PALCO POLÍTICO

Projeto Cidade Integrada, substituto das UPPs no Rio, foi "imposto de cima para baixo"

Sociólogo especialista em violência é fundamental ter órgão de governança interno que incorpore lideranças comunidades

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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Projeto Cidade Integrada foi lançado em ano eleitoral com promessa retomar território em áreas sob o domínio do tráfico e da milícia - Tânia Rêgo/Agência Brasil

No Rio de Janeiro, no último dia 19 de janeiro, teve início o projeto "Cidade Integrada", com a ocupação pelas polícias civil e militar nas favelas do Jacarezinho, na zona norte, e da Muzema, na zona oeste. Segundo o governador Cláudio Castro (PL), o objetivo do programa é a retomada de território em áreas sob domínio do tráfico e da milícia, além de ser um modelo de segurança pública e de intervenções urbanísticas e sociais.

O governo do estado do Rio de Janeiro afirmou que o projeto é uma reformulação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), e que o programa só será implantado em outras favelas depois que tiver resultados no Jacarezinho e na Muzema. Porém, o projeto tem recebido críticas de moradores e especialistas pela falta de transparência e participação de lideranças das comunidades.

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Em entrevista para o programa Central do Brasil, transmitido pela TVT e produzido em parceria com o Brasil de Fato, o sociólogo do Laboratório de Análise da Violência, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e coordenador do livro “Os donos do morro”, que faz uma análise sobre os primeiros anos das UPPs no Rio, Ignacio Cano, explicou alguns pontos do projeto "Cidade Integrada".

Confira a entrevista na íntegra:

Central do Brasil: O projeto "Cidade Integrada" surge como uma nova promessa de libertar áreas do domínio do tráfico e da milícia e investir não só na segurança destes locais, mas também desenvolver projetos sociais e de urbanização, mas pouco se sabe como de fato isso vai funcionar. Existe uma relação com o lançamento tão rápido deste programa com estarmos em ano de eleições?

Ignacio Cano: O "Cidade Integrada" segue na linha de juntar intervenções policiais com programas sociais, e é claro que quando um governo faz um programa deste tipo em seu quarto ano, em um ano eleitoral, é inescapável para todo mundo a intenção eleitoral, ou seja, esse programa foi feito de repente para poder ser apresentado na arena eleitoral.

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O programa não foi construído junto com as comunidades, a prefeitura também não, o programa caiu do céu e junta alguns projetos do estado que já vinham acontecendo com outras ideias, que são apenas possibilidades, por exemplo, negociar com empresas de telefone e internet uma tarifa mais barata para os moradores das comunidades. Ou seja, o programa não foi desenvolvido de baixo para cima, mas de cima para baixo e com a promessa de ser feito para a população, em um ano de eleições.

Quais as semelhanças e quais as diferenças do projeto "Cidade Integrada" com as UPPs?

O programa tem várias semelhanças e a mais importante é a ideia de intervir simultaneamente com a polícia e ações sociais. Durante a época das UPPs, o secretario de segurança sempre insistia que a UPP não podia ser só polícia, tinha que ser investimento social. Mas todo mundo sabe que o investimento econômico que seria necessário para resgatar as comunidades da situação de precariedade seria enorme, e não há recursos, nem projeto político, hoje, no Brasil, que esteja disposto a investir estes recursos para realmente eliminar a desigualdade.

O que resta para a área de segurança é mudar a forma como o policiamento é feito, e isso foi onde a UPP fracassou, ela ficou na primeira fase, que era a ocupação, que era necessária, mas depois tinha que mudar para um policiamento mais horizontal, mais comunitário, e isso nunca aconteceu. E eu acho que neste projeto também não há nenhuma expectativa de que isso venha acontecer, ainda mais um projeto de curto prazo, em ano eleitoral.

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E uma grande diferença é que na época das UPPs teve um estudo sobre os territórios das comunidades antes delas serem ocupadas pela polícia, não era o estudo ideal, visto que o governo da época focou em áreas da zona sul e deixou de lado a baixada fluminense e outras áreas onde o envolto era mais pobre, mas houve um estudo. No caso deste novo projeto tudo indica que os locais escolhidos são mais emblemáticos para chamar a atenção.

Como você avalia o início da implantação deste programa?

Apesar de todas as limitações, eu vejo como uma boa coisa que este governo mostre como sucesso o fato de que conseguiu dar início a este projeto sem confrontos e tiroteios, porque é um governo que vem apostando no tiro na cabeça, vem aumentando a letalidade policial, que vem descumprindo as determinações do Supremo Tribunal Federal (STF) de evitar operações policiais em tempos de pandemia. Um governo que não só apostou no confronto, ele extrapolou o confronto, e agora vende como um sucesso o fato do projeto ter começado sem tiroteios. O governo percebe que só com tiroteios fica difícil se apresentar em um ano eleitoral.

E sobre as lideranças das próprias favelas não terem sido incluídas na elaboração do projeto?

Esse projeto, segundo o governo, pretende ter um órgão de governança interno que incorpore lideranças comunitárias. Isso foi algo que sempre defendemos para as UPPs e acabou não acontecendo. Fica difícil acreditar neste mecanismo de governança interna que incorpore as comunidades quando o projeto foi feito sem consultar ninguém.

A integração das policiais civil e militar neste novo projeto é uma coisa positiva?

A integração das polícias é sempre positiva, e isso foi uma dívida das UPPs que nunca conseguiram incorporar a polícia civil, e começaram e terminaram sendo um projeto da polícia militar. Além do patrulhamento, é preciso que haja investigações. Se de fato essa integração acontecer será positiva, mas precisamos esperar para saber como isso vai acontecer porque não acredito que terá uma mini delegacia em cada comunidade, então eles precisam explicar melhor isso.

Houve algumas denúncias de moradores sobre abusos por parte dos policias desde que o projeto "Cidade Integrada" começou. Como evitar que isso aconteça?

Denúncias contra a atuação da Polícia Militar nas comunidades são frequentes. A polícia age de uma forma na zona sul, nos bairros de classe média e alta e age de outra forma nas comunidades. Isso é certamente uma dívida histórica, é preciso rever como o policiamento é feito nestes locais, e até a gente conseguir mudar essa relação entre polícia e comunidade, denúncias continuarão acontecendo. Se a polícia fosse avaliada regularmente pela comunidade e tivessem conseqüências aí as coisas mudariam.

Qual a sua opinião sobre projetos, como este, que levam ações sociais e de segurança apenas em áreas dominadas por tráfico e milícia?

Nunca foi verdade que é preciso pacificar um território para poder investir. Você tem que investir nas áreas mais pobres da cidade independente se elas estão dominadas pelo tráfico ou milícia, e tem que criar programas para melhorar a segurança nas áreas mais conflagradas independente se elas são as mais pobres ou não.

Fonte: BdF Rio de Janeiro

Edição: Jaqueline Deister e Sarah Fernandes