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58 anos do golpe: sob Bolsonaro, militares apostam em aprofundamento de relação com EUA

No aniversário da Operação Tio Sam, Sebastião Velasco e Cruz destaca convergência entre Forças Armadas dos dois países

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Porta-aviões da Marinha dos EUA que fazia parte da frota da Operação Brother Sam, que representa apoio dos EUA ao Golpe de 1964 - Divulgação/US Navy Archives

Há exatos 58 anos, em 1º de abril de 1964, as Forças Armadas dos Estados Unidos deflagravam a Operação Brother Sam. Com o posicionamento de uma esquadra militar no litoral brasileiro, o episódio representa, até hoje, o apoio dos militares estadunidenses ao golpe que levou à Ditadura Militar brasileira (1964-1985).

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As convergências históricas – e até mesmo as divergências – entre os militares do Brasil e dos Estados Unidos é o tema do próximo projeto de pesquisa de Sebastião Velasco e Cruz, professor de Ciência Política da Unicamp e coordenador de um núcleo de estudos sobre os Estados Unidos.

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Para marcar o aniversário do Golpe de 1964 e lançar um olhar apurado sobre a influência dos Estados Unidos no protagonismo político dos militares brasileiros, o Brasil de Fato convidou Velasco e Cruz para traçar um panorama histórico da relação entre as Forças Armadas dos dois países e fazer comentários sobre o atual estado de coisas no tema.

"As Forças Armadas do Brasil têm uma relação estreita com o aparato militar dos Estados Unidos desde os anos 1930. É uma relação orgânica de mais 70 anos", disse o cientista político. Ele pondera, no entanto, que o encontro político entre as Forças Armadas de Brasil e EUA não é de simples subordinação – ainda que isso tenha ocorrido de forma latente no Golpe de 1964.

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Sob Bolsonaro, argumenta Velasco Cruz, não houve continuidade da relação entre os dois aparatos militares, mas sim um "aprofundamento". Segundo ele, cada vez mais as Forças Armadas do Brasil abandonam um projeto de país para apostar na subordinação política aos Estados Unidos.

Leia trechos da entrevista:

Relações com França e Alemanha 

O Exército Brasileiro na década de 1920, logo depois da 1ª Guerra Mundial, se modernizou muito em um acordo de cooperação com a França, que mandou para cá oficiais. Uma missão francesa teve um papel muito importante na formação de oficiais no período anterior à revolução de 1930. No começo do século 20, os oficiais que buscavam modernizar as Forças Armadas eram enviados para a Alemanha. Contudo, com a 1ª Guerra Mundial, a Alemanha perdeu o terreno definitivamente. E a modernização do Exército brasileiro começa a se dar com a orientação dos militares franceses. A França era uma presença fortíssima na cultura literária e na cultura política brasileira no século XIX. 

Aproximação com os Estados Unidos 

Na década de 1930, há um deslocamento da liderança, da elite militar brasileira, que começa a perceber nos Estados Unidos uma potência em ascensão. Estabeleceram, então, acordos de cooperação. O Góes Monteiro vai aos Estados Unidos, visita bases. E ali se estabelecem as premissas para o acordo que vai aportar na criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB). O número de soldados brasileiros que foram lutar na Itália não é pequeno. Vai à casa dos milhares. Eles vão e lutam integrados no comando americano, estabelecem relações políticas e pessoais. É uma coisa que já vinha acontecendo antes com acordos de troca, envio de oficias para fazer cursos nos Estados Unidos, recepção de professores, de instrutores... Isso se intensifica muito com a experiência de operação no campo de batalha. Não por causa dos exercícios militares, mas na prática da guerra. 

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Influência dos EUA na Escola Superior de Guerra 

A criação da Escola Superior de Guerra (ESG), em outubro de 1948, teve uma integração muito grande com os Estados Unidos. Entre as congêneres ditaduras latino-americanas, a ESG foi a escola que mais fortemente estabeleceu esse vínculo de colaboração com os americanos, com o Exército americano. A relação internacional da ESG foi toda com os Estados Unidos. E havia representação militar americana na ESG. 

Subordinação tecnológica: a compra de equipamentos militares 

Na política, a convergência ideológica é muito importante, mas a dependência entre os aparatos militares aponta para uma dependência tecnológica. E o Brasil, desde a década de 1940, é comprador de equipamentos militares americanos. Os Estados Unidos sempre tiveram uma posição dominante nesse tema. 

Relação não é apenas de estrita subordinação 

Depois dos anos 1940, a relação continuou com tratados interamericanos e acordos militares entre Brasil e Estados Unidos. Foi assim nos anos 1950. Foi assim nos anos 1960, quando o governo Castello Branco mandou soldados numa intervenção militar em Santo Domingo [República Dominicana]. Não é pouca coisa. Não se trata, entretanto, de uma relação de estrita subordinação. Em 1952, na Guerra da Coreia, havia a expectativa de que o Brasil aderisse ou mandasse tropas, e o governo brasileiro não deu esse passo. Depois, durante o governo Geisel, durante o Regime Militar, com o golpe, há indicações mais claras de uma relação de integração a um sistema, em posição subordinada, mas não há um enquadramento disciplinar do Exército Brasileiro. Um exemplo é o programa nuclear. O programa nuclear brasileiro foi feito às costas e contra a orientação política de Washington. O acordo ocorreu com a Alemanha e o programa foi secreto para o desenvolvimento de tecnologia militar.  Isso explodiu, tornando-se público a diferença entre essas duas entidades em 1977, quando os Estados Unidos, pressionando o governo Geisel com a pauta dos Direitos Humanos, criou uma situação de desconforto que levou à denúncia do acordo militar Brasil-Estados Unidos, em 1977.

O envolvimento dos Estados Unidos no Golpe de 1964 

Em 1964, o envolvimento dos Estados Unidos é claro, documentado e reconhecido nos documentos oficiais. Isso está nos escritos e depoimentos do então embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. O golpe aconteceu e é de conhecimento público que era uma operação casada entre os dois países. Os Estados Unidos deslocaram navios de guerra para entrar em ação no Brasil, em caso de necessidade. Essa é a operação que o Marcos Sá Corrêa Correia trouxe à luz em um livro. 

Governo Bolsonaro aposta no aprofundamento da relação

[A relação dos militares no governo Bolsonaro com os militares dos Estados Unidos] é mais do que continuação, é de aprofundamento. É de transformação de uma organização militar que se identificava com os Estados Unidos, mas que buscava uma política própria. A política de desenvolvimento nacional do Vargas é, em grande medida, uma política militar. Os militares tiveram um peso muito grande nos programas de industrialização, na montagem da siderurgia, da infraestrutura, da logística. Tudo isso foi desenhado, não de forma exclusiva, mas com participação militar no desenho e na implementação. Os militares e as Forças Armadas brasileiras tiveram, digamos assim, uma concepção e a projeção do futuro do poder brasileiro no mundo. Essa ideia de Brasil grande potência, que era uma ideia-força no governo Geisel não é publicitária, ela foi elaborada intelectualmente pelos militares.

Edição: Rodrigo Durão Coelho