ambiente alimentar

Supermercado promove ultraprocessados, mas tem meios para venda de comida saudável, diz estudo

Pesquisa feita em Jundiaí (SP) apontou que 43,9% do comércio local tem como foco a venda prioritária de ultraprocessados

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Pesquisadoras da USP e da Uerj apontam que 70% dos estabelecimentos da cidade observada (Jundiaí, SP) vendem bebidas açucaradas e guloseimas, enquanto 35% vendem arroz, feijão, frutas e hortaliças - Télam

Imagine uma situação bem comum: você sai do trabalho e passa no mercado para comprar meia dúzia de itens básicos que faltam em casa. Coloca tudo na cesta e segue para o caixa. Na fila, metros e metros de prateleiras recheadas de embalagens variadas: são os ultraprocessados, charmosos e baratos. Você, a essa altura, cansado e com fome, não resiste – e leva só um chocolatinho.

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Esse ambiente de um supermercado é chamado, entre pesquisadores da área, de ambiente alimentar. Esse conceito refere-se a todo contexto econômico, político e sociocultural em que as pessoas podem adquirir, preparar e/ou consumir alimentos, no mundo físico e virtual

Uma pesquisa publicada na última quarta-feira (23), no Cadernos de Saúde Pública, traz mais uma contribuição para a leitura sobre essas vitrines dos sistemas alimentares. Além de implicar a disponibilidade de alimentos em determinado espaço, como em um bairro, uma região, ou até mesmo em uma cidade, o estudo dá um passo adiante e caracteriza fatores que ajudam – ou não – a fazer escolhas saudáveis quando o assunto é comida. Como é o caso da disposição de ultraprocessados na fila do caixa. 

“Nossos dados sugerem que focar na melhoria do acesso a alimentos e bebidas saudáveis apenas por meio da disponibilidade física destes alimentos nos comércios varejistas pode não ser eficaz”, apontam as autoras. “Outros fatores como preço, publicidade, informação e modificações físicas interagem no ambiente do consumidor.”

Realizada por Camila Borges, Patrícia Jaime, Kamila Gabe e Daniela Canella, pesquisadoras da USP e da Uerj, a pesquisa, intitulada “Caracterização das barreiras e facilitadores para alimentação adequada e saudável no ambiente alimentar do consumidor”, auditou 650 estabelecimentos na cidade de Jundiaí, em São Paulo. 

 


Estudo dividiu comércio de alimentos em seis categorias / Pesquisa “Caracterização das barreiras e facilitadores para alimentação adequada e saudável no ambiente alimentar do consumidor”

 

Dos comércios auditados, 43,9% foram caracterizados como comércio com venda prioritária de ultraprocessados, 25,2% como mercados de bairro, 14,5% como padarias, 5,9% açougues, peixarias ou frigoríficos, 5,9% como sacolões e hortifrutis públicos e privados e 4,6% como supermercados.

Aproximadamente 70% dos estabelecimentos vendem bebidas açucaradas e guloseimas, enquanto aproximadamente 35% vendem arroz, feijão, frutas e hortaliças, alimentos recomendados, no Brasil, para uma alimentação saudável.

 


Caracterização dos comércios auditados pelo estudo / Pesquisa “Caracterização das barreiras e facilitadores para alimentação adequada e saudável no ambiente alimentar do consumidor”

 


Tipos de produtos vendidos nos estabelecimmentos comerciais mapeados / Pesquisa “Caracterização das barreiras e facilitadores para alimentação adequada e saudável no ambiente alimentar do consumidor”

 

Por meio do Audtinova, um instrumento de auditoria inédito elaborado pelo grupo, a pesquisa descobriu que, em relação às barreiras para uma alimentação saudável e adequada, os supermercados e os mercados de bairro apresentaram maior quantidade de publicidade, promoções de preços e maior disponibilidade de alimentos ultraprocessados, além de apresentarem maiores modificações físicas no ambiente que promovem esses produtos em comparação às outras categorias de estabelecimentos. 

Porém, as autoras apontaram que houve, também entre os supermercados, maiores números de facilitadores, “formando um padrão misto que por um lado promove, mas por outro dificulta as escolhas alimentares saudáveis”.

Os sacolões e hortifrutis apresentaram as médias mais baixas para as barreiras como publicidade, informações, modificações físicas e promoções de preços de alimentos ultraprocessados.

Entrevistamos Camila Borges, nutricionista, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens/USP) e uma das autoras do artigo, que analisa os avanços sobre o tema. 

Confira os principais trechos da entrevista.

Joio: Qual a importância de compreendermos o funcionamento do ambiente alimentar do consumidor?

Camila: Da década de 2000 para cá, quem estuda os ambientes alimentares vem mostrando a importância que eles têm nas escolhas alimentares para além das questões individuais e que a gente precisa começar a caracterizar esse ambiente. E o ambiente do consumidor é extremamente importante. A própria palavra palavra “consumidor” já diz que eu vou para adquirir alimentos de forma monetária. Isso tem aumentado muito nos últimos anos. Vemos a expansão dos supermercados, dos grandes mercados nas cidades, nos países mais pobres e, de certa forma, junto com eles, vem uma expansão grande de estratégias de venda que são muito importantes para influenciar o consumidor: as estratégias de marketing sem regulamentação, as políticas de preço, muitas vezes controladas pelas próprias indústrias de alimentos que fazem acordos com esses mercados. 

Muitos estudos internacionais já mostram que esses locais influenciam as decisões de compra de alimentos. Tem estudos que fazem intervenções, por exemplo, colocando seções de frutas e verduras na entrada e verificam que isso aumenta o consumo de frutas e verduras. Então, eles têm um impacto muito importante. Se a gente pensar no Brasil, mais de 50% da população adquire alimentos nos grandes supermercados. E é muito importante entendermos o que se passa no interior desses comércios e o que, de fato, faz com que as pessoas comprem. 

Sabemos que as estratégias de marketing estão cada vez mais refinadas. Vocês observaram alguma novidade na auditoria feita nos comércios?

O Guia Alimentar para a População Brasileira já traz alguns obstáculos para a alimentação saudável, e a própria publicidade é um deles. A gente incorporou a publicidade dentro do nosso instrumento e nós trabalhamos com diversas estratégias publicitárias. Por exemplo, publicidades que apelam para a saúde e o bem-estar. Achamos muitas. Também publicidades que apelam para relações familiares, e as degustações [no interior das lojas]. Então, sim, esses mercados usam estratégias muito refinadas. E tem também um tipo muito específico de posicionamento de produto, que parece muito sutil. 

Parece que é uma organização nata daquele mercado, mas, na verdade, tudo aquilo foi criado. Temos estudos que falam sobre arquitetura de escolhas, do marketing, para fazer com que aquele indivíduo caminhe por aqueles corredores. Então, nós conseguimos mapear alguns desses pontos. Por exemplo, a ponta de gôndola, que é basicamente um espaço de venda de alimentos não saudáveis, o caixa com uma quantidade absurda de itens ultraprocessados. A própria questão dos displays grandes das marcas espalhadas pelos supermercados, que chamam a atenção. A presença de ilhas temáticas, às vezes de uma única empresa de alimentos. Mas nós sabemos que essas estratégias mudam constantemente.

Sobre o layout dos estabelecimentos, ou seja, a disposição dos produtos no interior da loja. É uma questão que, como consumidores, muitas vezes somos absorvidos pela lógica sem questionar. Você pode comentar um pouco mais sobre isso? 

layout é estruturado mesmo para que as pessoas visualizem aquela marca específica, tal produto. A marca mais famosa está na altura dos olhos. As guloseimas estão na altura das crianças, pensando que elas podem chamar a atenção dos pais para comprarem. Então, sim, acho que as grandes redes têm um trabalho de padronização grande nesse sentido, e é uma padronização estruturada e pensada. Ela não é feita de qualquer maneira. Não é porque vai ficar bonito. Ela é estruturada para vender aqueles produtos e, muitas vezes, as indústrias pagam para ter espaço de destaque dentro desses mercados.

Os supermercados foram a única categoria de estabelecimento que apresentou associação com todas as três combinações de barreiras e facilitadores estudados (fator misto, mais facilitadores e mais barreiras). Como você analisa esses resultados? 

Ao mesmo tempo que eles têm a disponibilidade de alimentos frescos e saudáveis, eles também têm uma pesada publicidade, uma pesada política de redução de preços e de combos para promover ultraprocessados. Sabemos que isso vai ter um impacto nas compras, apesar de ainda não ter avaliado isso. Essa é uma discussão sobre o papel dos supermercados. Alguns estudos mostram um bairro que não tem nada, que é um deserto alimentar, e quando abre o supermercado grande, a pessoa que não comprava nada, não tinha onde comprar hortifruti, vai passar a comprar o mínimo que seja. 

Somando a questão da disponibilidade de alimentos a esses outros fatores que a gente traz nesse artigo, mostramos a importância de começar a pensar em questões de abastecimento, em regulação de publicidade nesses espaços. Tem coisas que ainda não discutimos, de que estamos longe, mas que são fatores importantes para pensarmos em promoção de ambientes mais saudáveis. E também a expansão dos equipamentos públicos. Onde não chega o equipamento público está chegando um local desse [supermercado]. E acho que é muito importante deixar isso claro. Enquanto o setor de abastecimento é sucateado, tem o setor privado chegando. E chegando com todo esse pacote pronto, de influência forte nas compras dos consumidores.

Vocês citam que existe “um esforço considerável de grandes corporações multinacionais para aumentar as vendas de alimentos ultraprocessados em países latino-americanos”. Por que você acha que há esse grande investimento principalmente nos países do Sul global?

Teoricamente, o mercado dos países ricos está saturado. Apesar de sempre ter espaço para mais, está saturado dessas indústrias de alimentos ultraprocessados. Essas empresas têm a sua própria tecnologia de abastecimento e elas não dependem das Ceasas das grandes cidades, que já estão obsoletas. A gente sabe que muitas [Ceasas] precisam de reformulação, mas teoricamente estão perdidas nas questões políticas. Então, essas empresas vêm com todo esse pacote de distribuidor, de logística muito rápida e de influência de captar a produção local. Eu acho que a própria situação econômica do país, as questões políticas, abrem espaço para essas corporações. E a conexão delas com uma rede de distribuição junto com as indústrias de alimentos é muito forte. Isso é um aspecto que, de fato, leva ao aumento da expansão desses mercados nos países mais pobres e emergentes especificamente. A gente teve uma expansão econômica forte no passado, e isso possibilitou criar mercados de consumidores. E esses espaços são propícios para isso. Então, onde tinha um mercadinho, ele foi simplesmente engolido por esses locais. Onde tinha a feira livre e hortas comunitárias, as pessoas deixaram de lado. 

O Guia Alimentar para a População Brasileira é a principal referência teórica do trabalho. Qual a importância dessa abordagem para apoiar o desenvolvimento de políticas de saúde pública no Brasil?

Resolvemos também trabalhar com os itens que a população brasileira mais consome, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares. Então, nós desenvolvemos esse instrumento de auditoria pensando tanto nas recomendações como também no que o brasileiro consome e os marcadores de alimentação saudável e não saudável baseados na NOVA classificação de alimentos. 

Levamos isso para o instrumento de auditoria, o que é uma questão muito importante, porque mostra o potencial que a gente tem. Uma vez que conseguimos olhar para esse ambiente do ponto de vista da disponibilidade de alimentos ultraprocessados e da disponibilidade de alimentos in natura, a gente consegue dialogar com outras áreas e fazer uma intersetorialidade para tentar promover espaços mais saudáveis. Hoje, conseguimos criar um score que classifica o quanto esses alimentos são saudáveis baseados nas barreiras e facilitadores. Isso é importante para mostrarmos o panorama do Brasil. Temos “tantos por cento” de estabelecimentos com péssimos score de saudabilidade, onde podemos atuar tanto na questão de melhorar a disponibilidade quanto de ampliar o cenário de abastecimento público. 

E podemos ampliar a discussão para o setor de abastecimento, o setor de agricultura e o setor de logística e transportes. Se queremos pensar no Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável e no acesso mais ampliado aos alimentos saudáveis, a gente também tem que estruturar esses comércios de alimentos, tanto na forma como eles estão distribuídos no território quanto no que eles têm disponível. Hoje, eles não facilitam a vida das pessoas. Eles impõem barreiras à promoção da saúde e, claro, essa não é uma discussão do setor privado. Essa é uma discussão nossa, da saúde, então a gente quer se aproximar por meio de dados, mostrando que é possível a regulação da publicidade e até mesmo a regulação de itens básicos, de preço mesmo. De reduzir o preço dos alimentos mais saudáveis. A gente vê que a maioria dos locais não tem redução de preço para alimentos saudáveis, mas tem redução de preço para alimentos ultraprocessados.