Luta pela soberania

Como a propriedade privada de terras de estrangeiros afeta a soberania argentina

Militantes exigem livre acesso ao Lago Escondido, na Patagônia e expõe o processo de usurpação iniciado na década de 90

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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Integrantes da 6ª Marcha ao Lago Escondido caminharam por 3 dias pelas montanhas, único acesso público ao lago, rodeado pela propriedade privada de Lewis. - Arquivo pessoal

A 6ª Marcha pela Soberania em direção ao Lago Escondido, na Patagônia argentina, fez voltar à pauta um antigo conflito no território localizado na província de Rio Negro: a apropriação de quase 12 mil hectares pelo milionário britânico John Lewis.

Após atravessar o caminho mais difícil pelas montanhas para chegar ao lago, a expedição de 21 pessoas foi impedida de seguir caminho por seguranças particulares do magnata, mesmo antes de ingressarem no território reconhecido pelo Estado como propriedade privada.

As terras em mãos do britânico incluem campos de golfe, de futebol, uma mansão de 10 mil m2, um zoológico e um heliporto, onde Lewis recebe amigos, como o ex-presidente Mauricio Macri. 

O empresário, dono da 6ª maior fortuna do Reino Unido segundo a revista Forbes (avaliada em US$ 4,7 bilhões; algo em torno de R$ 24,2 bilhões), comprou o território patagônico na década de 1990 e, há pelo menos 15 anos, impede a livre passagem ao Lago Escondido, um direito civil e um bem natural local.


Mansão de Joseph Lewis no Lago Escondido, na Patagônia. / Divulgação

Além disso, Lewis é dono de parte da exploração da reserva de petróleo e gás natural Vaca Muerta, na Patagônia, e acionista de uma importante distribuidora de energia no país, a Edenor.

No entanto, o milionário britânico não é o único estrangeiro com grandes porções de terras argentinas. Em toda sua extensão, o país possui focos de conflito devido à compra de terras por estrangeiros, onde o Estado não possui incidência, apesar de abarcar importantes ecossistemas, deslocar comunidades originárias e ameaçar a soberania da região latino-americana, em particular, a da Argentina.

Segundo o Registro Nacional de Terras Rurais da Argentina, quase 15 milhões de hectares são propriedade privada de estrangeiros, especialmente de nacionalidade estadunidense. A província de Salta lidera o ranking, com 11,5% do seu território em mãos de estrangeiros que possuem grandes interesses na produção de vinhos.

A província de Corrientes conta com 9,7% do território como propriedade privada estrangeira, e atualmente sofre com os incêndios descontrolados que passam, também, pelos Esteros del Iberá, parte das terras compradas pelo norte-americano Douglas Tompkins. A família Tompkins tornou-se, assim, um dos maiores proprietários de territórios com recursos aquíferos e, portanto, de água doce no país.

Outros nomes e rostos conhecidos são do estadunidense Peter Lee McBride, dono de 116.300 hectares em Catamarca, e o italiano Luciano Benetton, que possui a maior extensão de terras "internacionalizadas" do país, com 655.990 hectares em Buenos Aires, Chubut, Rio Negro e Santa Cruz. Foi em seu território onde o militante pela causa indígena Santiago Maldonado foi capturado pela força de segurança chamada Gendarmeria e, meses depois, apareceu morto próximo ao rio Chubut.

Defesa da soberania argentina

“Hoje, domingo, 6 de fevereiro, às 14h30, acabam de me informar que os integrantes da coluna que vai pela montanha, marchando até o Lago Escondido, foram interceptados por homens armados a cavalo que respondem a Joseph Lewis.” Quem falava no vídeo gravado em um celular era Julio Urien, presidente da Fundação Interativa para Promover a Cultura da Água (FIPCA), para pedir resgate ao grupo que compunha a 6ª Marcha pela Soberania, em direção às terras de Lewis. “Nesse momento, estamos sofrendo ameaças, intimidações e sendo forçados a regressar.”

O médico sanitarista e militante, Jorge Rachid, viajou de Buenos Aires ao Río Negro como integrante do grupo de manifestantes. Após serem ameaçados de morte pelos seguranças e terem seu bote inflável danificado, ficaram ilhados no Lago Soberania. Rachid passou mal e precisou ser resgatado por um helicóptero. Foi sua segunda vez marchando pelo direito de acesso ao lago, garantido pelo Código Civil e ignorado pelo magnata.


Momento do resgate de Jorge Rachid / Arquivo pessoal

“Lewis é a expressão de uma apropriação de terras que não poderia existir na Patagônia porque há uma lei que impede que haja propriedades estrangeiras a menos de 50km da fronteira”, diz Rachid, mencionando a lei 26.737, conhecida como Lei de Terras, promulgada em 2011 durante o governo de Cristina Kirchner para limitar a posse de terras argentinas por outras nacionalidades.

O texto limita a posse a 15% das terras de cada província em mãos estrangeiras. Apesar disso, a lei não é retroativa, e figuras como Lewis permanecem como proprietários de territórios estratégicos, nesse caso, próximo ao Chile e a 1.200 km das ilhas Malvinas, território argentino invadido e tomado pelo Reino Unido em 1833.

“Essa marcha, que pode parecer uma aventura juvenil, é a defesa da soberania e denúncia de um provável processo de secessão da Argentina austral”, aponta Rachid. “Veja o que fizeram com a Coreia e o Vietnã, divididos entre norte e sul, e com a Iugoslávia, dividida em 6 países. O império não tem nenhum problema em que amanhã exista uma Argentina patagônica austral separada da Argentina continental.”

O que pode parecer exagero o médico sanitarista retira de uma das últimas declaração de Juan Domingo Perón.

“Em 1974, 60 dias antes de morrer, Perón disse duas coisas. Uma é que o mundo se dividiria em blocos continentais, já que os Estados-nação eram frágeis para resistir no embate com o imperialismo. E a segunda foi que a Argentina era o país dos alimentos, da água doce e dos recursos fósseis e minerais. Quando ele disse ‘água doce’, eu, que era jovem, não podia acreditar. Nós, falando de revolução, e ele falando de água doce. No entanto, veja hoje, 46 anos depois, a água doce é cotada no mercado de Chicago e a Pfizer, quando veio à Argentina, pediu justamente os recursos naturais como respaldo para a compra de vacinas.”

Um Estado dentro do Estado

Outro integrante da 6ª Marcha pela Soberania, Carlos Fallon, é membro da Fundação Interativa para Promover a Cultura da Água (FIPCA), e destaca a importância da defesa de soberania dos países da região. “Há mais de 200 anos querem a Patagônia. São os chamados recursos naturais, nossos bens comuns, que estão na mira: lítio, petróleo, gás, ouro, prata, água. O conjunto cidadão deve se conscientizar dessa situação e exigir atuação dos governantes”, aponta.

A FIPCA solicitou um habeas corpus para proteger a integridade das pessoas que foram reprimidas durante a marcha. A Justiça negou o pedido, apesar de ter emitido a ordem para o resgate em helicóptero a Rachid.

“É um Estado cooptado. A juíza que sentenciou pela abertura do caminho ao Lago Escondido foi despedida, de uma forma terrível. O chefe de polícia de Río Negro não faz caso às demandas e protege a zona. O prefeito de El Bolsón, Bruno Pogliano, é contador da empresa de Lewis”, enumera.

“É um entrave britânico. Além do Lago Escondido, Lewis tem o Paralelo 42, em Playa Dorada, onde funciona um aeroporto privado com as mesmas dimensões do Aeroparque Jorge Newbery. Não se sabe o que sai e o que entra aí, está próximo das ilhas Malvinas. Há um tema geopolítico estratégico Como súdito da Coroa Britânica, Lewis mantém essa propriedade”, alerta. “Em qualquer momento, podemos ter que mostrar passaporte para passar pelo Paralelo 42.”

Com a visibilidade da 6ª Marcha ao Lago Soberano, os ativistas planejam uma nova jornada na primavera. 

Edição: Arturo Hartmann