Coluna

Contribuições para pensar a cidade a partir de uma perspectiva de gênero

Diante de um ambiente predominantemente masculino, a crescente incidência de mulheres não foi isenta de contradições e tensões - Tiago Zenero/PNUD Brasil
Frente à demanda a sociedade civil organizada têm conseguido dar respostas aos problemas emergentes

A Organização das Nações Unidas (ONU) definiu como tema do Dia Internacional da Mulher no ano de 2022 “Igualdade de gênero hoje para um amanhã sustentável”, abrindo a oportunidade de refletirmos a respeito de como identificar e enfrentar os desafios na produção de nossas cidades como territórios mais justos e equitativos, essencial para a construção de um futuro com dignidade e justiça socioespacial.

Destaca-se que a presente reflexão é desenvolvida no contexto da pandemia da covid-19, a qual jogou luz e aprofundou as desigualdades no espaço urbano, em especial nas cidades latino-americanas. A crise sanitária e de bem-estar evidenciou uma série de dificuldades e desafios vividos no cotidiano das cidades, ligados à divisão sexual do trabalho e à relação entre atividade produtiva e reprodução da vida, no fornecimento de bens e serviços, cuidados, armazenamento, educação, transporte e mobilidade. A pandemia exigiu também uma nova organização do espaço público e privado, forçando o estabelecimento de novas relações desses espaços entre si, e da população entre essas duas esferas, que tiveram suas fronteiras borradas. Na prática, o contexto pandêmico significou a sobrecarga de trabalho para as mulheres, especialmente as de menor renda, que além do trabalho remunerado e das tarefas de cuidado que já realizavam, passaram a se responsabilizar pela família em tempo integral.

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Conforme explicitam as pesquisas desenvolvidas, a divisão sexual do trabalho se materializa nos espaços da casa e da cidade e implica na crise do cuidado, relegando este trabalho à esfera doméstica e individual. Tal condição agravada na cidade, desde o início da Revolução Industrial, a qual trouxe a estrutura da fábrica para o urbano e separou os espaços de acordo com as funções de morar, trabalhar, ter lazer e circular, sendo reproduzida até hoje. Separou também o trabalho reprodutivo, que ficou no âmbito doméstico, do trabalho produtivo, que deveria ser realizado no espaço público, cabendo o primeiro às mulheres, e o segundo aos homens. Essa separação tem consequências negativas na qualidade de vida e na vida cotidiana de todos os habitantes, mas especialmente das pessoas que realizam as tarefas de cuidado, que ainda hoje são majoritariamente atribuições de mulheres.

Em 2019, as mulheres brasileiras dedicaram em média 21,4 horas semanais para o trabalho reprodutivo não pago, enquanto estas atividades tomaram apenas 11 horas semanais do tempo dos homens. Na Argentina, as mulheres executam mais de 75% do trabalho doméstico não remunerado e dedicam em média 6,4 horas diárias ao trabalho doméstico, realizado por 88,9% da população feminina do país. Por outro lado, apenas 57,9% dos homens participam deste trabalho no país, dedicando em média 3,4 horas diárias.

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Dessa crise do cuidado emerge a questão: como garantir as condições para a realização da vida cotidiana nas cidades? As pesquisas desenvolvidas evidenciam que as tarefas de cuidado não se limitam ao espaço doméstico. Ao contrário, implicam em um deslocamento complexo e acompanhado no espaço da cidade, e demandam espaços coletivos de realização. Se os homens costumam transitar apenas entre a casa e o trabalho, as mulheres, por exemplo, levam os filhos na escola antes de ir trabalhar e passam no comércio na volta. Assim, a perspectiva de gênero é capaz de apontar os limites do urbanismo desenvolvido na sociedade capitalista atual, que privilegia espaços e atividades ligados à produção e associados ao masculino, em detrimento daqueles relacionados às tarefas reprodutivas ligadas ao cuidado e associadas ao feminino.

Além das limitações materiais provocadas pela compreensão de que os espaços público e político pertencem aos homens, também as dimensões simbólica e política são afetadas, na medida em que as mulheres sentem medo de percorrer os espaços públicos, nos quais são vítimas de violências, como o assédio sexual, e são privadas ou limitadas da participação de espaços de poder e tomada de decisão. No Município de Curitiba, alguns dados apontam para a existência dessas limitações, como o fato de ​​73% das curitibanas terem medo de andar sozinhas pelas ruas, especialmente à noite, e de apenas 8 das 38 cadeiras na Câmara Municipal de Curitiba serem ocupadas por mulheres. A exclusão, portanto, não é apenas material, mas também simbólica e política.

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Nesse sentido, tomar gênero como categoria de análise permite a visibilização das desigualdades, mas também a ação política de transformação, trazendo contribuições das epistemologias feministas em relação à perspectiva situada, considerando o contexto de produção das cidades, bem como as e os sujeitos que o produzem.

Na metrópole de Tucumán, a partir de pesquisas recentes que permitem identificar variáveis ​​censitárias associadas à vulnerabilidade – cuidado/mulher chefe de família/presença de crianças e idosos –, percebe-se como as mulheres da periferia urbana e, particularmente, em alguns municípios do leste, estão tensionadas. Essa tensão acentua-se para as chefes de família de menor renda e com maior presença de menores, em regiões com baixo acesso a serviços e equipamentos públicos e pouca disponibilidade de infraestrutura urbana, que dedicam maior tempo de suas vidas às tarefas de cuidado. Além disso, os padrões de mobilidade das mulheres mostram que elas fazem mais viagens a pé e de transporte público.

No Município de Curitiba a territorialização da desigualdade de gênero evidencia dois perfis distintos de mulheres chefes de família. Nas proximidades da área central, uma região de localização privilegiada e maior preço da terra, existem mulheres responsáveis por domicílio que são brancas, de maior renda e com famílias menores. Trata-se de uma região da cidade com acesso qualificado a serviços e equipamentos públicos e com boa disponibilidade de infraestrutura urbana. No sul do município, notadamente no extremo sul, residem as chefes de família de baixa renda e com mais filhos na primeira infância, fase da vida que demanda mais tempo voltado para as tarefas de cuidado. Ao contrário da área central, a região sul é caracterizada pela precariedade de infraestrutura urbana, serviços e equipamentos públicos, bem como das condições de habitabilidade dos domicílios. A maioria dessas mulheres é branca, o que seria esperado considerando o perfil racial da população de Curitiba. Ainda assim, a significativa maioria das mulheres negras responsáveis por domicílio encontram-se inseridas nesse perfil, demonstrando como a desigualdade de gênero se articula com a segregação social e racial no espaço urbano.

A análise das mulheres chefes de domicílio é também um indicador das mudanças socioculturais que apresenta uma tendência crescente. Em 1991, 22,4% dos domicílios na Argentina eram chefiados por mulheres, atingindo 27,7% em 2001 e 34% em 2010. Além disso, 70% eram chefes porque não tinham companheiros, mas 30% encontravam-se nesta posição por serem as que mais contribuíam com a renda para a casa. Em 2014, o total urbano de mulheres na condição de chefes de domicílio atingiu 37% na Argentina e 34% em Tucumán, confirmando uma tendência regional.

O Brasil, por exemplo, registrou em 2007 uma chefia feminina em 29,2% dos domicílios, a qual se elevou para 40,5% em 2015. Importante destacar que essa tendência é acompanhada pelo relativo empobrecimento das famílias, uma vez que as mulheres estão inseridas principalmente em empregos precários e são mais vulneráveis ​​ao desemprego e ao subemprego. Soma-se a isso, no caso brasileiro, o avanço do modelo neoliberal de desinvestimento público em políticas sociais, que afeta o acesso das pessoas ao cuidado e aumenta a carga de trabalho não remunerado das mulheres.

Em contrapartida, assumir o cuidado a partir de uma perspectiva ampla, não como responsabilidade exclusivamente feminina, mas coletiva e viabilizada por uma cidade cuidadora que possibilita o cotidiano, nos leva a refletir sobre as estratégias de diferentes grupos sociais, da cidade como direito. Entende-se que a vida cotidiana é o conjunto de atividades que as pessoas realizam para satisfazer suas necessidades nas diferentes esferas da vida, que incluem tarefas produtivas, reprodutivas, pessoais e políticas ou comunitárias. Essas atividades são realizadas em um meio físico (bairro, cidade, território) e consomem um determinado tempo, constituindo “infraestrutura para a vida cotidiana”.

Frente à demanda por essa infraestrutura, as ações da sociedade civil organizada têm conseguido dar respostas aos problemas emergentes observados na esfera cotidiana das mulheres, e por meio de mecanismos “de baixo para cima” constituem uma saída alternativa às emergências que surgem no cotidiano e nas escalas de proximidade. Também experiências em bairros que, a partir do atendimento das necessidades práticas decorrentes de seu papel de mulher, subvertem ao mesmo tempo papéis definidos para mulheres e homens e tendem a uma maior equidade. Essas experiências consideram as tarefas diárias que as pessoas realizam, além de outras características, como diversidade funcional, origem ou nível de renda das pessoas.

Durante a realização das atividades da disciplina “Desigualdades de Gênero, Cidade e Políticas Públicas” na Universidade Federal do Paraná (UFPR), foi possível visitar duas dessas experiências: a Bicicletaria Cultural, localizada no Centro de Curitiba, e a Associação de Moradores da Vila Joanita, localizada no bairro Tarumã. Com dinâmicas, inserções urbanas, funções e compartilhamento de responsabilidades diferentes, ambas trazem soluções a demandas cotidianas coletivas, que podem alimentar políticas públicas. Já em Tucumán, aponta-se como exemplo a ação das cozinhas comunitárias, assim como centros de atenção às violências, como estratégias de ação coletiva sustentadas durante a pandemia e vinculadas à ação estatal. Importa destacar que essas iniciativas não eximem o Estado de sua responsabilidade em trazer soluções às demandas cotidianas e de cuidado, pelo contrário, marcam a importância da construção de uma agenda pública compartilhada.

Acreditamos que a capacidade de traçar caminhos e a construção de uma agenda pública para nossas cidades supõe a contribuição essencial da construção coletiva de ideias, noções e formas de vivenciar conflitos. Nesse sentido, destaca-se ainda nossa responsabilidade enquanto comunidade acadêmica em contribuir para essa construção, no que diz respeito à inserção da questão de gênero nos debates e para seu embasamento teórico.

Além de inseri-la no campo das pesquisas, evidenciamos os desafios emergentes de interpretação e compreensão sobre a questão de gênero no quadro disciplinar (projeto e planejamento urbano). As áreas de formação, construção de conhecimento e prática profissional de arquitetura, urbanismo e design são atualmente desafiadas por novas demandas no contexto nacional e regional. Diante de um ambiente predominantemente masculino, a crescente incidência de mulheres não foi isenta de contradições e tensões. Sem ir mais longe, embora seja possível registrar contribuições desde o final do século XX, nesta segunda década do século XXI convergem processos que dão origem e demandam a construção de novos paradigmas interpretativos, novas questões para essa mudança de época.

Colocamos aqui uma série de discussões sobre a tensão entre trabalho produtivo/reprodutivo, cuidado e lutas coletivas pelo direito à cidade. Destacamos, porém, que a discussão sobre gênero e cidade vai além do que está sendo exposto neste artigo: envolve as novas masculinidades, questões de raça, classe e interseccionalidade, orientação sexual e identidades de gênero, novas agendas de diversidade e espaço, a intersecção das escalas de corpo, casa, bairro e cidade, entre outros temas que merecem igual atenção e precisam ser explorados tanto na academia como no desenvolvimento de políticas públicas urbanas, rumo a territórios mais equitativos e sustentáveis.

 

*Natalia Czytajlo - Professora e pesquisadora do Observatório de Fenômenos Urbanos e Territoriais da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Universidade Nacional de Tucumán); Elisa Siqueira - Mestranda em Planejamento Urbano (UFPR) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Curitiba; Kamila Silva - Mestranda em Planejamento Urbano (UFPR) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Curitiba.

**No marco da parceria e da trajetória de trabalho conjunto desenvolvido desde 2012, entre grupos de pesquisa da Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Brasil e da Universidade Nacional de Tucumán (UNT) - Argentina, este artigo faz parte das atividades desenvolvidas em Curitiba pela Profa. Natália Czytajlo no âmbito do Projeto CAPES PrInt “Espaço, sociedade e desenvolvimento: desafios contemporâneos”, coordenado pela Profa. Olga Castreghini de Freitas na UFPR. Além disso, incorpora resultados do trabalho da disciplina “Desigualdades de Gênero, Cidade e Políticas Públicas”, ministrada pela pesquisadora junto aos Programas de Pós-Graduação em Geografia e de Planejamento Urbano da UFPR.

***Há mais de 20 anos o INCT Observatório das Metrópoles vem trabalhando sobre os desafios metropolitanos colocados ao desenvolvimento nacional através da sua rede de pesquisa, organizada em 16 núcleos regionais. No contexto da atual crise econômica, social e sanitária, suas respectivas consequências presentes e futuras podem ser elementos mobilizadores para a construção de uma contra narrativa progressista e redistributiva para o país. Esta coluna se relaciona com os esforços atuais da nossa rede de reflexão e incidência sobre o tema, a partir do projeto "Reforma Urbana e Direito à Cidade nas Metrópoles". Leia outros artigos aqui

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo