This is not America

Clipe de rapper porto-riquenho viraliza com referências a Bolsonaro e lutas da América Latina

Lançada por Residente, vocalista do Calle 13, "This is not America" também faz menção a Victor Jara e Lolita Lebrón

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Em apenas 12 horas, o clipe teve duas milhões de visualizações - Reprodução

Se você não viu, já dê logo o play. O novo clipe de Residente, como é conhecido René Joglar, rapper porto-riquenho vocalista da banda Calle 13, foi lançado na última sexta-feira (18) e tem circulado com mais velocidade que a pólvora das invasões coloniais que ele retrata. Em cinco dias, This is not America já superou oito milhões de visualizações no youtube. 

Bradando que “América no es solo USA, papá”, a música tem participação da dupla franco-cubana Ibeyi, composta pelas gêmeas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz que, em 2019, gravaram Libre com Emicida. 

Dirigido pelo francês Gregory Orel, o clipe combina cenas de protestos de rua, repressão militar e futebol, grandes metrópoles com monumentos pré-colombianos, e traz diversas referências às opressões e resistências latino-americanas.   

Jair Bolsonaro (PL) é o chefe de Estado cuja referência é a mais explícita. Observado por uma criança indígena, o homem de terno e gravata abocanha um pedaço de bife da refeição acompanhada por uma taça de vinho no gabinete presidencial. Em seguida, limpa a boca na bandeira brasileira.  

“Tratamos de encontrar alguém parecido com ele”, confirmou o rapper ao Globo. São muitos os governantes que “não se importam com seus países”, disse, mas na impossibilidade de retratar todos no clipe, “escolhemos o campeão”. 


Bolsonaro foi o único presidente explicitamente representado no clipe / Reprodução

De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), as áreas de pasto para a pecuária já ocupam 75% das terras públicas desmatadas na Amazônia.  

Donald Trump também é criticado, como na cena em que uma mulher dá de mamar ao seu bebê por entre grades que os separam. A alusão à política estadunidense anti-imigrantes que em 2018 separou famílias e enjaulou ao menos 2.300 crianças é explícita. 


De acordo com o Centro para Estudos de Imigração, cerca de 1,2 milhões de imigrantes tentam chegar aos Estados Unidos a cada ano / Reprodução

O vídeo também faz menção a recentes revoltas populares que explodiram no continente. Entre elas, a de 2021 contra a reforma tributária que o presidente colombiano, Iván Duque, tentou emplacar; e a de 2019 no Chile, cujo estopim foi o aumento da tarifa dos transportes e que teve, entre suas consequências, uma nova constituinte. 

Quando canta “cinco presidentes em onze dias”, Residente lembra o feito realizado pelo movimento dos piqueteros na Argentina durante a crise econômica de 2001 que, sob a consigna “que se vayan todos”, derrubou esse tanto de chefes de Estado em tempo recorde.  

Do México, são retratadas as mulheres do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e os 43 estudantes de Ayotzinapa que seguem desaparecidos desde setembro de 2014.  

O pingente de “machete”, um facão, que aparece pendurado no pescoço de Residente é como o símbolo do Exército Popular Boricua de Porto Rico, também conhecido como Los Macheteros.  

A organização militar clandestina socialista existe desde a década de 1970 e luta pela independência porto-riquenha em relação aos Estados Unidos. 

Lolita, Jara e Tupac Amaru

Mas o clipe não se limita a eventos históricos recentes. Os tiros para cima que dão a partida para os tambores com os quais a música começa são aqueles disparados por Lolita Lebrón.  

Ativista anti-imperialista porto-riquenha, Lolita protagonizou um ataque a tiros contra a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos em março de 1954. O atentado lhe rendeu 25 anos de prisão.  


Dolores "Lolita" Lebrón Sotomayor morreu aos 90 anos em 2010 / Reprodução

Décadas depois, em 1997 e já presidindo o Partido Nacionalista de Porto Rico, Lebrón declarou ao congresso estadunidense que a ação armada não foi um ataque de ódio, mas o “grito de liberdade de um povo ameaçado de extinção”.  

O cantor chileno Victor Jara também é homenageado, em uma das cenas mais fortes do vídeo. Compositor de clássicas canções de protesto como Te recuerdo Amanda, Jara foi torturado e fuzilado poucos dias depois do golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet em 1973, que duraria até 1990. 

O Estádio Nacional em Santiago no qual foi morto e que serviu de campo de concentração do regime militar chileno leva, atualmente, o seu nome.  

Se referindo à figura de quem o rapper estadunidense Tupac Shakur pegou o nome emprestado, Residente fala do guerreiro indígena peruano que comandou uma insurreição contra a coroa espanhola durante o século 18.  

A cena no clipe em que uma mulher é puxada pelas pernas e braços pela polícia faz alusão ao desmembramento (com partes do corpo amarradas a quatro cavalos), que foi a pena de morte decretada a Tupac Amaru II depois de capturado, em Cuzco.  

Um salve para Childish Gambino 

“Gambino, mi hermano, esto sí es América”. A frase cantada por Residente é para o rapper e ator estadunidense Childish Gambino, que em 2018 lançou a música This is America.  

O vocalista de Calle 13 não parece se contrapor a Gambino, que no clipe da canção referida faz, com cenas da escravidão à violência policial, uma crítica pesada ao intrínseco racismo estadunidense.  

Mas não deixa de, o chamando de irmão, apontar que a violência colonial dos Estados Unidos se manifesta também quando seus residentes insistem em se referir ao país com o nome de todo o continente. 

“Estamos aquí”, diz René logo no início da música. “Mírame, estamos aquí.” 

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho