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Brincantes de tradição junina têm sido presos e têm bacamartes apreendidos em Pernambuco

Folguedo tem 150 anos de tradição e é patrimônio cultural do estado; polícia ganha R$ 1.200 por bacamarte apreendido

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Estima-se que em Pernambuco haja 100 grupos, que somam 5 mil bacamarteiros - Arquivo/Febape

Há pelo menos 13 anos os bacamarteiros de Pernambuco têm sofrido com prisões (precisando pagar fianças) e tendo suas armas de folguedo apreendidas pela polícia. Os policiais ganham bonificações pela apreensão dessas armas. O bacamarte é um instrumento de folguedo tradicional no estado, onde estima-se haver 100 grupos organizados que praticam. Apesar de legalmente cobertos, por desinformação do poder público os brincantes seguem sendo detidos.

Personagens tradicionais dos festejos juninos no estado, os grupos de bacamarteiros são formados por homens, mulheres e mesmo crianças, que dançam, cantam e disparam suas armas para o chão, provocando forte estrondo. Os bacamarteiros do Cabo são reconhecidos como patrimônio vivo de Pernambuco. A Federação dos Bacamarteiros de Pernambuco (Febape) estima que há 100 grupos organizados em todo o estado, que somam em torno de 5 mil brincantes.

Em 2009, no município de Belém de Maria, região agreste, a polícia pernambucana manteve preso por quatro dias Lenilson Ferreira da Silva, o principal artesão de bacamartes do estado. “Ele é o maior artesão de bacamartes no Brasil e no mundo – porque só tem isso aqui no Brasil”, conta Ivan Marinho, presidente da Febape e integrante da Sociedade dos Bacamarteiros do Cabo de Santo Agostinho (Sobac).

Anos depois um outro brincante foi detido, desta vez em Gravatá, mas foi liberado após conversa de Marinho com o então prefeito, que por sua vez interviu junto ao delegado local. Mais recente, em 2021, nova prisão, desta vez no município de Verdejante, sertão do estado. A polícia foi buscá-lo em casa, com acusação de que ele possuía arma de fogo. “E neste caso o Ministério Público acatou o inquérito policial e reforçou a denúncia. Então além da polícia, o MP também faz essas besteiras”, reclama o presidente da Febape.


Folguedo tem 150 anos de tradição em Pernambuco; grupos reúnem famílias inteiras / Arquivo/Febape

O bacamarte, que já foi arma oficial do Exército brasileiro nos anos 1700 e 1800, é uma arma de grosso calibre (acima de 0,40 polegadas), mas considerada obsoleta. Símbolo regional, a arma foi retratada em cena marcante do filme Bacuaru (2019). Sua utilização por grupos culturais foi regulamentada por uma instrução técnico-normativa (ITA) do Exército Brasileiro datada de 2002.

Mas sua confecção e comercialização seguia obedecendo os decretos de armas, o que dificultava a atuação de artesãos. “Éramos proibidos de fazer bacamarte”, resume o presidente da federação. “Após a prisão de Lenilson nós passamos anos brigando com o Ministério da Defesa, exigindo que algo fosse feito", conta Ivan Marinho. Só em março de 2018, na ITA 015/2018, foi que entrou a regulamentação do artesanato do bacamarte.

No famoso “decreto das armas”, de 2021, o bacamarte foi retirado da lista de produtos controlados, sem necessidade de supervisão. “Hoje o bacamarte não faz mais parte do rol de armamentos, por ser considerado obsoleto, sem necessidade de controle. É um artesanato. Mas a polícia continua prendendo, cobrando fiança e recebendo bônus por apreensão de bacamarte”, se queixa Ivan Marinho, que garante que as armas são utilizadas apenas em apresentações folclóricas.

A pólvora, por outro lado, é um produto controlado. “Então continuamos fazendo certificados de registro (CR) a cada dois anos, junto ao Exército, para que possamos seguir com nossa atividade. Sem isso não tem brincadeira. Podemos circular à vontade com bacamarte, mas não podemos usar pólvora sem o CR”, explica ele. “O processo é simples. Dentro da Febape fazemos a capacitação dos presidentes de grupos locais de bacamarteiros”, conta.


Utilização de bacamartes por grupos culturais é regulamentada desde 2002. / Domingos Sávio/reprodução

Comunicado ou Lei

Os bacamarteiros querem que a Secretaria de Defesa Social (SDS), que chefia as polícias civil e militar no estado, adote alguma medida de comunicação interna para parar com as prisões. “Hoje já temos toda a cobertura legal. Mas eles [os policiais] ganham bonificação pelas armas e nós continuamos sendo presos e tendo que pagar fiança”, reclama o brincante. “Queremos algo que esclareça o poder público, tanto das polícias como MP, para que entendam que isso é uma brincadeira – mais antiga que o frevo, inclusive”, defende ele.

Após o caso em Verdejante, onde até o Ministério Público apoiou a prisão, Ivan Marinho foi, no último dia 15, à sede do MPPE conversar com coordenadores dos núcleos de atividade policial, defesa social, operacional criminal e de preservação do patrimônio histórico dentro do órgão. Agora esperam alguma atitude por parte da SDS, ao mesmo tempo em que buscam alternativas junto aos deputados estaduais. “Estamos conversando com a Assembleia Legislativa para ver se criamos uma lei. Parece que a gente tem que desenhar para os policiais conseguirem entender”, dispara.

O decreto estadual 27.606 de 2005 cria incentivos financeiros aos policiais por arma apreendida, com valor variando de acordo com o calibre. A bonificação pela apreensão de um bacamarte é de R$1.200. Mas o decreto estadual está desatualizado, visto que se ancora no decreto federal 3.665 de 2000, que foi revogado pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019 e substituído pelo decreto 9.847/2019.

Ele conta que a cobertura da imprensa dada aos casos também ajuda a orientar os policiais. “Há quase 10 anos tivemos uma conversa na SDS que não resolveu nada institucionalmente, mas que ganhou visibilidade no interior e os policiais ‘deram um tempo’ dessas prisões”, lembra ele.

Na sede da Sobac, no centro do Cabo de Santo Agostinho, região metropolitana do Recife, existe o “Museu Olímpio Bonald de Bacamarte”, dedicado à história do folguedo. O grupo conseguiu aprovar em edital recente do Fundo de Cultura de Pernambuco (Funcultura) a produção de um inventário do bacamarte no estado.


Considerados artesanato, bacamartes têm posse e porte liberados desde 2021, mas a pólvora não / Paulo Maia/reprodução

Edição: Vanessa Gonzaga