COLETIVA E ANCESTRAL

Culturas alimentares indígenas seguem vivas apesar do avanço do agronegócio

Coletividade e ancestralidade são pontos centrais para conter o domínio dos latifúndios e ultraprocessados

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“É um alimento saudável, é um alimento que tem espírito. É um alimento que dá energia, que une o povo", destaca a diretora de Comida Ancestral - Produção Comida Ancestral
A cozinha indígena é uma cozinha de cultura. É uma cozinha comunitária, para a coletividade

Falar de cozinha indígena não é falar de ingredientes, é falar de cultura alimentar.

“A gente não está falando dessa cozinha histórica, parada no tempo, dos cronistas e viajantes. A gente está falando de uma cozinha de um povo que está vivo. Da mesma forma que é preciso respeitar os povos indígenas, as culturas alimentares indígenas também precisam ser respeitadas. E porque elas estão vivas”, destaca a chef Tainá Marajoara.

A indígena carrega na culinária os saberes de seu povo marajoara. Desde 2009, ela vem realizando uma cartografia da cozinha amazônica. E fala com propriedade: o lugar de apagamento dos conhecimentos ancestrais, imposto pelos latifúndios e pela colonização, é extremamente prejudicial para os povos indígenas. 

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“O agronegócio nos tira da história da humanidade desde o seu primeiro momento, quando nos tira a alma, quando nos tira a terra, quando nos tira a nossa relação cosmológica com a dita civilização. Só que quando ele chega junto com a igreja e com a colonização, ele nos tira tudo para nos tornar escravos. E isso se repete hoje, 522 anos depois”, pontua. 

No arquipélago de Marajós, território originário de seu povo, o avanço dos arrozais e o uso massivo de agrotóxicos forçaram os indígenas a viverem com fome. E sem poder plantar. 

Iacitatá

Hoje, em Belém, o ponto de cultura iacitata é uma forma da indígena mostrar que é possível enfrentar este etnocídio cozinhando de forma saudável, e respeitando as comunidades. 

Todos os alimentos são de base comunitária e agroecológica, e também vindos de assentamentos da reforma agrária, como o Óleo de Patauá e a manteiga do Marajó. 

"Não entra na nossa cozinha um óleo de soja. Porque cada gota daquele óleo de soja que cai na panela, é um companheiro que cai no campo. Cada milho transgênico é um parente que é expulso da sua terra. Cada queimada é uma estrela no céu apagada”, explica Marajoara . 

“Esse monte de cheiro, aquilo que é cheiro do tamuatá, o cheiro do bucho, o cheiro do peixe, o cheiro da carne do búfalo, o cheiro da chicória no dedo da minha vó. Então são esses cheiros e essas percepções, e que compõem uma história, que foram para dentro da cozinha do iacitátá”, completa. 

A cultura mura

Professora da rede estadual de Rondônia,  Márcia Mura também recorda da avó ao lembrar do hábito de comer gongos, pequenos bichinhos que ficam dentro do coco de babaçu. 

“A gente coletava esses babaçus, minha vó quebrava bem na pontinha. Ele é lisinho, branquinho, O gosto dele é do leite da castanha do babaçu. Uma delícia. Para mim é um dos pratos maravilhosos”, relembra a docente.

No mestrado, feito na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Márcia se aprofundou no estudo da história oral de quatro mulheres, sendo uma delas sua avó. O trabalho resultou no livro “O Espaço Lembrado – Experiências de Vidas em Seringais da Amazônia” . 

Foi a partir deste trabalho, que Márcia percebeu que havia uma memória indígena invisibilizada em sua família. 

Em 2016, após defender a tese, a docente desejou voltar a um dos locais símbolo de sua ancestralidade Mura. Decidiu se estabelecer no distrito de Nazaré, distante 12 horas de barco saindo da capital Porto Velho.

"Eu tinha morado lá quando era criancinha, junto com minha vó. Os encantados das florestas e das águas já me conhecem”, relembra.

Perseguição e etnocídio

Mura começou, portanto, a lecionar na Escola Francisco Desmorest Passos como professora de Geografia, com o propósito de aprofundar a Pedagogia da afirmação indígena no ambiente escolar.

Assim que chegou, propôs um debate, entre a direção e os professores: mudar o nome de um dos principais eventos da escola, a Feira Gastronômica.

Na sua opinião, se o objetivo do encontro era valorizar a cultura local, ele poderia ser chamado de Encontro de Saberes e Sabores, como uma forma de reafirmar o papel da alimentação tradicional como uma cultura alimentar.

"Muitas capitais se apropriam do alimento tradicional por meio do termo gastronomia. Expliquei toda essa questão da apropriação por parte das receitas gourmet, que se utilizam do nosso conhecimento, que higienizam nossas comidas dentro de uma perspectiva capitalista e burguesa", pontua.

Em agosto de 2021, Mura foi afastada da unidade pela direção da escola por supostamente insistir em “inserir a temática indígena” na sua forma de lecionar. 

Há quase seis meses sem lecionar e sem receber salários, Mura ainda espera uma posição da Secretaria Estadual de Educação. Ela alega ter sido vítima de etnocídio, racismo e perseguição política. 

A educadora ainda acredita na manutenção da cultura mura, apesar dos projetos desenvolvimentistas que se expandem pelo Rio Madeira, no sul da Amazônia.

“A gente ainda mantém um modo de ser indigena, um modo de ser mura,  uma ligação com o ambiente. E luta para garantir o que resta desse Bem Viver nosso. Isso inclui todos os saberes e sabores que vem dos nossos antepassados”, acredita.

Comida Ancestral

Os hábitos alimentares de diferentes etnias pelo Brasil serão retratados pela cineasta Nicole Allgranti, em Comida Ancestral. O documentário está em fase de finalização e teve a maioria das cenas filmadas em terras de etnias que vivem no estado do Acre.

“Como disse o povo kuikuro, não existe isso de café da manhã, almoço, jantar. Come quando tem. Quando a floresta proporciona a caça. Por isso que os roçados são tão importantes, os milhos, as macaxeiras, a manutenção das sementes”, aponta a cineasta.

Realizado pela Taboca Filmes, Nicolle assina a direção junto a dois indígenas: Isa Bari Huni Kuin e Mocha Noke Koi.

“É um alimento saudável, é um alimento que tem espírito. É um alimento que dá energia, que une o povo em volta da caça, da pesca, da forma de preparo. E sempre quando uma família está comendo, a outra está comento também. Ninguém come sozinho. Ninguém quer um alimento só para si, os alimentos são compartilhados nas aldeias”, pontua. 

A mesma visão é compartilhada por Tainá Marajoara: “Ela não é uma cozinha para agradar o rei, para satisfazer um desejo absolutista. A cozinha indígena ela é uma cozinha de cultura. É uma cozinha comunitária, para a coletividade”, finaliza.

Ajude a equipe

Para apoiar a equipe de Comida Ancestral na finalização do documentário, a produção disponibiliza uma vaquinha virtual ou o Pix da produtora Erica Rosendo: 369.868.188-90 (CPF). 

É recomendado também entrar em contato com a diretora Nicolle Allgranti para mais informações de como contribuir: [email protected].

 

Edição: Douglas Matos