Extrema direita

Caminhoneiros antivacinas causam caos na capital do Canadá

Comboio de caminhoneiros vindos de todo o Canadá ocupa Ottawa em protesto contra a vacinação obrigatória

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O fechamento de pontes no Canadá começa a afetar a indústria automobilística dos EUA - Spencer Platt Getty Images via AFP

A capital do Canadá, Ottawa, está sendo ocupada há quase duas semanas por um comboio de opositores das medidas restritivas contra a covid-19 no país. No fim de janeiro e sob baixas temperaturas, manifestantes chegaram buzinando e montaram um acampamento, estacionando seus caminhões e carros no centro de Ottawa. Além de interromper o tráfego, eles fecharam negócios e estão assediando e intimidando os moradores.

Agora, os protestos do "Freedom Convoy" (Comboio da Liberdade) se espalharam para além de Ottawa, bloqueando o tráfego e interrompendo o comércio no posto fronteiriço mais movimentado da América do Norte.

O movimento de protesto se tornou um ponto de encontro global para quem é contra as restrições anticovid, inspirando manifestações parecidas nos EUA, França, Austrália e Nova Zelândia. No domingo (06/02), o prefeito de Ottawa declarou estado de emergência, e a polícia, em inferioridade numérica em relação aos manifestantes, caracterizou a ocupação como um "sítio".

Como a situação chegou a esse ponto?

Oposição à obrigatoriedade da vacina

O "Freedom Convoy" surgiu no fim de janeiro, em resposta à obrigatoriedade da vacinação contra o coronavírus imposta pelo Canadá e pelos EUA para caminhoneiros transfronteiriços.

Enquanto cerca de 90% dos caminhoneiros transfronteiriços estão imunizados, há uma pequena minoria que teme perder seus empregos ou meios de subsistência devido ao status de não vacinado.

O comboio dos caminhoneiros logo se transformou numa cruzada mais ampla contra as restrições da pandemia e incluiu outras queixas da extrema direita. Alguns dos organizadores do comboio – figuras proeminentes de extrema direita – adotaram no passado a retórica islamofóbica ou nacionalista branca.

Embora mais de 80% dos canadenses estejam vacinados, e as pesquisas apontem que a grande maioria apoia as medidas restritivas, esse apoio tem diminuído nas últimas semanas.

Centenas de carros e caminhões se juntaram ao comboio enquanto este cruzava o país, chegando a Ottawa em 28 de janeiro.

Conexões com a extrema direita

Alguns manifestantes têm sido vistos usando símbolos nazistas e agitando bandeiras racistas. O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, se referiu a esses manifestantes como uma "pequena minoria marginal".

Mas especialistas disseram que há "conexões evidentes" entre o protesto dos caminhoneiros e uma coalizão internacional de extrema direita.

Uma campanha na plataforma GoFundMe arrecadou 7,6 milhões de dólares para apoiar o comboio, antes de ser desativada, e as doações serem reembolsadas. "Muitas doações eram anônimas e claramente efetuadas por atores de extrema direita americanos", afirmou David Hofmann, professor associado de sociologia da Universidade de New Brunswick, no Canadá, que estuda grupos de extrema direita.

Além disso, contas em redes sociais são usadas para "alimentar câmaras de eco da extrema direita, para fazer a população pensar que os elementos de extrema direita do comboio de caminhoneiros são mais numerosos e mais barulhentos do que realmente são", contou Hofmann.

Receios quanto à segurança

A moradora Natalie Lyle conta que não se sente segura desde que o comboio chegou à região. Lyle vive com sua família no centro de Ottawa e trabalha na clínica de vacinação de uma escola. Ela diz que hesita em sair de casa, temendo intimidações. "Estou me perguntando: podemos sair? O que vai acontecer?"

Mas, para Lyle, mesmo estar dentro de casa não parece seguro: manifestantes estão se reunindo perto de sua residência, e um dia ela descobriu que a fechadura da porta de seu prédio havia sido arrombada.


Os caminhoneiros usam faixas para defender a "liberdade" contra a vacinação obrigatória / Dave Chan / AFP

Quando ela viu vídeos de Romana Didulo – figura canadense  proeminente do movimento do QAnon, que exigiu a execução de qualquer um que ajudasse a vacinar crianças – no protesto não muito longe de sua casa, queimando bandeiras canadenses, ela ficou especialmente temerosa.

"Aqui estou eu, na equipe da clínica na escola, cujo objetivo é vacinar as crianças e suas famílias. Comecei a ficar com muito medo, porque não há segurança nas clínicas escolares, qualquer um pode entrar. Pode ser irracional, mas a ameaça parecia muito real."

Moradores estão no limite

Os moradores relatam o uso generalizado de fogos de artifício, bloqueio de cruzamentos, abandono de carros e caminhões, consumo ilegal de álcool nas ruas, bem como a utilização de bancos de neve como banheiros.

O barulho também tem sido um problema: os manifestantes do comboio tocaram poderosas buzinas e sirenes dia e noite durante uma semana, impedindo os moradores de dormir, até que um tribunal local expediu uma liminar.

No começo de fevereiro, funcionários de um abrigo local para sem-tetos foram supostamente agredidos verbalmente por manifestantes que exigiam ser atendidos.

Mary Huang, presidente da associação comunitária de Centretown, um dos bairros afetados, afirmou que os moradores estão sendo intimidados ​e atacados por usarem máscaras sanitárias. "Um funcionário de uma sorveteria local foi agredido e jogado no chão porque ele estava usando uma máscara." Não ficou claro se o agressor fazia parte dos protestos do "Freedom Convoy".

A associação comunitária organizou um serviço de "transporte seguro" e entrega de alimentos a domicilio para membros vulneráveis ​​que têm medo de sair de casa pela ameaça de abusos.

Negócios prejudicados

Milhares vivem no centro de Ottawa, e a área abriga centenas de firmas. Segundo uma pesquisa de uma coalizão de associações empresariais locais, 48% dos estabelecimentos do centro da cidade fecharam antes ou durante o protesto, e 76% dos comerciantes consultados afirmaram que o protesto prejudicou financeiramente seus negócios.

Stewart Cattroll, dono de um restaurante no centro da cidade, relatou que teve que implementar medidas de segurança para seus funcionários. "Muitos manifestantes se recusam a usar máscaras, gritam com os funcionários e outros clientes e exigem que eles removam suas máscaras."

Seu restaurante está perdendo milhares de dólares devido às interrupções causadas pelo comboio: "Dado o já precário estado dos negócios, em consequência de dois anos de pandemia, o comboio pode ser o que nos fará fechar permanentemente as portas."

Os moradores estão cada vez mais frustrados com a incapacidade da polícia da cidade e de qualquer nível de governo para resolver o problema. "A polícia local até agora fez muito pouco esforço para prender manifestantes, fazer cumprir as leis de trânsito de Ottawa e exigir que os manifestantes desobstruam as ruas da cidade", queixou-se Cattroll.

Comboio divide canadenses

Embora uma pesquisa recente tenha mostrado que a maioria dos canadenses apoia a imposição de mais restrições aos não vacinados, o comboio conquistou o apoio de quase um terço da população.

O comboio foi ideia de James Bauder, um autoproclamado teórico da conspiração e adepto do movimento QAnon. Muitos dos organizadores do movimento de protesto têm conexões com grupos de extrema direita.

No entanto, alguns manifestantes dizem ser uma minoria que causa problemas nas ruas da área conhecida como Parliament Hill, sede do governo federal e importante distrito comercial.

Betty Lee McGillis vive em Aylmer, na província de Québec, e parte da região metropolitana de Ottawa. Ela levou seus netos ao centro da capital no fim de semana para participar do protesto, e disse que foi uma experiência positiva.

No Québec, os passaportes de vacina são necessários para acessar a maioria dos serviços não essenciais. McGillis frisou que a imposição de vacinas, como a atual, está segregando a sociedade.

"Esses 'buzinaços' e paralisações são um pequeno preço a pagar para recuperar as liberdades pelas quais nossos antepassados ​​lutaram no campo de batalha. Queremos que o Canadá seja o Canadá em que crescemos."

Nenhum sinal de desaceleração

Na quarta-feira, a polícia ameaçou mais uma vez prender os manifestantes que fecharam o centro de Ottawa. A força policial também está convocando 1.800 agentes para reforçar os níveis provincial e federal. No início da segunda semana de fevereiro, a polícia disse ter efetuado 22 prisões, emitido mais de 1.300 multas e aberto 79 investigações criminais.

O primeiro-ministro Justin Trudeau continua defendendo as restrições contra a covid-19 e criticando o movimento de protesto.

Ele alertou que os bloqueios nos postos de fronteira – inclusive na ponte Ambassador Bridge, que liga Detroit, nos EUA, e Windsor, na província de Ontário, por onde passa 25% de todo o comércio entre os dois países – estão ameaçando a recuperação econômica do Canadá.

"Bloqueios e manifestações ilegais são inaceitáveis ​​e estão impactando negativamente empresas e fabricantes", disse Trudeau na Câmara dos Comuns. "Devemos fazer de tudo para acabar com eles."