Minas Gerais

ARTE LIBERTA

“Rádio Lelé”: disco reverbera vozes de pacientes de hospitais psiquiátricos

Álbum lançado no YouTube e Spotify fomenta o reconhecimento da arte de pessoas que continuam em instituições manicomiais

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
As imagens que compõem o álbum Rádio Lelé são do artista Marlon de Paula e foram realizadas no interior da Colônia Juliano Moreira - Foto: Marlon de Paula

Um projeto de intervenções e visitas a hospitais psiquiátricos públicos acabou virando um álbum. O disco experimental “Rádio Lelé”, criado de forma coletiva por pacientes de hospitais psiquiátricos e idealizado pelo arte-ativista Rabay, documenta o cotidiano manicomial por meio da arte.

O álbum lançado no YouTube e no Spotify é uma composição de ritmos, beats, letras de músicas e frases. São 25 faixas que trazem mensagens das pessoas que continuam dentro das instituições manicomiais com títulos como “Porque cê num veio onte?” e “A mulher do cérebro de chip”, e outros mais delicados e livres como “Gatos (canto delicado no meio do caos)”.

As categorias dentro dos hospitais

Mestrando em Artes, Urbanidades e Sustentabilidade, pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Rabay pesquisa a aplicação de práticas educomunicativas no universo da saúde mental e se dedica, há cerca de 7 anos, ao desenvolvimento de ações nesse contexto.

O disco foi fruto de intervenções que o artista promoveu em instituições psiquiátricas, às quais preferiu não mencionar os nomes. Porém, o título do álbum – “Rádio Lelé - Rabay + UD + UPA” – foi escolhido para visibilizar a forma como os autores do álbum são categorizados internamente pelos hospitais psiquiátricos. “UD” é Unidade de Dependentes Químicos e “UPA” significa Unidade de Psicóticos Agudos.

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“Escolhi usar essas siglas para documentar o aspecto homogeneizante das instituições”, relata, “que agrupam as pessoas baseadas nos seus diagnósticos, em grande escala, de uma maneira super impessoal. A sigla vem bem grande no seu prontuário. Usei para mostrar que existe muito mais por trás delas: texturas, pessoas”.

A arte “permitida”

Apesar da “Rádio Lelé” fomentar o protagonismo dos pacientes, o material esbarrou em limitações jurídicas, conta Rabay. Por se encontrarem em situação de internação, os direitos de imagem dos autores são intermediados pela administração dos hospitais, ficando subordinados à sua avaliação.

Por isso, muitas expressões dos pacientes não são interpretadas como arte, mas sim como evidências de um adoecimento, que devem ser omitidas.

Nise da Silveira, uma autora na qual o artista se embasa, já apontava em seu livro “Imagens do Inconsciente”, de 1981, que esse comportamento era típico da psiquiatria manicomial. Hospitais, segundo a autora, não reconheciam o valor artístico das produções de pessoas com transtornos mentais, vendo nelas “reflexos de sintomas e de ruína psíquica”.

Nas instituições que Rabay visitou, isso era demonstrado por meio de expressões que são encorajadas ou desencorajadas. Segundo o educomunicador, quando um paciente cantava uma canção religiosa ou fazia um relato positivo da instituição, não havia problema, porém, criações mais fluidas e críticas, ou até mesmo ritmos como o funk, eram desencorajados.

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“O hospital psiquiátrico, no geral, quer divulgar uma imagem ‘normalizada’ de seus pacientes, de preferência algo de teor moralizante ou cristão. Apesar disso, resolvi lançar o material, para que, de alguma forma, as vozes e criações dessas pessoas possam reverberar. O que eu gostaria mesmo era que os autores e autoras pudessem estar aqui ao meu lado, mostrando seu rosto e falando sobre as suas criações”, lamenta.

Ouça e assista

No YouTube: Rádio Lelé - Rabay + UD + UPA (Álbum Completo)

No Spotify: Rádio Lelé

Todas e todos autores

O disco foi criado em parceria com Airton, Ulisses, Adriano, Antonio, Wellington, Laudete, Andreza, Teresa, Luciene, Vitória, Lucimara, Rafael, Regina, Mara, Salete, Bruna, Lucinei, Elizabete, Elizangela, Cristiana, Luis Carlos, Francisco, Patrick, Renato, Ítalo, Rodrigo, Cícero, Deivison, Nilson, Valdecir, Noemi, Julia , Daniel, Adair, Márcia, Maria, Afrânio, Verinha, Anderson, Hugo, Julio, Flávio, Cíntia, Anderson, Priscila, Otto, Fagner, Paulo, Daniel, Antonino, Santo Noé, Sidnei, Elza, Renata, Cristina, Donizetti, Fabiano, Zé, Wilson, Pirata, Julio César, João, Clóvis, Suzana, Raila, Maitê, Ercina, Antônio, Natalino, Osmar, Ricardo, José, Cleuza e muitas e muitos mais, direta ou indiretamente.

As imagens que compõem o álbum Rádio Lelé são do artista Marlon de Paula e foram realizadas no interior da Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica que chegou a “abrigar” cerca de 5 mil pessoas na década de 1960, sendo palco de práticas como o eletrochoque e cirurgias, como a lobotomia.

O arte-ativista Rabay já produziu outros projetos musicais, como “Sinógeno”, música eletrônica que remixou sinos da cidade histórica de São João del Rei, e o clipe “Saudade de Adamantina”, que contou a história da cidade paulistana relacionando com o bolsonarismo na cidade.

 

Edição: Larissa Costa