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Moradores acusam mineradora Hydro de ameaçá-los com despejo em Barcarena (PA)

Mineradora norueguesa reivindica local em que vivem funcionários da Albras e de empresas terceirizadas

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Morador da comunidade de Nossa Senhora de Fátima II, distrito de Vila dos Cabanos, município de Barcarena (PA) mostra placa colocada pela Hydro - Ana Mendes/Amazônia Real

De segunda a sexta-feira, Romualdo, de 35 anos, trabalha na manutenção de caldeiras que alimentam a produção de alumínio na planta industrial da Alumínio Brasileiro S/A, a Albrás. No fim do dia, quando volta para casa, ele inicia mais um turno: participa de mais uma dentre as várias reuniões com outros moradores que discutem estratégias para vencer a Albrás na Justiça. Desde 2016, ele e outras 100 famílias iniciaram a ocupação Nossa Senhora de Fátima II, uma área de 3 mil metros quadrados reivindicada pela empresa que está localizada no distrito industrial de Barcarena, município do nordeste paraense. Como Romualdo, trabalhadores estão sendo ameaçados de despejo pela multinacional, que tem como acionista majoritária a mineradora norueguesa Norsky Hydro

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Romualdo não é seu nome real. O trabalhador atua em uma empresa que presta serviço à Albrás e, com medo de retaliação, preferiu conceder entrevista sob a condição do anonimato. Ele não é o único. O “bairro Nossa Senhora de Fátima II”, como chamam as famílias, é uma ocupação cuja maioria dos moradores trabalha na Albrás ou na Alumínio do Norte do Brasil (Alunorte) – ambas têm como acionista majoritária a mineradora norueguesa –, ou em uma das dezenas de prestadoras de serviço terceirizadas da multinacional. Os funcionários que, até então viviam em casas alugadas, viram no local uma chance de erguer suas próprias residências. Cada família vive em um lote de 30 metros quadrados na ocupação que fica na Vila dos Cabanos, bairro planejado para receber funcionários do polo industrial. E são esses terrenos que a empresa quer de volta.

Em funcionamento desde 1985, a Albrás produz lingotes de alumínio. Para completar a operação, dez anos depois foi criada a Alunorte, que transforma bauxita em alumina, matéria-prima da Albrás. As empresas foram instaladas em Barcarena no contexto dos chamados “grandes projetos”, a partir dos anos de 1960, quando estacionaram na Amazônia companhias nacionais e transnacionais voltadas à exploração de recursos minerais, hídricos e madeireiros da região – com incentivos fiscais do Estado e gerando grandes impactos socioambientais.


O vazamento de rejeitos de bauxita ocorreu em 18 de fevereiro de 2018, após fortes chuvas na região / Pedrosa Neto/Amazônia Real

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Tanto a Albrás, maior produtora de alumínio primário do Brasil, quanto a Alunorte, maior refinaria de alumina do mundo fora da China, pertenciam à então estatal Companhia Vale do Rio Doce, privatizada em 1996. Já em 2011, a norueguesa Hydro adquiriu Albrás e Alunorte, e as minas de bauxita em Paragominas, no sudeste do Pará, dominando toda a cadeia produtiva do bem. De lá pra cá, Barcarena viu sua população explodir de 20 mil habitantes em 1980 para os atuais 130 mil moradores, segundo projeção do IBGE.

Diante das dimensões da operação da Hydro, que gera cerca de 10 mil empregos diretos e indiretos na cidade paraense e só no ano passado teve lucro líquido de 1,5 bilhão de dólares, os moradores pediram ajuda ao poder público. Solicitaram à prefeitura que arbitrasse em favor da comunidade. Porém, segundo eles, o poder público municipal informou que nada podia fazer sobre uma área em disputa judicial. Os moradores da ocupação Nossa Senhora de Fátima II também procuraram três vereadores de Barcarena. Os parlamentares disseram que não podiam ajudar.

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“Eu te pergunto: por que a Albrás e a Hydro cantam que fazem tanta coisa em Barcarena, mas os caras querem desapropriar mais de 100 famílias, de uma área que eles não usam, não tem projetos?”, indaga o auxiliar-administrativo Kledson Batista dos Santos, 38, um dos moradores e vice-presidente da Associação Nossa Senhora de Fátima II. “As casas que eles têm na Vila dos Cabanos estão sendo vendidas. Será que esses caras pegam área do governo federal, governo estadual, governo municipal só para vender? E os nossos governantes não veem isso?”

Nossa Senhora de Fátima II é o retrato de um município cercado pela operação de empresas multinacionais. Segundo os moradores, a área possui tubulação destinada ao esgotamento sanitário, instalada durante a implantação do polo industrial de Barcarena entre os anos de 1970 e 1980, mas a estrutura não funciona. As duas ruas que compõem o conjunto são de terra, esburacadas e tomadas por grandes poças d’água. Nos arredores, uma poeira vermelha se levanta sempre que passa um caminhão carregado com cabos elétricos, ligas de alumínio, soja em grãos ou bois vivos, com destino ao porto de Vila do Conde, o maior do Pará, que que em 2021 movimentou 1,1 milhões de toneladas de carga.

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Já nas residências da ocupação, as paredes não têm reboco. Seixo, areia e tijolos se acumulam no quintal indicando que as obras estão em curso. Moradores do bairro estão espalhados por toda a linha de produção do alumínio em Barcarena – do mineroduto que transporta a bauxita de Paragominas à exportação do produto final nos navios de Vila do Conde. A maioria tem medo de se identificar, perder o emprego e, depois, não conseguir uma colocação em uma outra empresa.

Investimentos pessoais

Numa das ruas da ocupação, mora a família de Milton, de 40 anos, motorista de caminhão na empresa MS Terraplanagem. Ele também pediu para não revelar seu nome verdadeiro. Assim como a grande maioria dos moradores, Milton vivia de aluguel antes da ocupação Nossa Senhora de Fátima II, pagando 370 reais por mês. Com o valor da indenização de empregos anteriores, ele investiu na casa, em que vive junto da esposa Zenilda Maciel, de 25 anos, e do filho José, de 2 anos. Construiu dois quartos, cozinha e banheiro, e depois emendou mais uma obra, transformando sua sala em ponto de venda de açaí.

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“Aqui eu fiz um investimento de muito dinheiro. Trabalhamos de sol a sol”, afirma Milton, cuja esposa vende diariamente uma média de quatro latas de açaí. “Como uma empresa milionária quer destruir nossos lares? Ela tem que pensar no lado social, não só no dinheiro”, completa ele, cuja renda mensal é de 1.900 reais.


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Pressão constante

“O comentário na cidade é que a Albrás nunca perde uma causa na Justiça”, diz o vice-presidente da associação dos moradores, Kledson dos Santos. Mas a verdade é que a companhia vem acumulando derrotas. Em 2018, a Albrás ingressou com ação de reintegração de posse na Justiça do Pará, alegando ser proprietária da área. O juiz Emerson Benjamin Pereira de Carvalho, da 1ª Vara Cível e Empresarial da Comarca de Barcarena (PA), pediu manifestação ao Ministério Público do Estado do Pará, que se posicionou contra a reintegração de posse. A Albrás também havia pedido tutela antecipada, que é uma forma de garantir o cumprimento imediato da reintegração, o que foi negado pelo magistrado.

A Albrás recorreu da decisão, mas o desembargador Constantino Augusto Guerreiro, em outubro do ano passado, manteve a decisão, causando uma segunda derrota para a multinacional. O magistrado argumentou em seu despacho que a Albrás, apesar de apresentar o Registro de Imóveis e Boletim de Ocorrência, não comprovou a posse da área. O Ministério Público se manifestou contrário ao recurso baseado nos mesmos argumentos. Apesar da negativa na tutela antecipada, o processo judicial segue em curso, em primeira instância, até que o magistrado julgue o mérito e profira uma decisão sobre o caso.

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“Pode ser que seja realizada ou não uma audiência com os moradores. Mas se o magistrado entender que as provas reunidas são suficientes, ele pode julgar”, analisa o advogado Felipe dos Reis Pereira, que representa a comunidade.

O processo é a principal forma de pressão, mas os moradores se sentem sob ataque. Em um dos lotes, um ex-funcionário da Hydro levantou uma pequena casa de madeira e, ao redor, plantou roça: macaxeira, maxixe, abacaxi e banana. Depois de 25 anos atuando na empresa, devido a problemas de saúde, ele foi aposentado por invalidez, mas o benefício é provisório. Com medo de perder a aposentadoria, ele também pediu para não ter seu nome citado.

Há cerca de dois anos, o morador estava fora de Barcarena acompanhando seu pai em tratamento médico. Ele então recebeu a notícia: sua casa na ocupação Nossa Senhora de Fátima II havia sido queimada, mas não se sabe quem foi o autor do incêndio. “É muito estranho, a gente não sabe nada, não pode acusar ninguém. E ficou por isso mesmo, destruiu tudo.”

No final de 2021, o morador recebeu então a visita de um homem que se identificou como gerente da Albrás, morador das redondezas, informando que havia comprado a área diretamente da empresa. Há dois meses, alguém entrou no terreno e destruiu o plantio; bananeiras cortadas, batatas-doces arrancadas. Na cerca de madeira, foi fincada uma placa: propriedade particular. “Estou de pés e mãos atados”, diz ele.  

Juraci de Farias, 66 anos, também plantou roça em seu lote, onde vive ao lado de Ana Cláudia, 51, e de uma enteada. No quintal ao lado da residência, Juraci, que também é pedreiro, plantou e colheu. “Essa é a terceira safra de macaxeira, terceira de maracujá, quarta safra de batata doce”, afirma ele, num terreno que ainda comporta pés de abacaxi, banana, quiabo e jerimum. Da fundação ao arremate, a casa foi levantada pelo próprio trabalhador.

Os rejeitos da Hydro

A multinacional Hydro é uma vizinha incômoda. A pouco mais de 3 quilômetros, fica a bacia de rejeitos DRS2, que espalhou lama tóxica por comunidades de Barcarena em 2018. Muitas das famílias, inclusive, foram impactadas pelo vazamento, sendo por isso incluídas como beneficiárias nas condicionantes previstas no Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta firmado entre a companhia e o Ministério Público Federal (MPF).

Raquel Figueiredo, 25 anos, é uma das moradoras que recebem o tíquete alimentação resultante do acordo. Ela se cadastrou para o recebimento do benefício em 2018, mas só agora teve acesso à primeira de três parcelas de 844,50 reais, o equivalente a 70% do salário mínimo. “A gente não bebe água do poço. Essa água não presta. Para beber, só água mineral”, lamenta ela. “Meu marido veio para Barcarena a trabalho. Eu vim com ele pra ter algo na vida. Tive minha bebê. Construímos a nossa casa.”

Raquel e o marido estão na ocupação Nossa Senhora de Fátima II desde 2017. A filha do casal, Ketelyn, tem 2 anos. Eles vieram da comunidade de Cametá-tapera, na zona rural de Cametá, município do Baixo Tocantins. O marido trabalha na empresa Consteq Consultoria Serviços Gerais e Técnicos, cuja atividade principal é a manutenção e reparação de tanques, reservatórios metálicos e caldeiras. A empresa executa a limpeza dos fornos da Albrás. Seu primeiro emprego em Barcarena foi na Regaf Indústria de Metais, empresa de fabricação de estruturas metálicas. Com a saída da firma, ele também utilizou a indenização trabalhista para investir na casa. Ela, por sua vez, além do trabalho doméstico, faz doces e salgados por encomenda. “Faço docinho, coxinha, canudinho. O cento da coxinha custa 40 reais”, conta Raquel.

Viver de aluguel, contudo, deixou de ser uma opção. Segundo a dona de casa Marinalda Carvalho, de 46 anos, que mora na ocupação com o marido, filho e netos, “ninguém tem mais condições de pagar aluguel”. Para ela, o polo industrial encareceu a vida. “Os aluguéis são caríssimos. Aqui [Barcarena] tudo é caro. Tem muita gente de fora, muito funcionário de fora”, analisa. A casa, construída com “muito suor e sacrifício”, diz ela, foi resultado de um investimento de todo o dinheiro da família nos últimos anos.

Os conflitos fundiários pioraram nos últimos anos. A avaliação é do marido de Marinalda, que também preferiu não se identificar. Ele trabalhou como mecânico, caldeireiro e encanador em empresas como a Enesa Engenharia e Parex Construções Engenharia. Hoje está desempregado. “De uns tempos pra cá, piorou muito o conflito de terra. Foi uma explosão de casos.”

Na comunidade do Rio Tauá, as famílias também enfrentam a Hydro, , que pediu na Justiça o remanejamento dos moradores de uma área de 2 mil hectares. O rio Tauá é um dos impactados pelos vazamentos da bacia de rejeitos DRS2 em 2018. Já em outubro de 2021, a Justiça determinou o despejo de famílias quilombolas que vivem na comunidade Sítio Conceição. O pedido partiu do prefeito de Barcarena, Renato Ogawa (PL), e da empresa Águas de São Francisco Concessionária de Saneamento, que pretende realizar obras de saneamento que atravessam o território quilombola.

“A população está retornando”

“Esse processo de deslocamento forçado é permanente”, afirma o pesquisador Marcel Hazeu, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Os despejos se desenrolam, na avaliação de Hazeu, com um duplo objetivo: manter a população de Barcarena sob constante pressão e, ao mesmo tempo, garantir o processo de expansão permanente das empresas. “Durante a ditadura, já era intenção ir expandindo aos poucos. De certa forma, aconteceu com a bacia de rejeitos da Hydro e vai continuar crescendo porque é como a indústria funciona”, completa ele, que estuda as transformações sociais ocorridas em decorrência do polo industrial de Barcarena.

As desapropriações remontam à virada das décadas de 1970 e 1980, quando foi criado o polo industrial, tendo como principal empreendimento a Albrás/Alunorte, sob gestão da então estatal Companhia Vale do Rio Doce. Para viabilizar a infraestrutura necessária à implantação dos projetos, foram instituídas duas companhias estatais: a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Pará (CIP) e a Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar). As estatais, cujo controle acionário era repartido entre governo do Pará, município de Barcarena e União, também executariam o planejamento fundiário das áreas com uso industrial e habitacional.

Segundo levantamento de Hazeu, a instalação da Albrás/Alunorte e do porto de Vila do Conde causou a desapropriação de 513 famílias entre os anos de 1980 e 1990 apenas em Barcarena. Até o ano de 2014, foram desapropriadas 966 famílias. Segundo o mesmo levantamento, até aquele ano, estavam ameaçadas outras 1.622 famílias.

Por conta desse histórico, para o pesquisador, o que ocorre é uma reocupação das áreas outrora desapropriadas. “As comunidades passam por uma reocupação, porque todas essas áreas hoje sem uso eram das comunidades antes das empresas se instalarem”, avalia. “São chamadas de ocupações, mas deve-se pensar a partir de qual perspectiva. Quem ocupou foi a Albrás/Alunorte. Ocupou uma área imensa e expulsou grupos da população. Essa população não está ocupando, está retornando.”

Qual o interesse da Albrás?

Na ocupação Nossa Senhora de Fátima II, há uma pergunta que os moradores tentam responder: por que a Albrás reivindica essa área? Eles afirmam que não há plano de uso destinado à terra, mas muitos rumores circulam pela cidade. Para alguns, os principais interessados são funcionários do alto escalão da Hydro. “Já ouvimos que a alta gerência quer usar a terra para alojar as empresas, os galpões deles, seria mais interessante. É muito dinheiro envolvido”, diz o caldeireiro Romualdo, nome fictício de funcionário que atua na empresa com salário de 2.740 reais mensais. Ele mora com a sogra, filha e esposa, que está grávida de 37 semanas.

Para o vice-presidente da associação de moradores, a Hydro tem medo de uma derradeira derrota judicial, o que poderia resultar numa reação em cadeia, já que há outros processos semelhantes. Ainda assim, a companhia segue sendo contestada. Em setembro do ano passado, o juiz Raimundo Rodrigues Santana, da 5ª Vara da Fazenda Pública e Tutelas Coletivas, intimou a Hydro e o Estado do Pará a provarem que estão sendo cumpridas as contrapartidas decorrentes de um acordo a partir do qual a empresa recebeu 7,5 bilhões de reais em incentivos fiscais.

A ação partiu da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), que pediu a cassação dos incentivos, obrigando a Hydro a devolver o dinheiro, além do pagamento de multa por danos morais. O regime de isenção fiscal foi um dos eixos da política dos grandes projetos na Amazônia a partir da década de 1960 e se mantém até hoje. O acordo firmado em 2015 é válido até 2030.

Amazônia Real fez a mesma pergunta à Hydro: a empresa possui algum plano de uso para as terras em litígio? Por meio de nota, a mineradora informou que “está estudando a melhor estratégia para uso futuro dos referidos lotes”. A empresa afirmou ser proprietária dos lotes em que está situada a ocupação Nossa Senhora de Fátima II, todos “registrados em Cartórios de Registro de Imóveis e comprados da extinta Codebar na década de 90”. 

Perguntada se a companhia tem interesse em alguma forma de conciliação com os moradores, a empresa afirmou que “está à disposição das partes interessadas para dialogar sobre os referidos lotes”. Por fim, a Hydro informou que “tem mais de 5.700 empregados no Pará” e que contrata diversas empresas prestadoras de serviço. “Cerca de 80% dos funcionários da Hydro são do estado do Pará”, adicionou a nota.