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Entrada da Argentina na Nova Rota da Seda levanta desafios sobre integração regional com China

Primeira grande economia da América Latina a aderir ao projeto chinês, Argentina receberá US$ 23,7 bilhões

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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Alberto Fernández em Pequim. Viagem aproximou Argentina e China - Esteban Collazo / Presidência da Argentina / AFP

A Argentina é a primeira grande economia da América Latina a aderir ao projeto desenvolvimentista chinês conhecido como a Nova Rota da Seda. Em Pequim, o chanceler argentino, Santiago Cafiero, assinou o Memorando de Entendimento que concretiza a intenção, anunciada no ano passado, de adesão ao programa.

Assim, o gigante asiático soma uma peça-chave no megaprojeto de investimento em infraestrutura de escala global considerando que, na região, Brasil, México e Colômbia ainda não aderiram. Por outro lado, o pacto abre novos horizontes para a Argentina, um país com sua política econômica atravessada pelas regras impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) após sucessivos empréstimos

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A Nova Rota da Seda chinesa

O nome é uma referência à antiga Rota da Seda, como foi chamada a chegada comercial chinesa em diferentes países europeus através da Ásia Central durante as dinastias Han (206 a.C. a 220 d.C.) e Tang (618 a 907). Em sua versão contemporânea, os países-sócios do projeto chinês recebem financiamento em infraestrutura e firmam acordos de cooperação em economia, saúde, cultura, ambiente, entre outros.

“É um projeto impulsionado pela China que foi se modificando em conteúdo e objetivos”, explica Santiago Notarfrancesco, especialista em estudos da China Contemporânea. “Hoje, é uma iniciativa que implica um forte financiamento em obras de infraestrutura e, quanto mais países aderem, torna-se também um projeto de governança global, não centrado em países ocidentais.”

Com a entrada da Argentina, a Nova Rota da Seda soma 145 países integrantes, sendo a maioria (44) da África, 42 da Ásia, 29 da Europa, 20 da América Latina e o Caribe e 10 da Oceania.

Apesar de demonstrar interesse durante a visita à China em 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão adiantou nesta quarta-feira (9) que o governo brasileiro “não precisa estar na Rota da Seda”. “Temos uma parceria estratégica com a China em que os investimentos já estão contemplados”, afirmou Mourão ao Valor Econômico.

“É um desafio melhorar nosso intercâmbio com a China, e progressivamente agregar valor ao que exportamos de maneira local”, pontua Notarfrancesco. Para o pesquisador, a China pode ser um parceiro-chave para a América Latina desde que exista uma integração entre os países da região.


Delegação argentina no Grande Salão do Povo, em Pequim / Presidência da Argentina / AFP

“Estamos em um momento de pouca coordenação regional. E isso é muito importante para negociar com o mundo, e em particular com a China. Sempre haverá assimetria, pela própria magnitude do país — somando nossas populações, não chegamos à metade da população chinesa —, mas se negociamos como América do Sul, e não individualmente, essa debilidade diminui”, conclui.

Financiamento na Argentina

Com o memorando, já foram aprovados US$ 14 bilhões, cerca de US$ 77,8 bilhões, de financiamento chinês para obras de infraestrutura na Argentina. A segunda parte do investimento será apresentada em uma proposta da Argentina para o Grupo Ad Hoc, mecanismo criado a partir da adesão à Nova Rota da Seda. O valor da segunda transferência é avaliado em US$ 9,7 bilhões. Com esse financiamento, a Casa Rosada poderá investir em infraestrutura, redes de esgoto, transporte e energia sustentável, este um campo em que a China tem forte liderança.

A China é o principal parceiro comercial do Brasil e o segundo da Argentina (cujo ranking de exportações é liderado pelo Brasil). Tanto como comprador quanto investidor, o país asiático vem aprofundando os laços com a América Latina e o Caribe nos últimos anos.

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A presença da China na região remonta ao processo iniciado na década de 1970, quando Pequim começou a investir na aceleração tecnológica de sua economia. A partir daí, o país passa a necessitar de uma economia mais liberalizada em seu contato com o Ocidente, aponta Juan Cruz Margueliche, doutor em geografia e especialista em Estudos da China na Universidade Nacional de La Plata, na Argentina.

“Desde 1955, a China vem se pensando no contexto de um Sul Global e busca acompanhar países que podem se desenvolver. Por isso aparece o ‘sonho chinês’ no discurso do Xi Jinping, em contraposição ao sonho norte-americano, com novas maneiras de negociar”, diz o pesquisador ao Brasil de Fato.

“Com a Nova Rota da Seda, a China busca se apresentar ao mundo de forma diferente ao Ocidente, ou pelo menos é o que busca — e nisso podemos discutir as contradições entre discurso e prática. Mas, por isso, propõe uma civilização global e pretende que os benefícios não se concentrem apenas na China.”

No caso da Argentina, a aproximação se consolida durante o governo de Cristina Kirchner quando, em 2014, é assinado a Associação Estratégica Integral, um pacto de cooperação entre os países, desde convênios de instituições educacionais, investimento em infraestrutura até acordos comerciais.

Para Ignacio Villagrán, diretor do Centro de Estudos Argentina-China (CEACh), da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, a adesão à Nova Rota da Seda é uma maneira de aprofundar esses laços firmados há oito anos.

“Ainda que as relações nunca tenham sido cortadas, inclusive durante o governo de Mauricio Macri, que prefere vínculos com sócios tradicionais, agora há um consenso mais forte em relação a um multilateralismo, com potências emergentes ou não hegemonizantes”, observa. “Espera-se um debate no Congresso argentino para aprovar o roteiro, que ainda não define que projetos sairão daí, mas parece haver um consenso de distintas forças políticas sobre esse acordo. Chega em um momento necessário. Há forças ideológicas anticomunistas, mas não são majoritárias”, pontua Villagrán.

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O momento necessário tem relação com outro importante e recente anúncio do governo argentino: o acordo para a renegociação da dívida bilionária com o FMI. Neste sentido, para os pesquisadores, a proposta chinesa, com a mira em obras concretas, contrasta com o sistema condicionante de organismos como o FMI, cuja força majoritária se concentra nos Estados Unidos.

“A China não pode substituir o FMI ou cobrir a enorme dívida que Macri contraiu. O que a China está fazendo é contribuir com outras ferramentas produtivas e fiscais para pensar uma saída, um sustento de médio e curto prazo para a situação da Argentina”, diz Villagrán.

Nesse sentido, Santiago Notarfrancesco faz uma diferenciação da presença de países mais ricos na América Latina, reforçando a necessidade de integração regional. “Não compartilho da ideia de que, com a China, estejamos repetindo o mesmo padrão que com as potências colonialistas europeias durante os séculos 19 e 20. Mas se exportamos apenas produtos primários e importamos produtos elaborados, nossas condições de intercâmbio serão progressivamente deterioradas.”

Edição: Thales Schmidt