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Após PM ser promovido, vítima que perdeu olho em ato no Recife reclama de descaso do Governo

Daniel Campelo da Silva foi ferido quando passava próximo ao ato de 29 de maio de 2021: "Minha situação é irreversível"

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Daniel foi um dos dois transeuntes que levaram tiros de bala de borracha no rosto e perderam um olho - Hugo Muniz

Enquanto o Governo de Pernambuco bonifica com uma promoção a major o policial militar Elton Máximo de Macedo, investigado por envolvimento na operação violenta no protesto de 29 de maio de 2021, Daniel Campelo da Silva sente o abandono do Estado.

Vítima da ação truculenta, o então adesivador de carros de 51 anos perdeu o olho após levar tiros de bala de borracha, um deles no rosto. Agora, ele questiona a falta de assistência prestada pelo poder público no seu caso e pede celeridade na concessão de auxílio enquanto caminha na Justiça o processo que moveu contra o Estado.

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A vida de Daniel nunca mais foi a mesma depois que seu caminho cruzou com do Batalhão de Choque naquele dia, na Ponte Duarte Coelho, na área central do Recife. “Voltar ao que era é impossível. Minha situação é irreversível. Não tem dinheiro nenhum que pague a perda de um órgão, principalmente quando se é saudável”, lamenta.

Relembrar os acontecimentos daquela tarde é uma tarefa dolorosa. “Eu passo por ali eu vejo tudo novamente", fala, recontando as memórias de ter o socorro negado pela Rádio Patrulha da Polícia Militar, de caminhar até a Ponte de Ferro, de ser amparado por outros civis, e de ser levado para o Hospital da Restauração por um taxista que passava na hora.

Junto com a visão, foi-se embora também sua saúde mental, a condição de exercer sua profissão e a de sustentar a si, a esposa, os cinco filhos (com mais um a caminho) e três netos. “Eu perdi tudo isso. Não tenho como trabalhar, como me deslocar, estou com o psicológico abalado, não durmo direito, a preocupação é grande, tem a família. Estou tendo dificuldade com tudo. Já passei por três a quatro cirurgias, e ainda devo passar por mais duas. Isso tudo está mexendo com minha vida”, conta.

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O resultado disso são contas e mais contas acumuladas para pagar e a falta de alimentos na sua casa, localizada no bairro de Torrões, na Zona Oeste da capital. A manutenção do lar depende substancialmente de doações que recebe. “Amigos e colegas mandam ajuda quando podem. Se não fosse isso, como ia ser?”, questiona.

Nesse contexto, não é o fato de o policial ter sido promovido em si que o incomoda, diz, levando em conta o princípio da presunção da inocência. “É constitucional. Porém, o que eu fico indignado e chateado é o descaso do Governo com minha pessoa. Ele conseguiu conceder tão rápido essa promoção, e na minha situação não está resolvendo nada”, critica. 

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À época do ocorrido, ele e Jonas Correia, o outro homem que também perdeu um olho na mesma situação, foram contemplados com cestas básicas e com um auxílio emergencial pelo período de três meses - prazo máximo desse tipo de pagamento assistencial. Marcelus Ugiette, um dos advogados de Daniel, afirmou que o primeiro valor que o Governo de Pernambuco ofereceu foi de apenas meio salário mínimo. No entanto, em tratativas com a Promotoria do Estado e a Secretaria de Justiça e de Direitos Humanos, ele solicitou que fosse aumentado para o teto do auxílio.

“Pedimos dois salários mínimos, para que eles pudessem comer, pagar táxi, comprar remédio, já que ficaram sem trabalhar. Isso durou três meses. Nós pedimos para que o Estado renovasse o auxílio emergencial, e apesar de a gente ter requerido formalmente, ele não renovou”, aponta o advogado.

Em uma dessas reuniões, o Governo ofereceu uma indenização no valor de R$ 150 mil a Daniel Campelo, que não aceitou. No último dia 10, ele entrou na Justiça com uma ação de indenização por danos morais e patrimoniais no valor de R$ 4 milhões. Além disso, também foi pedida uma tutela de urgência de modo liminar para o recebimento de uma pensão até que o processo fosse julgado, ato que o juiz deferiu e estabeleceu o valor de dois salários mínimos.

"O que acontece muitas vezes é que o Estado faz tudo para que o processo demore, recorre de tudo, e quando vê a pessoa morreu. Até para os familiares receberem demora. Essa pensão é para que ele pelo menos possa comer”, afirma Ugiette. 

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O Governo tem um prazo de 30 dias a contar da citação para começar a pagar o valor. "Mesmo que esteja dentro da lei, se o governador [Paulo Câmara] fosse um pouco sensível, já sabendo da determinação judicial, ele poderia adiantar e começar a pagar antes, já que o Estado teve uma pressa danada ao promover o [policial Elton de Macedo]”, declara.

Relembre o caso

No dia 29 de maio de 2021, a população saiu às ruas de todo o Brasil contra o Governo Bolsonaro em mais de 200 atos organizados por movimentos populares. O protesto do Recife ficou marcada pela ação desmedida da Polícia Militar, que usou bombas, spray de pimenta e tiros de bala de borracha para dispersar o protesto quando ele já chegava ao fim, nas proximidades da Ponte Duarte Coelho, entre a Rua da Aurora e a Avenida Conde da Boa Vista, na área central da capital.

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Dois homens que não participavam do ato e apenas passavam pelo local foram atingidos por projéteis no rosto. Tanto o adesivador de carros Daniel Campelo da Silva, de 51 anos, quanto o arrumador de contêiner Jonas Correia de França, 29, perderam um olho em razão dos ferimentos.

Outras cenas de violência policial foram registradas na ocasião. A vereadora do Recife Liana Cirne (PT) foi agredida com spray de pimenta ao tentar falar com um policial que entrava em uma viatura. O advogado Roberto Rocha Leandro, presidente da Comissão de Direito Parlamentar da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB) e integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), levou quatro tiros de bala de borracha.

Em seu posicionamento oficial, divulgado no mesmo dia, o governador Paulo Câmara (PSB) afirmou que a ordem de reprimir o protesto com violência não partiu do Palácio do Campo das Princesas. Ele também comunicou que a Corregedoria da Secretaria de Defesa Social (SDS) investigaria o caso para determinar as responsabilidades dos envolvidos. No total, 16 policiais, sendo três oficiais - o tenente Tiago Carvalho da Silva e o capitão Elton Máximo de Macedo, do Batalhão de Choque, e o major Gilson Monteiro da Silva, do 13° Batalhão - e 13 praças, foram afastados até a finalização do inquérito.

Seis dias após o ocorrido, o então secretário da SDS Antônio de Pádua colocou seu cargo à disposição, e o governador o exonerou. Até hoje, a apuração não foi concluída e ninguém foi responsabilizado por ter dado o comando para a PM atirar nos manifestantes.

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Vanessa Gonzaga