Rio Grande do Sul

Vida das Mulheres

Mulheres e pessoas trans ocupam prédio abandonado no centro de Novo Hamburgo 

Ocupação ocorre na véspera do 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, em defesa de políticas públicas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Ocupação reivindica acolhimento para pessoas vítimas de violência de gênero, ambulatório para pessoas trans e serviço de saúde para mulheres - Foto: Duda Rocha

Um grupo de mulheres e pessoas trans ocupou, na madrugada desta segunda-feira (7), o prédio do antigo postão, em Novo Hamburgo, Região Metropolitana de Porto Alegre. Pela manhã, apoiadores se juntaram do lado de fora, em vigília.

A ocupação foi batizada com o nome de Maria da Vila Matilde, uma alusão à música de Douglas Germano e Elza Soares. A ação aconteceu no prédio do Postão, como é conhecido popularmente o antigo centro de pronto atendimento de saúde de Novo Hamburgo, desocupado há cerca de cinco anos, e que se encontra em estado de total abandono. Durante a parte da manhã, foram postos cartazes e uma faixa do lado de fora do local.  

A manifestação ocorria tranquilamente até próximo ao meio dia, quando a Guarda Municipal chegou e jogou spray de pimenta nas manifestantes, inclusive agredindo uma advogada, apoiadora do movimento. A ocupação ocorre na véspera do 8 de março, Dia Internacional das Mulheres. 

“Eles bateram na nossa advogada, jogaram spray de pimenta nas mulheres que estavam do lado de fora, que estavam no apoio, e que chegaram a passar mal. Eles foram para cima. A única coisa que a gente tinha para fazer era gritar do lado de dentro. Estamos desesperadas. Eles só sabem bater, não sabem dialogar, é só violência atrás de violência. Se não tivéssemos apoio ali na frente, eles iam entrar e fazer coisa pior com as pessoas que estão aqui dentro”, afirma Juliana*, uma das ocupantes, sobre a ação da Guarda Municipal.

“Uma manifestação pelo fim da violência contra as mulheres e pessoas trans em Novo Hamburgo acaba por ser palco de agressão física para as advogadas do movimento. Fomos agredidas com puxões, empurrões e spray de pimenta. Até o momento não há liminar ou qualquer ordem judicial determinando a desocupação do prédio público que está sem uso desde 2018. Novamente, não há fundamento que justifique a violência exercida contra nós e manifestantes. Tomaremos as providências cabíveis para a responsabilização pertinente. O primeiro passo será a correta identificação das e dos agentes que atuaram, pois estavam sem seus nomes nas fardas, o que é mais uma ilegalidade”, relata uma das advogadas agredidas. Ela explica que estão no local para intermediar a situação e compor o melhor encaminhamento, preservando os direitos das pessoas que estão na manifestação e das que estão no apoio externo do movimento. Ela destaca que a guarnição optou por utilizar da truculência e violência.

Ocupação tem objetivo de cobrar ações do poder público

De acordo com as ocupantes, a ação tem como intuito realizar uma ação direta de protesto contra o Estado, e também chamar o poder público para debater as pautas das mulheres e pessoas trans, contra as altas taxas de feminicídio, transfeminicídio que afetam cotidianamente a vida das pessoas. “A gente está lutando por vida digna. E as pautas desse movimento mais concretamente se dirigem a Novo Hamburgo. O que a gente está pedindo é acolhimento para pessoas vítimas de violência de gênero, ambulatório para pessoas trans e serviço de saúde para mulheres”, ressalta a advogada. 

Em Novo Hamburgo existe um espaço chamado Viva Mulher, com cerca de 10 anos de existência. Quando foi criado, relata a dirigente do Sindicato das Sapateiras e Sapateiros de Novo Hamburgo, Neiva Borba, havia uma coordenadoria da mulher, havia psicólogos e atendimento às mulheres que eram violentadas, ou assediadas nos locais de trabalho. “Elas iam pra lá e tinham todo o atendimento, toda a ajuda necessária se precisassem. De um tempo para cá, deixou de ser uma coordenadoria e virou um CREA, que vive da espera de verba do governo federal. A desculpa da prefeita é que não está vindo, e portanto está diminuindo a cada dia muitas coisas. Antes, por exemplo, a gente ia com uma pessoa que sofreu algum tipo de agressão, ia na delegacia e era encaminhada para o Viva Mulher,  e tinha encaminhamento. Agora tu vai na delegacia, é encaminhada para o Viva Mulher, só que acabou, não tem mais o que fazer, vai ter uma psicóloga que vai te atender ali uma vez e deu, o resto tu tem que te virar”, expõe a sindicalista, que cita como exemplo recente o caso de uma menina que foi assediada sexualmente dentro da empresa onde trabalha e não teve atendimento. 

“Portanto, o que nós estamos reivindicando e aí nós defendemos essa luta das mulheres, é que haja de fato políticas públicas para as mulheres. Não tem problema que seja naquele espaço físico, onde está o Viva Mulher, mas que tenha de fato mesmo atendimento público social para as mulheres que são vítima de violência, seja violência doméstica, e para as pessoas trans também, o que não existe aqui em Novo Hamburgo”, frisa. 

Ainda segundo relata Neiva, o município já teve uma casa de acolhimento para as mulheres vítimas de violência, e que foi desativado há alguns anos. Ela conta que a precarização no que envolve a pauta se intensificou na primeira gestão da prefeita Fátima Daudt, reeleita em 2021. “Na política não basta ser mulher, tem que ter um olhar direcionado a questão das mulheres”, enfatiza a dirigente. 


"O que a gente está pedindo é acolhimento para pessoas vítimas de violência de gênero, ambulatório para pessoas trans e serviço de saúde para mulheres” / Foto: Fabiana Reinholz

Mulheres e pessoas trans são invisibilizadas 

“É importante estar nesse momento e nesse espaço, junto com as companheiras aqui, reivindicando essa questão da ocupação, para que possamos também reivindicar políticas públicas para a população LGBTQI+, assim como pelas mulheres, como está acontecendo no dia 8 de março. Acho que esse espaço aqui, que era o postão de saúde do município, podia servir tanto para uma casa de acolhimento, como um ambulatório LGBTQI+. Por isso nós estamos aqui marcando também esse espaço, e dando apoio as companheiras que estão ocupando nesse momento”, frisa a ativista trans, Sarita, do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM). 

A violência contra as mulheres na cidade se estende também aos órgãos públicos. Conforme relata uma das apoiadoras, que pediu para não ser identificada, há denúncias junto à Câmara de Vereadores. “Há um caso grave de violência doméstica que está sendo averiguado, investigado, e a gente percebe que os nossos representantes, as nossas representantes não tomam medidas efetivas em relação a isso. Por exemplo, na semana passada houve um evento na Câmara para tratar justamente da pauta das mulheres no mês da mulher, onde esse vereador que está sendo investigado se sentiu tranquilamente a vontade para participar, para colocar a pauta dele, falar que a reunião era em prol da família, de Deus”, relata. 

Para ela, essa atitude demonstra que há uma certa tranquilidade nessa narrativa, e que apesar de estar ultrapassada, segue sendo reproduzida pela velha política. “Além de não termos um serviço de atendimento à mulher vítima de violência doméstica junto ao Viva Mulher, que foi desmanchado efetivamente para as mulheres, a gente também encontra essa retomada de narrativa da velha opressão e violência doméstica e violência de gênero contra as mulheres e pessoas trans. Isso é algo que deixa um pouco evidente como é que o município está se posicionando. Acho que nesse cenário Novo Hamburgo precisa refletir bastante sobre essa ocupação, para ver como é que está atendendo a população, boa parte da população que são as mulheres e as pessoas trans em geral”, frisa. 

Sobre o assédio sexual na Administração Pública, ela aponta que o Executivo municipal criou uma legislação, um procedimento pra esses casos. “Foi justamente no dia em que teve manifestação na frente da prefeitura que foi dada essa notícia. A gente vê que muitas pautas são cooptadas, há uma certa onda, um oportunismo, até porque é interessante, vende falar que se preocupa, mas na hora da prática a gente vê que está difícil sair do papel." 
 
As ocupantes reforçam que não há nenhuma política pública voltada para as mulheres e pessoas trans na cidade. “Elas (mulheres) são completamente invisibilizadas, não tem nenhum tipo de atendimento, não só para mulheres, mas pessoas trans e não binárias, elas não têm serviço de atendimento”, afirmam. A ocupação se manterá até que o poder público se faça presente para negociar e garantir as pautas e haja uma negociação permanente, com recurso público destinado as demandas.

“A gente não pretende sair sem uma negociação efetiva. O único sinal da prefeitura, até o momento, é o abandono completo desse prédio que é muito grande, muito caro, tem salas e salas de serviço de atendimento, de ambulatório pra criança, tem muita coisa aqui, tá tudo muito destruído e muito detonado. A única presença do poder público que a gente tem aqui é a ausência e o descaso”, apontam. Elas pedem apoio da população, para que elas possam se proteger. “A gente não sabe de que maneira que o Estado policialesco pode intervir para encerrar a ação, visto que eles esperam provavelmente ações de distribuição de rosas e caminhadas tranquilas no dia 8 de março.” 

"Não se tem casa de acolhimento, não se fala nas escolas sobre conscientização. No posto de saúde, na UPA, no hospital, quando tu chega não há uma intervenção para auxiliar e acolher realmente essas pessoas que estão chegando e entender a causa de elas estarem chegando ao serviço público. A gente sabe que a lei Maria da Penha determina o atendimento integrado, atendimento em forma de rede, onde todo mundo deve trabalhar em conjunto para de fato coibir, diminuir, investir contra a violência contra as mulheres, e isso não ocorre na prática”, complementa uma das apoiadoras. 


"Não se tem casa de acolhimento, não se fala nas escolas sobre conscientização" / Foto: Fabiana Reinholz

Posicionamento da prefeitura 

Em nota, a prefeitura alega que a ocupação tem motivação política e que o prédio passará por reforma e será instalado Serviço de Atendimento Especializado (SAE) no local. “Estamos em ano eleitoral. O movimento é extremamente político. Todo o processo licitatório para o início das obras está concluído. Esperamos que a desocupação ocorra imediatamente”, enfatiza a prefeita, Fátima Daudt. 

Segundo o Executivo, o município conta, em parceria com a Feevale, ambulatório de atendimento à população trans na universidade e vinculado à regulação de consultas da Secretaria Municipal de Saúde.

Abaixo a nota completa da prefeitura 

Fátima alerta para motivação política em invasão de prédio

A prefeita de Novo Hamburgo, Fátima Daudt, alerta para motivação política do grupo que invadiu o prédio localizado na esquina das Ruas Joaquim Nabuco e Magalhães Calvet, no Centro. “Eles só ocuparam o prédio porque tomaram conhecimento da conclusão do processo licitatório para reforma do prédio”, enfatiza Fátima. A Prefeitura publicou nesta segunda-feira (07) o Boletim de Homologação 09/2022 (página 24 do Jornal NH), com a homologação 14/2022 da tomada de preço para reforma e instalação do Serviço de Atendimento Especializado (SAE) no local. O investimento é de R$ 771.761,71. 

“Estamos em ano eleitoral. O movimento é extremamente político. Todo o processo licitatório para o início das obras está concluído. Esperamos que a desocupação ocorra imediatamente”, enfatiza a prefeita.

O SAE, que irá funcionar justamente no prédio invadido e que atualmente está localizado em Hamburgo Velho (esquina das Ruas Generao Osório e Borges do Canto), presta atendimento a pacientes especiais, como portadores de hepatite, HIV, e inclui também a população trans, onde eles/elas têm acesso a atendimento médico, exames, testes rápidos e até preservativos.

Além disso, o município conta, em parceria com a Feevale, ambulatório de atendimento à população trans na universidade e vinculado à regulação de consultas da Secretaria Municipal de Saúde. Além disso, o município conta com atendimento às mulheres em toda a rede de atenção básica. “Portanto, os serviços pedidos pelos invasores já são prestados pela Prefeitura, o que confirma a motivação exclusivamente política do movimento”, reforça Fátima.

Resposta das Ocupantes à nota da prefeitura

Ficamos contentes com a homologação da tomada de preço do espaço onde estamos ocupando para o SAE. Mas chamamos atenção para o engodo burocrático desse processo, onde quem continua sem o serviço é a população e o patrimônio público sendo degradado. Quanto ao serviço ambulatorial para pessoas trans ofertado pela Feevale, não substitui o compromisso do poder público com o atendimento dessa população, visto que se trata de uma entidade privada. 

Assim solicitamos a ampliação do atendimento para pessoas trans e exigimos que seja executada pelo Estado, estamos no papel do controle social das políticas para essa população, sistematicamente excluída negligenciada.

No que tange aos serviços de saúde para mulheres não temos nada a agradecer pelo atendimento na rede básica de saúde. Estamos pleiteando um serviço especializado que dê conta das questões de gênero, direitos reprodutivos, e especificidades da saúde da mulher, que incluem prevenção da violência de gênero.

Já na política de assistência social reivindicamos a retomada do Centro de referência Viva Mulher que foi extinto em mais uma manobra burocrática de Estado mínimo que transformou o serviço em um CREA que, por sua vez, é um equipamento obrigatório da Política Nacional de Assistência Social em municípios do porte de Novo Hamburgo.

E, por último, não recebemos nenhuma proposta de acolhimento às pessoas que sofrem violência de gênero. Sua resposta é violenta, seus policiais truculentos. Mas não temos nada mais a perder às vésperas de 8 de março, mulheres morrem vítimas de feminicídio, pessoas trans, lésbicas, pretas e periféricas e a escala de violência só aumenta quanto maior forem as vulnerabilidades

Não recuaremos. 

Cara prefeita, estamos atentas e fortes, vigilantes e autoorganizades o suficiente para não nos conformarmos com estratégias de linguajar burocrático. Temos conhecimento das políticas públicas porque fomos nós quem as construímos neste país com movimentos sociais, ombro a ombro, com suor e sangue. Este município, território e estado nos pertence. A ocupação é simbólica, simboliza que este estado e território é nosso e vamos nos apropriar dele até que ele nos sirva. #noissaiquandotiversae


Ativistas farão um ato nesta terça-feira (8) / Foto: Divulgação


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
 

Edição: Katia Marko