RACISMO

Ponto de vista | O meu medo de cada dia

Não, não quero ter medo - e vou continuar vivo

São Paulo |
Em São Paulo, manifestantes denunciam racismo contra imigrantes em ato Justiça por Moïse Kabagambe - Emilly Firmino / São Paulo

Não imaginei que aos 62 anos eu fosse ter medo de sair à rua por ser negro, homem preto. Sim, hoje acordei com muito medo de sair sozinho as ruas. Atravessar entre os carros no condomínio onde moro me pareceu um martírio. Tive medo que um tiro surgisse de alguém ao lado, ao ver um homem negro andando a caminho do supermercado.

Como sempre faço ao sair de casa, seguindo o ensinamento do meu pai aos seus onze filhos negros, desde crianças, peguei todos os documentos possíveis: carteira de identidade, carteira de trabalho, assinada, e mais alguns outros. Meu pai já dizia: “Homem preto tem sempre que sair com todos estes papeis, pois a coisa pro nosso lado é feia”. Dizia isto com muita sabedoria. Ele já sabia o que era o racismo à brasileira.

Pergunto: e agora? De que servem estes papeis, meu pai? Nem os pedem mais, atiram primeiro. Meu pai... Preciso lhe contar que a coisa agora não só está feia pro nosso lado, “está mórbida”, meu velho pai. Querem nos eliminar com pauladas e os pés amarrados; estamos sendo mortos até dentro de nossos espaços de moradia. Locais onde pensávamos estar seguros e protegidos.

Mas olha, continuo a lembrar de teus ensinamentos e de tuas belas e resistentes palavras quando dizia: “Nossas lutas, filhos, têm que ser inspiradas nas de nossos parentes que chegaram aqui amarrados como animais, mas lutaram bravamente e sobreviveram, fizeram este país. Sempre quiseram nos eliminar”. Estou lembrando, meu pai, de suas palavras, todos os dias. Mas agora vamos precisar aperfeiçoar nossas lutas se quisermos continuar vivos.

Os últimos assassinatos de pessoas negras (um jovem na Barra da Tijuca e um rapaz no condomínio onde morava) me trouxeram inúmeras reflexões e, pasmem: medos. Sempre achei que havia aprendido diversas formas de combater e de me defender do racismo, e que isto bastasse para me dar segurança e fazer com que eu permanecesse vivo. Ledo engano. Mas agradeço ao Movimento Negro Unificado (MNU) pelo que aprendi com vocês. Até aqui ajudou a me defender e a continuar vivo.

Ao pegar todos os documentos para sair de casa, fiquei a imaginar este rapaz que foi morto, “por engano”, em seu próprio condomínio. Tenho convicção de que ele também portava todos os documentos que citei acima. Pois nossos mais velhos e pretos nos ensinaram modos de sobrevivência num Brasil racista. E na maioria das vezes aprendemos. Sair sem eles pode nos custar caro. Prisão, humilhação, abuso de autoridade, morte, racismo mesmo. Pode custar a vida.

Recordo de uma certa vez, nos anos 1980. Em menos de quarenta minutos, fui parado por três viaturas policiais diferentes, em uma avenida importante da cidade onde moro, para me pedir documentos e ser revistado com as mãos na parede. 

Lembro perfeitamente que outros jovens, “brancos”, passavam tranquilamente ao lado sem ser incomodados ou depreciados como eu fui. Sorte que os ensinamentos de meu pai estavam lá. Todos os documentos que pediram eu guardava no bolso. Aprendi, e ainda hoje tenho consciência do que pode me acontecer se estiver sem eles. Eu e qualquer cidadão preto. Aprendemos na mesma cartilha como sobreviver ao racismo no Brasil. Cartilha esta que precisa ser reescrita com urgência, se quisermos continuar vivos.

Estes dois episódios, bárbaros, vêm nos mostrar que não bastam apenas argumentos e aprendizados sobre nossos direitos enquanto cidadãos negros. Pois nossas leis são falhas, injustas e inconclusas. Não inibem atos racistas e muito menos estes assassinatos de pretos, que estão se tornando corriqueiros no Brasil. Precisamos de resistências eficazes se quisermos continuar vivendo.

Sempre digo que o racismo tem tentáculos e se moderniza a cada dia. Em um tempo ele se concretizava em entradas privativas para pessoas negras nos elevadores ou em micro-senzalas construídas nos apartamentos, chamadas de “quartinhos de empregada”. E quem eram as empregadas? As mulheres negras. Ou quando expressavam o racismo com frases pejorativas, com o propósito de nos inferiorizar ou nos animalizar. 

Hoje o racismo foi para as mídias sociais com tentáculos que ganham cada dia mais força, se transformam em barbárie e nos matam. O racismo se atualizou. Tudo isto com aval e direito a comentários dos pares racistas que escrevem em suas redes sociais: “também estes pretos agora querem estar em todos os lugares, por isto morrem”. Opinam livremente, sem medo algum. Outros não opinam, mas pensam igual e aplaudem.

E então, o que vamos precisar agora para não sermos mortos? Enquanto não encontro resposta, e na certeza de que não posso deixar o medo que senti hoje me imobilizar, recorri aos ancestrais. Ancestralidade, sim. Lembrei que em 7 de fevereiro foi aniversário de uma preta velha, Clementina de Jesus. Imediatamente recorri a ela. Pedi à “mãe Clementina” que me liberte de todos os males, medos e perigos. Pedi por mim e por todo meu povo preto. 

Mais tarde, ao descer as escadas do prédio rumo à padaria, lembrei de vários outros ancestrais. Em todo o percurso até o retorno para casa, pedi proteção e que me inspirassem para outras lutas contra o racismo, pois as que havíamos aprendido já não nos deixam viver. Assim como nossos ancestrais já auxiliaram em outras épocas, agora poderiam também nos socorrer e nos orientar para novos caminhos seguros, sem medo, sem sermos espancados e mortos.

Prometi a mim que este ano não iria ler nenhuma matéria jornalística relacionada a assassinato de pessoas negras e ou casos de racismo. Tomei essa decisão não para fugir da realidade brasileira e do racismo que nos atormenta, mas para não me indignar com a omissão dos órgãos governamentais, com as instituições jurídicas que fingem não ver o que acontece com a população negra no Brasil. Verdadeira omissão. 

Porém, mudei de ideia ao ver pelas redes sociais as manifestações que aconteceram em várias cidades do Brasil e do mundo pedindo justiça pela morte do jovem na Barra da Tijuca. Aquele ato no dia 5 de fevereiro de 2022 sinalizou um novo tempo de luta e a perspectiva de novas lutas do povo preto no Brasil. Precisamos de manifestações para além das redes sociais. Atos que sejam efetivos e denunciem mundialmente o que se passa por aqui. Quem sabe instituições internacionais de direitos humanos se unam à luta por aqui também!

Assim como o racismo se renova na contemporaneidade, nossos modos de resistência e sobrevivência também precisam ser atualizados. Acho que mesmo antes de meu pedido ser ouvido pelos ancestrais negros, eles já estavam atentos. Quem sabe atenderam o meu pedido? Tenho certeza que eles e elas ouviram. 

A barbárie racista no Brasil ultrapassou toda e qualquer forma de argumentação e lutas anteriores, agora com aval de quem deveria efetivar atos para coibi-la. Temos leis antirracismo que não funcionam, são frágeis. Racistas enraivecidos saíram dos armários com sangue nos olhos e com muito ódio do povo preto. Ódio que se traduz em ataques diários ao nosso povo e às nossas lutas de resistência. Ódio por ter que dividir várias fatias do bolo com outros, ameaçando assim o privilégio da sua branquitude. Privilégios que pensavam e almejavam que fossem eternos. Ódio porque o corpo negro não está mais só nas favelas e nas periferias, lugares que a nós foram destinados por uma “elite branca” brasileira, que pensa ser europeia. Ódio que se traduz nas barbáries recentes e em várias outras que não chegam à mídia nacional. 

Enfim, a falácia do “mito da democracia racial" agora ruiu de vez, felizmente.

Viemos pra ficar, engula teu ódio e limpe teus olhos cobertos de sangue. Você, branco, e que é racista, vai ter sim que ver o corpo negro para além dos ditos “lugares de preto”. Vai nos ver nas universidades, nos cursos de graduação e pós-graduação. Em todos os lugares que sempre foram privilégio do seu povo. A você que compreende nossas lutas, mas não traz marcas de africanidade no corpo: seja bem- vindo.

Não, não. E nem me venha com o discurso vazio de que estamos fazendo racismo às avessas. Este discurso é próprio de quem não sabe dividir e quer diminuir nossas lutas, nossas conquistas, nossas ações afirmativas. Não vamos cair neste discurso vazio, falho e covarde nesta altura das lutas, de forma alguma. Temos ancestralidade.

Vamos nos defender, sim, deste racismo que traz sangue nos olhos e sangra nossos corpos negros!  Não, não vamos mais deixar que nos matem na rua, no nosso bairro, no nosso condomínio. 

E você que dizia que nossas denúncias eram “mimimi de preto contemporâneo”, continua pensando assim? Se você continua, me desculpe: você também corrobora com estas barbáries das últimas semanas. Mas saiba, não queremos e nem estamos usando de revanchismos, e sim intensificando nossas lutas. Tenha certeza, vamos fazer de tudo para continuarmos vivos e pretos. Não, não vamos matar ninguém a pauladas e nem atirar “enganado” em branco. Mas vamos continuar resistindo e lutando pelo que é nosso neste país que também construímos.

“Parem de achar que irão continuar a nos matar”.

“Não, não, eu não vou ter medo, mas quero ficar vivo, tenho ancestralidade africana”.
 

Edição: Raquel Setz