Jornalismo

As inestimáveis contribuições do Wikileaks para o jornalismo e movimentos populares

As informações compartilhadas pelo Wikileaks têm fortalecido a resistência contra governos repressivos

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Soldado dos EUA no aeroporto de Cabul, no dia 16 de agosto de 2021. - Wakil Kohsar / AFP

Por todo o mundo, a situação deplorável do editor Julian Assange chamou a atenção de movimentos populares, jornalistas, associações jurídicas e cidadãos. Assange tem passado os últimos três anos definhando na prisão Belmarsh, no Reino Unido, após viver por seis anos dentro da embaixada equatoriana em Londres. Esses quase dez anos de confinamento tiveram consequências desastrosas sobre sua saúde mental, e ele enfrentou vários surtos de covid em Belmarsh.  

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Qual crime teria cometido o jornalista Julian Assange que justificasse tal punição? 

Assange e sua organização, o Wikileaks, publicaram milhões de documentos vazados, incluindo muitos de funcionários dos serviços de inteligência dos Estados Unidos que apontaram para brutais violações dos direitos humanos ocorridas nas inúmeras ações militares e guerras do país no exterior, muitas das vezes com o total conhecimento das instituições governamentais.  

Como dito pelo jornalista australiano John Pilger, Assange “expôs os segredos e mentiras que levaram à invasão do Iraque, Síria e Iêmen, o papel homicida do Pentágono em uma dúzia de países, o plano para as duas décadas catastróficas no Afeganistão, as tentativas de Washington de derrubar governos eleitos – como o da Venezuela –, a conspiração entre adversários políticos declarados (Bush e Obama) para abafar uma investigação sobre tortura e os documentos do vazamento “Vault 7” sobre a campanha da CIA que tornava um telefone celular, ou mesmo um aparelho de TV, em ferramentas para espionagem.  

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Portanto, não surpreende que a acusação injusta de Julian Assange tenha recebido apoio bipartidário nos Estados Unidos. Embora tenha sido Trump a acusá-lo de espionagem e a ter pedido sua extradição, foi Joe Biden quem continuou com o processo contra Assange. Por meio de suas revelações, Assange e o Wikileaks ameaçaram as narrativas hegemônicas e a agenda dos poderosos ao armar pessoas comuns com as informações de que elas precisam. Os vazamentos não foram publicados em centenas de veículos de mídia em todo o mundo somente para informar milhões de pessoas; eles também têm sido cruciais para as vítimas dos crimes mencionados nos próprios documentos vazados lutarem pela verdade e justiça.  

Leia abaixo sobre algumas das principais revelações publicadas pelo Wikileaks: 

Minando a legitimidade da “guerra global ao terror” 

Em abril de 2010, o Wikileaks publicou um vídeo originalmente de julho de 2007 que mostrava forças dos Estados Unidos atirando indiscriminadamente de um helicóptero em civis na capital iraquiana, Bagdá. Dois jornalistas da Reuters foram mortos, além de vários outros civis inocentes. O vídeo, chamado de “Assassinato Colateral”, derrubou a afirmação do Departamento de Defesa estadunidense de que as pessoas mortas no incidente eram “terroristas” e causou constrangimento entre as forças ocupantes.  

Antes da divulgação do vídeo, o Wikileaks tinha publicado as Regras de Combate das Forças dos Estados Unidos no Iraque em 2007. As informações ajudaram a mídia independente a constatar que a maioria das operações realizadas pelas forças de ocupação ocorriam em total desconsideração às regras que as tropas deveriam seguir. Ainda assim, ninguém foi julgado. 

Os Registros da Guerra do Afeganistão e do Iraque, publicados em 2010, expuseram em detalhes a tentativa de acobertar as atrocidades e violações dos direitos humanos cometidas pelos EUA e por outras forças internacionais contra civis inocentes. 

Esses e vários vazamentos subsequentes sobre o establishment de defesa minaram a narrativa sob medida da chamada “guerra global ao terror” como um passo necessário para garantir a paz e a segurança mundiais. Os vazamentos revelaram a natureza imperialista da guerra, com ganhos inesperados para o complexo militar-industrial. 

Revelações sobre tortura destroem a legitimidade estadunidense 

Os Arquivos de Guantánamo, publicados em 2011, e outros relacionados às detenções policiais (publicados no ano seguinte) ofereceram evidências incontestáveis do envolvimento dos Estados Unidos em violações sistemáticas dos direitos humanos nas chamadas “zonas de perigo” em várias partes do mundo, bem como na prisão da Baía de Guantánamo, em Cuba. Para além de ter ajudado ex-detentos a conseguiram reparação parcial, caso do libanês Khalid al Masri, os arquivos ofereceram também provas de torturas realizadas pela CIA e de como os inspetores da Cruz Vermelha foram enganados.   

O Wikileaks revelou também que as autoridades dos Estados Unidos deliberadamente mantiveram 150 homens presos por anos, apesar de saber que eram inocentes. Eles eram mantidos sob condições inumanas em nome da luta contra o terrorismo apenas para fortalecer o controle dos EUA. O jornalista da Al Jazeera Sami al-Hajj, por exemplo, foi detido em Guantánamo por anos, ainda que a CIA soubesse muito bem que ele não tinha quaisquer vínculos com o terrorismo. Seu período de detenção foi prolongado apenas para que a CIA pudesse extrair informações internas sobre o trabalho da Al Jazeera.  

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Os Estados Unidos espionam tanto seus aliados quanto seus inimigos 

Os vazamentos diplomáticos (Diplomatic Cables, em inglês) publicados em 2010/2011 e os arquivos secretos da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (conhecida pela sigla em inglês NSA) publicados em 2016 provaram que os EUA usaram suas embaixadas e agências secretas para avançar com sua agenda em todo o mundo. Os vazamentos, veiculados pelas principais publicações internacionais, confirmaram as especulações sobre as intervenções estadunidenses nas tomadas de decisão diárias de inúmeros países. Obteve-se evidências de como as embaixadas estadunidenses protegeram governos autoritários se eles se aliassem aos EUA e conspirassem contra movimentos populares que desafiavam seus ditames. 

Os documentos revelaram que os Estados Unidos também usaram suas embaixadas para intimidar os países anfitriões e obrigá-los a seguir seus interesses. Isso aconteceu particularmente nos países da América Latina. As revelações levaram a intensas crises diplomáticas e políticas em muitos dos países onde a intimidação ocorria. Na Bolívia, a embaixada estadunidense usou a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, conhecida pela sigla em inglês USAID, para promover seus próprios interesses e dividir grupos indígenas. A embaixada estadunidense na Venezuela testou e recrutou oficiais para espionar contra o governo. No Peru, foi revelado como Keiko Fujimori conspirou com a embaixada dos EUA para restituir ao poder, por meio de golpe, seu pai, o ditador Alberto Fujimori.  

Publicada em 2018, a lista de compras da embaixada dos EUA mostrou como eles fizeram anúncios para coordenadores de polígrafo na Guatemala naquele mesmo ano, em um aparente movimento para impedir que os requerentes de asilo “mentissem” sobre a perseguição que enfrentavam em seu país. 

O caso da ilha de Chagos, exposto nos vazamentos diplomáticos, é um clássico exemplo de como os EUA exploram a causa da proteção ambiental para seus próprios ganhos estratégicos enquanto nega direitos às pessoas. Segundo os arquivos, autoridades estadunidenses conspiraram com as autoridades britânicas para estabelecer “a maior reserva marinha natural do mundo” no atol Diego Garcia. O intuito puro e simples era evitar que centenas de moradores locais recuperassem suas terras perdidas em 1966 por causa de uma base militar dos EUA. 

Derrubando mitos sobre a democracia dos Estados Unidos 

Em 2016, a então candidata à presidência Hillary Clinton teve seus e-mails vazados (hackeados a partir dos e-mails de John Podesta, presidente de campanha de Clinton) pelo Wikileaks. Os e-mails vazados estabeleceram a natureza dúbia de sua campanha presidencial e, segundo muitos, lhe custou a eleição. Eles também forneceram provas de como as eleições estadunidenses, celebradas como as mais livres e justas do mundo, são manipuladas por empresas bilionárias e por certos grupos de interesse por meio do uso de dinheiro. 

O vazamento dos e-mails provou o que escreveu Jeff Stein em artigo de 2016 para a Vox sobre Clinton ter dito que “fala aos seus eleitores mais ou menos o que eles querem ouvir” sem nenhuma intenção de cumprir com suas promessas. Este tem sido o padrão das estratégias de campanha adotadas pela maioria dos outros candidatos nas eleições estadunidenses, como ficou provado – mais uma vez – pelo governo Biden.