

Frente pelo Desencarceramento do Paraná denuncia à ONU violações aos direitos humanos

Dossiê foi entregue junto a documentos de entidades que lutam pelos direitos das pessoas privadas de liberdade

Brasil de Fato | Pato Branco (PR) |
Dossiê denuncia violações e torturas em presídios do estado do Paraná - Reprodução

A Frente pelo Desencarceramento do Paraná, junto a outras entidades que lutam pelos direitos das pessoas privadas de liberdade no Brasil, entregou um dossiê de cerca de 200 páginas ao subcomitê de prevenção à tortura da Organização das Nações Unidas (ONU), na terça-feira (1), em Brasília, denunciando violações e torturas em presídios do estado do Paraná.

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Denúncias

A professora aposentada e membro da Frente pelo Desencarceramento do Paraná, Marilene Lucas de Souza, assumiu a responsabilidade de levar até Brasília as denúncias. Em um dossiê de cerca de 200 páginas, com fotos, laudos e relatos, foram apresentadas as violações ocorridas, sobretudo durante o período pandêmico, quando os detentos ficaram duplamente isolados: privados da liberdade e do contato com as famílias.

“Temos denúncias na área de saúde, alimentação, na questão de escolarização, castigos físicos e/ou coletivos, torturas físicas e psicológicas. A Frente do Paraná se uniu à nacional a fim de expor que a Lei de Execução Penal (LEP) não vem sendo cumprida de maneira satisfatória tanto no Paraná como em outros estados”, explica. “O Brasil é signatário de um acordo internacional sobre tortura. Mas neste momento os responsáveis esqueceram-se disto”, complementa Marilene.

A reportagem do Brasil de Fato teve acesso a parte desse dossiê. 

Subnotificação de aprisionamento indígena

Integra o documento uma carta denúncia de 51 páginas elaborada pelo antropólogo e cientista social Felipe Kamaroski, sobre a prisão de indígenas no estado. O documento foi elaborado em janeiro deste ano, após reunião junto à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), em dezembro de 2021.

Na carta, o antropólogo detalha a divergência de dados sobre essa população privada da liberdade, o que afeta as comunidades, que sofrem pelo “desaparecimento” de parentes.

Segundo o censo demográfico de 2010, o estado do Paraná tem mais de 26 mil indígenas distribuídos em diversos Territórios Indígenas (TI), divididos em três etnias com maior representação: Kaingang, Guarani e Xetá.

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A carta chama atenção pelo fato de que, embora essas populações sejam expressivas no estado, elas são a minoria dentro do sistema penitenciário (pardas: 49,72%, brancas: 32,38%, pretas: 16,88%, amarelas: 0,81% e indígenas: 0,21%). Segundo o antropólogo, isso expõe a subnotificação dos casos, já que, ao entrar no sistema penitenciário, indígenas são descaracterizados, sendo incluídos no grupo dos “pardos”, violando a própria identidade étnica.

“Somam-se a isso, decisões do judiciário de tom racista, usando como argumentos para negar a etnicidade aos povos tradicionais o fato destes usarem smartphones, dirigirem automóveis e, em casos extremos, o mero domínio da língua portuguesa é usado como argumento para negar os direitos diferenciados”, diz trecho, em que o antropólogo chama de “assimilacionista” e “racista” a prática de juízes em definir um réu como indígena ou não.

Além disso, a falta de intérpretes no ato da prisão é apontada como outra violação, já que essas populações nem sempre possuem o pleno domínio da língua portuguesa e não possuem ciência das “leis do branco”. 

Ele cita o caso do indígena AntonioMenmuve Adriano, morador da comunidade de Rio das Cobras, no município de Laranjeiras do Sul. De acordo com o relatório, Adriano foi preso duas vezes e, em ambas, foi fichado como “pardo":As circunstâncias das duas prisões foram em locais próximos à aldeia, mas esse fato não fez diferença no tratamento dado ao indígena. A família de Antonio ficou dois anos sem saber o paradeiro dele, já que o advogado dativo designado para o caso não comunicou à Funai, nem à família do indígena. O judiciário, por sua vez, dispensou qualquer satisfação à família dele. Como agravante, a família de Antonio vive em condição de miséria, fato que somado ao não domínio da língua portuguesa impossibilitou seus parentes de procurar ajuda".

"Durante esses dois anos desaparecidos, Antonio aprendeu a falar português, uma vez que foi obrigado a conviver com não-indígenas. O reencontro com a família só foi possível em dezembro do ano passado (2021), depois que a família pediu dinheiro emprestado para outro indígena para poder autenticar documentos em cartório, algo obrigatório para confecção das carteirinhas de visita às unidades prisionais, mas que para pessoas que vivem em condição de miséria pode ser muito custoso”, acrescenta o relatório.

O antropólogo ainda chama atenção para fato de que, em 2020, um ano após a segunda prisão de Antonio, o Ministério da Justiça publicou a Nota Técnica nº77, que identificava as etnias dos indígenas presos, bem como o número deles, levantado pelo Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (Depen). Mas neste documento, que apontava para uma população de 1.390 indígenas presos no Brasil, nenhum estava no Paraná.

“Em termos hipotéticos, se Antonio fosse o único indígena preso no estado do Paraná em 2020, o que não condiz com a realidade, ele nem constava nos dados oficiais pelo fato de que estava sendo entendido como ‘pardo’ pelo sistema prisional”, sustenta.

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No entanto, levantamento feitos por outros órgãos apresentaram divergência nos dados. Conforme a carta, hoje, Depen alega a presença de 28 pessoas presas autodeclaradas indígenas no Paraná; a Defensoria Pública do Paraná, por meio do Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (Nupep), afirma que o número gira em torno de 48; a Funai, 5.

Com essa divergência, a atuação para garantia de direitos dessas comunidades aprisionadas entra em xeque, uma vez que cria o apagamento étnico de indígenas, que passam a ser considerados “pardos” e tratados como tal, sem as garantias previstas em Lei para o trato com pessoas dessas comunidades.

Complexo Médico Penal

Outro documento, que também integra o dossiê entregue ao subcomitê de prevenção à tortura da ONU, traz dois casos específicos, acompanhados no Complexo Médico Penal. São 87 páginas com fotos, laudos médicos e relatos.

Na semana passada, o Brasil de Foto publicou denúncias que constavam em relatórios da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná (CDH/Alep), com duras críticas contra o Complexo, definido, pelos relatórios, como uma “prisão comum” e não como um complexo médico.

O documento entregue por Marilene relata o caso do próprio filho, preso em dezembro de 2019, e que sofre de epilepsia refratária (quando a doença não responde a pelo menos dois tipos de medicação).

Mesmo com laudos médicos de instituições privadas e do próprio CMP que confirmam a doença, ele tem recebido, segundo o documento, altas dosagens de medicação, sendo encontrado em situações degradantes pelos familiares. “Como pode alguém que tem epilepsia, que andava normalmente, precisar de cadeira de rodas?”, questiona Marilene, após encontrar o jovem debilitado.


Laudo médico do próprio Complexo Médico Penal confirma doença neurológica / Reprodução

Outro caso é de um detento cadeirante, com muitas escaras, que sofreria de osteomielite (infecção nos ossos), além de portar a bactéria KPC (KlebsiellaPneumoniaeCarbapenemas), resistente a antibióticos. Segundo a carta, uma “situação ignorada pelo corpo clínico”, sofrendo com as arbitrariedades dos agentes”.


Documento denuncia negligência com detentos do Complexo Médico Penal / Reprodução

“O compromisso com a ressocialização foi esquecido”

Para Marilene, que foi a porta voz do Paraná para a o subcomitê, espera-se que, a partir dessas denúncias, haja uma cobrança mais incisiva, valendo-se do fato de que o Brasil é signatário de acordos internacionais que proíbem a tortura. Também se espera que o comitê leve os casos ao Executivo, Legislativo e Judiciário.

“As violações estão em todo sistema prisional. Não é possível comprar o discurso do gasto público. O discurso é um e a prática é outra [...] Já brigamos muito em todas as esferas brasileiras. Com esta morosidade, esperamos que providências sejam mais rápidas. Não creio que o governo queira piorar ainda mais a imagem no exterior. Já tem problemas com o genocídio de negros e indígenas, com o desmatamento. Muitas ajudas internacionais já estão sendo diminuídas por causa de ações do governo”, afirma.

Ela critica também a falha do sistema prisional brasileiro em atuar como agente da ressocialização das pessoas privadas de liberdade. Para Marilene, atualmente, as penitenciárias brasileiras são "verdadeiros campos de concentração."

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"O compromisso com a ressocialização foi esquecido. Presídios se tornaram verdadeiros campos de concentração. O direito à educação de qualidade está cada vez mais distante pois trabalha como linha de produção a fim de aparecer bem nas estatísticas. Poucos são os campos de trabalho para que os privados de liberdade se profissionalizem. E, ao que parece, não existe nenhum interesse em fazer com que as coisas funcionem”, diz.

Integraram a comitiva que foi a Brasília representantes de Minas Gerais, Bahia, Amazonas, Sergipe, Espírito Santo, Rondônia, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Paraná e das entidades Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), Pastoral Carcerária, Justiça Global, Coalizão pela Socioeducação, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Conectas, Iniciativa Memória Justiça Racial e Rede de Justiça Criminal.

Comitiva da ONU

A comitiva da ONU chegou ao Brasil no domingo (30) e cumpriu agenda junto a movimentos populares e autoridades, devendo ficar em solo brasileiro até esta sexta-feira (4).

Por ser signatário de acordos internacionais contra a tortura e demais violações que ferem aos direitos humanos, o Brasil recebe a visita dos representantes para avaliação de suas práticas.

Grupos de todo o Brasil se organizaram para enviar representantes e apontar as violações ocorridas nos presídios brasileiros. A entrega dos documentos ocorreu em uma reunião de cerca de duas horas, em que, por cinco minutos, cada um dos 20 representantes pode apontar a realidade do seu estado.

Fonte: BdF Paraná

Edição: Lia Bianchini