Assista ao vídeo

Os russos apoiam a guerra contra a Ucrânia?

Propaganda estatal e repressão influenciam percepção da população sobre conflito com país vizinho

Rio de Janeiro (RJ) |

Ouça o áudio:

Manifestação contra a guerra em São Petersburgo - Olga Maltseva / AFP

Com mais de três semanas da invasão russa da Ucrânia, pesquisas oficiais do governo de Moscou mostram que a maior parte da população defende a operação militar na Ucrânia. No entanto, estudos independentes revelam que por trás do apoio à guerra há muita desinformação e medo de represálias. 

A guerra da Rússia na Ucrânia já produziu perdas de civis e militares de ambos os lados, gerando uma crise humanitária com mais de três milhões de refugiados na Europa. Além disso, a reação da comunidade internacional contra as ações do Kremlin gerou um isolamento sem precedentes de Moscou, causando graves riscos à economia e à estabilidade do país. Mas a posição da maioria da população russa, segundo diversas pesquisas, é de apoio à intervenção militar no país vizinho.

Mas o que os russos de fato defendem? Estudos independentes apontam que a desinformação e a propaganda midiática vêm desempenhando um importante papel na narrativa sobre a guerra. Vale lembrar que a intervenção russa na Ucrânia foi anunciada pelo Kremlin como uma operação militar especial, e assim os meios de comunicação são orientados pelo órgão regulador de comunicações (Roskomnadzor) a se referir ao conflito, sob pena de punições como bloqueio ou altas multas. Termos como “ataque”, “invasão” e “guerra” são proibidos de serem usados pela mídia russa.

O sociólogo russo, Gregory Yudin, em entrevista ao Brasil de Fato, afirmou que é muito difícil se orientar pelas pesquisas de opinião pública na Rússia por conta da ambiguidade de narrativas. Por um lado, a posição oficial do governo russo é de que se trata de uma “operação especial de paz feita para evitar uma guerra, e a posição oposta afirma que é uma guerra aberta, sobretudo uma guerra agressiva”.

“Nisso reside toda a dificuldade, porque dependendo da maneira como você faz a pergunta, você terá uma reação diferente. Para a maioria, se você perguntar se apoia a guerra, a pessoa responderá: 'Que guerra? Do que você está falando?'”, disse.

De acordo com o Centro de Pesquisa de Opinião Pública da Rússia (VTsIOM), órgão oficial do governo, 68% da população apoia a operação militar na Ucrânia. Já um estudo independente intitulado "Russos querem a guerra?" chegou a uma conclusão semelhante, identificando que 59% dos russos apoiam as ações militares na Ucrânia, mas com um dado a mais: uma maioria de 73% entre os que se afirmaram apoiadores da guerra confia no que é dito na mídia oficial do país.

De acordo com o coordenador do projeto de pesquisa, Alexei Miliaino, em conversa exclusiva com o Brasil de Fato, a propaganda do governo cria uma profunda desinformação entre os russos sobre o que de fato acontece na Ucrânia. Por isso, com a ajuda de uma equipe de sociólogos, ele ajudou a desenvolver este método de pesquisa combinando formas tradicionais de estudos de opinião pública — pesquisas por telefone em toda a Rússia — e análises de redes sociais. Segundo Miliaino, a junção desses métodos permite chegar a conclusões e verificar certas hipóteses que surgem, compreendendo melhor a percepção russa sobre a atual guerra na Ucrânia.

:: Artigo | Quais vão ser os efeitos da guerra na Ucrânia e das sanções? ::

“O que nós descobrimos? Que cerca de 3/4 daqueles que apoiam a guerra confiam na propaganda do governo. O que isso quer dizer? Que na realidade o que eles apoiam não é a guerra, mas há uma construção informacional na qual não existe guerra, e o que existe é um povo ucraniano escravizado por um pequeno grupo de nazistas: ‘nós estamos libertando o povo deste grupo que o oprime’. A maioria das pessoas realmente acredita nisso”, explica.

Através das análises de postagens e interações na internet, a pesquisa também mostrou que os sentimentos predominantes nas redes sociais russas sobre a guerra são de solidariedade aos ucranianos. “Ódio a ucranianos representam apenas 2% das postagens [...] a solidariedade representa mais de 30% das postagens”, afirmou o criador da pesquisa.

Por outro lado, o sociólogo Gregory Yudin observa que há uma porcentagem de 20-25% da população que se declara ativamente contra a guerra e que isso não é pouco para o estágio inicial em que a crise se desdobra. Ele observa que essa parcela tem mais pessoas com perfil jovem, de cidades grandes e com mais escolaridade. Há também uma parcela considerável de pessoas contra a guerra entre os mais pobres, porque “eles entendem quem vai pagar por tudo isso”, completa.


Taxa de rejeição ao conflito por faixa etária. Oposição é maior entre os mais jovens / Pesquisa "Os russos querem a guerra?"

Apesar de não representar uma divisão tão drástica, para Gregory Yudin tais cifras por si só já representam que estes 22 dias de conflito na Ucrânia foram suficientes para criar um país polarizado.

Outro fator destacado pelo estudo da opinião pública “Os russos querem a guerra?” é que o crescente autoritarismo no país inibe as pessoas de participar de pesquisas de maneira genuína. Alexei Miliaino explica que esta foi a principal conclusão da segunda onda de pesquisas promovida pelo projeto.

De acordo com ele, a análise feita de conversas por telefone com pessoas na condição de anonimato mostrou que há um grande número de entrevistados que afirmam que, se falarem o que pensam, têm medo de ir para a cadeia.

:: Para manter hegemonia financeira, Estados Unidos estudam criar moeda digital ::

“Na Rússia, foi adotado em 4 de março um pacote de censura militar, no qual apenas dizer a frase ‘não à guerra’ é passível de ganhar multa ou, em uma reincidência, acabar na cadeia”, acrescenta.

Rumo ao totalitarismo?

Durante uma reunião com os ministros do governo na última quarta-feira (16), o presidente russo, Vladimir Putin, fez uma declaração dirigida a cidadãos russos que se alinham ao que ele diz ser o pensamento ocidental, classificando-os como “traidores”.

“Claro que eles [o Ocidente] vão tentar apostar na chamada quinta coluna, nos traidores — naqueles que ganham seu dinheiro aqui, mas vivem ali. Vivem, não no sentido geográfico, mas no sentido de seus pensamentos, seu pensamento servil”, disse Putin. “Qualquer povo, e especialmente o povo russo, sempre será capaz de distinguir os verdadeiros patriotas da escória e dos traidores, e apenas cuspi-los como um mosquito que voou acidentalmente para dentro de suas bocas”.

Na noite de 24 de fevereiro, Putin anunciou o início de uma "operação militar especial" para "desnazificar e desmilitarizar" a Ucrânia, alegando ser uma operação de paz para defender as regiões separatistas pró-Rússia no leste ucraniano. O conflito tem como pano de fundo a exigência russa de limites à expansâo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

O sociólogo Gregory Yudin observa que a Rússia nunca foi um país totalitário sob a presidência de Putin, mas sempre foi um regime tipicamente autoritário com alguns momentos de mobilização social, mas que não vingaram. Yudin aponta que, desde que eclodiu o conflito três semanas atrás, houve uma inflexão para um “nível absolutamente diferente”. Segundo o sociólogo, a própria divulgação do objetivo de “desnazificar” a Ucrânia possui um efeito reverso, que pode estimular uma radicalização do nacionalismo dentro da Rússia.


Guerra já resultou em mais de 3 milhões de refugiados / Dimitar Dilkoff / AFP

“Essa história de desnazificação por si só possui um enorme potencial totalitário porque é compreensível que dentro desta lógica não há nenhum freio. Ou seja, se você quer desnazificar, isso de fato é um caminho direto para uma ‘limpeza’. Seria preciso ‘purificá-los’ do nazismo. E se todos eles são nazistas, então será necessário apagá-los todos e pronto'”, destaca Yudin.

O sociólogo cita também o fato de que na Rússia há uma profunda despolitização da sociedade, o que faz com que as pessoas “simplesmente neguem a realidade”. “As pessoas, a princípio, não querem nada em comum com a política, pensam somente sobre suas vidas particulares”, diz. 

Anteriormente, a Procuradoria-geral da Rússia anunciou que a participação em manifestação contra a operação militar na Ucrânia seria nivelada em termos penais com a participação em organizações extremistas, que dá até 6 anos de prisão. Em postagens nas redes sociais é possível pegar até 6 anos por comentários antiguerra. De acordo com os dados mais recentes, já são mais de 14 mil pessoas detidas em toda a Rússia por participar de protestos contra a guerra.

Edição: Thales Schmidt