Coluna

Fui eu quem matou o congolês

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Protesto antirracista em Brasília (DF) em repúdio ao assassinato do refugiado congolês Moïse Kabagambe
Protesto antirracista em Brasília (DF) em repúdio ao assassinato do refugiado congolês Moïse Kabagambe - Evaristo Sa / AFP
Moïse é banto, grupo étnico que integra os 5 milhões que foram vendidos como escravos no Brasil

Contratei algumas faxineiras ao logo da vida. Nessa semana, me pus a pensar nelas. Por que minhas faxineiras tinham feições tão parecidas com as desse congolês, o que mataram ao lado do quiosque?  

Como é mesmo o nome dele?

O homem foi espancado até à morte, com direito a plateia. As câmeras de segurança garantiram o espetáculo nas redes sociais.

Eu estava lá, com um porrete nas mãos. Matei o congolês. Acho que te vi ao meu lado. Algo te escorria pelo canto da boca.

Matei o congolês e depois fui ao cinema. No caminho, disfarçado de sargento da Marinha, matei outro preto: meu próprio vizinho, que voltava para casa do trabalho. Negro mexendo na mochila é bandido. Toma tiro, vagabundo. Minhas mãos têm sangue de gente preta.

:: Justiça por Moïse: milhares de manifestantes protestam contra assassinato de refugiado congolês ::

Minhas faxineiras, minhas “colaboradoras”: pretas, pobres e analfabetas.

Em viagens pelo país, vi dezenas de centenas de pessoas pretas reduzidas à condição de escravos. Pretas, pobres e analfabetas.

Toda essa gente tem as feições parecidas com a do congolês assassinado.

O congolês só foi morto porque havia câmeras de segurança. Se o assassinato não tivesse sido filmado, a morte dele não teria existido. As coisas só existem quando aparecem nas telas, nas redes.

::Levante Popular da Juventude faz ação para pedir justiça por Moïse Kabagambe no RJ::

O real, no assassinato do congolês, é a representação hiperbólica da morte em full HD. O congolês, de fato, não tem importância. O que importa é o espetáculo.

A dor consentida e bem-comportada da plateia. Uma lágrima escorre. Fiz a minha parte. Ninguém vai tocar fogo no país por causa de um preto refugiado, morto a pauladas. Seria demais.

Vou postar uma selfie do meu cachorro na esteticista. Quero likes.

::Coluna - E se Moïse Kabamgabe fosse um jovem branco e imigrante europeu?::

Quanto tempo vai demorar até esquecermos esse mais recente espetáculo de brutalidade? Quanto tempo vai demorar para que nos perguntemos: “como é mesmo que ficou aquela história do congolês?”.

O que não falta é preto para morrer na degola.

Uma amiga, branca, disse que chorou o dia todo a morte do congolês. Eu não chorei. Cansei de chorar a morte de preto.

O que não falta nesse país é preto para morrer de forma violenta. Tampouco falta plateia para chorar, no conforto climatizado da poltrona, a morte escancarada em tela mega-master-top-full, alta resolução. A hiper-realidade de vidas normatizadas por uma ética estoica e indolor. 


Manifestantes cobram por justiça para Moïse Kabagambe, congolês assassinado no Rio de Janeiro / Emilly Firmino / São Paulo

Prefiro chorar a minha própria morte. A minha incapacidade, a minha incompetência, o meu despreparo para ainda aceitar, no ano da graça de 2022, preto sendo morto em cadeia, em periferia, em favela. Dezenas de centenas de pretos sendo escravizados país afora.

No Brasil, oito de cada dez jovens mortos de forma violenta são negros. Boa parte deles são mortos por policiais. Jovens negros no Brasil são vistos como corpos matáveis.

Eu sou um homem branco, cisgênero, classe média, pós-graduado. Resido em bairro de “pessoas de bem”. Não se vê negro aqui, exceto faxineiras, serventes, serviçais.

Prefiro chorar minha própria impotência, meu desamparo, meu racismo estrutural, minha impossibilidade.

Meu bom mocismo de esquerda politicamente correta é insuportável.

Eu sou a cara branca de um Brasil desigual, racista, misógino e homofóbico.

Os negros são os fodidos. Uma maioria que vive, trabalha e morre como animais.

Moïse Kabagambe é o nome do congolês. Acabei de lembrar.  Em uma semana, estará esquecido. Linchamento como o de Moïse acontece um por mês, segundo o livro “Linchamentos – A Justiça no Brasil”, de José de Souza Martins. Como quase nenhum é filmado, fica por isso mesmo.


No Rio de Janeiro, cidade onde ocorreu o crime, manifestantes se concentram em frente ao quiosque onde Moïse foi assassinado / @pablovergarafotografia/MST-RJ

Moïse é banto, grupo étnico que integra o contingente de 5 milhões de africanos que foram vendidos, no Brasil, como escravos. Seiscentos mil Moïses morreram nos porões dos navios negreiros, antes do desembarque. O resto veio para morrer na praia, nos fundos de quiosque. Ou no mato, longe das câmeras.  

O que não falta é preto para morrer assassinado. O que não falta é branco para verter uma lágrima, antes de voltar aos seus afazeres.

A cada preto que morre, morremos um pouco, todos nós. Nada que façamos mudará o curso da história, mas atenuará nossa dor, comovente e narcisista. Que vergonha.

 

*Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo