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Titula Brasil faz parte da maior ofensiva de grilagem pós-ditadura

Com o esvaziamento do Incra no atual governo, grilagem avança de forma avassaladora

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Bolsonaro em evento de entrega de títulos do Titula Brasil, em Marabá (PA) - Reprodução/TV Brasil

“Como deputado, em 100% das vezes votei acompanhando a bancada ruralista”. Foi assim que o presidente Jair Bolsonaro começou seu discurso em um nada prosaico café da manhã oferecido a membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), no dia 04 de julho de 2019, em Brasília. “E vocês sabem que votar com a bancada ruralista é quase como parto de rinoceronte, recebendo críticas da imprensa, de organizações não governamentais e de governos de outros países”, prosseguiu o presidente. “Esse governo é de vocês”, finalizou.

Desde então, Bolsonaro vem provando que não só o governo, como o país, é sim da FPA e de quem a financia.

Lançado em 10 de fevereiro de 2021 pela ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina, uma das autoridades presentes naquele encontro, o Titula Brasil foi a cereja do bolo de uma série de iniciativas que beneficiam invasores de terras e estimulam o crime, a violência e o desmatamento no campo.

Por isso, logo que saiu do papel, ele ganhou, de ambientalistas, camponeses e organizações de defesa dos direitos humanos, o apelido de “Invade Brasil”.

Antes da portaria, em dezembro de 2019, o governo federal já tinha publicado a Medida Provisória 910/2019, conhecida como MP da Grilagem, que possibilitava ampla transferência de terras públicas invadidas por grileiros até dezembro de 2019. A MP acabou caducando, mas integrantes da FPA se articularam para aprovar projetos de lei que, com pequenas variações, repetem as mesmas proposições. São os casos do PL 2633/2020, assinado pelo deputado Zé Silva (SDD/MG), e do PL 510/2021, ainda em tramitação, de autoria do senador Irajá Abreu (PSD-TO), filho da senadora Kátia Abreu (PP-TO).

“O que está em questão em meio à pandemia do novo coronavírus é a transferência de cerca de 60 a 65 milhões de hectares de terras públicas para o domínio privado”. A afirmação é de um grupo de professores de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), que inclui Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Camila Salles de Faria, Carlos Alberto Feliciano, Gustavo Francisco Teixeira Prieto, José de Sousa Sobrinho, Maurício Torres, Sandra Helena Gonçalves Costa e Tiago Maika Muller Schwab.

No livro “A grilagem de terras na formação territorial brasileira”, eles alertam para o perigo de novas formas privadas de dominação e desmatamentos:

"Não surpreende ninguém, mas ressalta-se que o governo Bolsonaro tem colocado em primeiro lugar a defesa dos interesses de latifundiários, madeireiros e garimpeiros, ou seja, do agronegócio e do rentismo à brasileira no centro da antipolítica fundiária. É um governo de grileiros e, como sabemos, estes não fazem home office."

Retrocessos ganham escala com Bolsonaro

Para o geógrafo Paulo Roberto Raposo Alentejano, doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o cenário geral é de ofensiva sobre terras ainda públicas no Brasil. “Há um processo de expandir a incorporação dessas terras ao mercado”, diz. “Isso vale tanto para terras devolutas, aquelas fruto de grilagem, principalmente, mas não só, na Amazônia, como para aquelas situadas em assentamentos, que também são alvo de uma nova tentativa de titulação generalizada”, analisa.

O professor explica que o processo não começou agora. Fernando Henrique Cardoso fez, no final do segundo mandato, “um movimento significativo, já expressivo, que depois arrefeceu bastante durante os governos petistas, foi retomado com força no governo Michel Temer e com o Bolsonaro virou prioridade absoluta”. No contexto mais amplo, o geógrafo fala em avanço da mercantilização das terras públicas. “São esses dois movimentos principais, somados a um terceiro, que é a mercantilização plena, a questão da liberação de arrendamento de terras indígenas para o agronegócio e a mineração”.

Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Prieto vai na mesma linha. Segundo ele, é preciso entender o grilo para além da fraude. “Com a grilagem, a luta pela terra é transformada em negócio”, opina. “Grila-se uma terra e ainda se recebe indenização do Estado quando as pessoas são desapropriadas. É algo estrutural para o conjunto do agronegócio”.

A hegemonia do agronegócio, de acordo com os geógrafos, é realidade desde o final dos anos 90, quando houve a crise do real, com a desvalorização da moeda, e a promulgação da Lei Kandir, que isenta as tributações incidentes nas exportações dos produtos primários. O setor foi, assim, ganhando poder de interferir nas decisões governamentais. “Isso se propaga para o primeiro governo Lula, quando o Roberto Rodrigues, então presidente da Abag, foi indicado para o Ministério da Agricultura”, lembra Alentejano, sobre a Associação Brasileira do Agronegócio.

Outras lideranças fundamentais do agronegócio alçaram na época cargos no primeiro escalão, como Blairo Maggi e Kátia Abreu. “Há um processo de neutralização da reforma agrária, desconstruído ao longo do tempo, que se acentua, a ponto de o Lula chamar os usineiros de heróis”, acrescenta o professor. Ou seja, essa simbiose com o agronegócio era realidade já nas administrações petistas. “Fortaleceram os segmentos mais retrógrados, mais atrasados da sociedade brasileira, e agora estamos pagando o pato”, completa.

Alentejano reforça que as exportações foram alavancadas fortemente ao longo desse período. “Saltam dos 12 milhões de hectares colhidos de soja no Brasil nos anos 90, para o patamar de quase 40 milhões, um crescimento exponencial”. O volume de crédito também foi gigantesco. Tais medidas, juntas, fortaleceram um setor “tradicionalmente retrógrado e aliado ao que há de mais atrasado na política brasileira”. O cenário propício, que se reforçou mais com Temer e Bolsonaro, já estava então criado. “No governo Bolsonaro há um apoio absoluto desse setor, conectado com a agenda dele”.

Conforme cálculos dos pesquisadores da USP, sintetizando e somando a legalização jurídica e nacional da grilagem entre 2009 e 2020 chega-se a 190 milhões de hectares. São 67 milhões do Programa Terra Legal, implementado por Lula em 2009 e que autoriza a transferência sem licitação a particulares de terrenos da União na Amazônia Legal, mais 60 milhões de “regularização fundiária” de Temer em 2017 e mais 65 milhões de hectares do governo Bolsonaro.

"A ordem é simplificar e titular", diz pesquisador

“Pra mim, o Titula Brasil é grilagem por app”, resume Gustavo Prieto, em referência aos aplicativos de smartphones. “A própria pessoa faz a declaração sobre a ocupação mansa e pacífica”, comenta. De acordo com ele, a tática é implementar a MP 910, que caducou, “na marra”.

O perigo, porém, é que a anistia aos grileiros passa a ser ad infinitum. “Você faz de duas formas: a primeira é garantir a grilagem no passado e estabelecer possibilidades de que aquilo vai ser nacionalizado ou no futuro vai ser garantido um novo marco temporal”, explica. “E a segunda é a mobilização constante do termo segurança jurídica”.

Como forma de tentar confundir a população, em torno dessa grande ideologia da bancada ruralista se estabelece um novo vocabulário do agro. “Esse léxico estabelece aquilo que está rotineirizado pela Tereza Cristina e pelo Luiz Nabhan”, explica Prieto. “A grilagem nunca aparece; aparecem áreas públicas federais não regularizadas, adquirentes de boa fé etc”. E, para complementar, há uma confusão jurídica entre posseiros e grileiros. “Nos vídeos institucionais, aparecem cidadãos de baixa renda acessando pela primeira vez um título”.

Na audiência pública que marcou o lançamento do programa, em 25 de março do ano passado, a ministra afirmou que o Titula Brasil tem como objetivo “facilitar a concessão de títulos”. Ela argumentou que a aprovação do PL 510/2021, do senador Irájá, “auxiliará na desburocratização do processo”. Segundo dados do Incra, em 2021 foram emitidos 137 mil títulos de terra, contra 109 mil documentos em 2020.

“As palavras de ordem são simplificar e titular”, define Prieto. “São os dois mantras: automatizar e desburocratizar”. O professor fala em grilagem por app pois paira a dúvida de como a União e os técnicos dos municípios vão fiscalizar esse processo, já que o Incra vem sendo “esvaziado” nos últimos anos. “São 166 mil imóveis só na Amazônia”, lembra. Na avaliação dele, há ainda uma flagrante inconstitucionalidade. Isso porque a operação acontece em escala municipal, mas as terras são da União.

Pagamento de precatórios toma orçamento do Incra

Outra questão diz respeito ao baixo orçamento do Incra. Em 2021, a autarquia executou R$ 3,4 bilhões em verbas, sendo a maior parte dos recursos destinada ao pagamento de precatórios. A Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef/Fenadsef) e a Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (CNASI-AN) informaram que as verbas para créditos, melhorias de assentamentos, monitoramento de conflitos fundiários e reconhecimento de territórios quilombolas sofreram um corte de 90%.

“Os servidores públicos vão de fato averiguar os dados declaratórios dos latifundiários?”, questiona o pesquisador. Fala-se, por alto, de regularização fundiária de 300 mil famílias, que serão cadastradas por funcionários municipais, cabendo ao Incra a checagem remota. “Para além da pressão política local, esses apps de georreferenciamento e funcionamento remoto vão ser operados por quem, em locais onde não há nem internet?”

A falta de transparência na descentralização do processo para os municípios, onde a pressão política local pode influenciar quem vai receber os títulos, favorecendo interesses particulares, é a principal crítica de organizações sociais. Para o Greenpeace, titulação sem justiça social e ambiental não funciona. “Ao defender a facilitação na concessão de títulos, o governo Bolsonaro tenta maquiar a realidade, porque não está preocupado em dar o título de terra para quem realmente tem direito e em prol do interesse coletivo”, escreve a ONG, em nota.

Pesquisadores temem acirramento de conflitos

Paulo Alentejano menciona ainda a questão das florestas públicas, que também são objeto de um movimento de concessão privada. Todas essas propostas são fruto, de acordo com o professor, da dinâmica expansiva do agronegócio no Brasil.

Em relação aos governos anteriores, ele destaca duas diferenças fundamentais. “Essa ofensiva ocorre diante de um desmonte generalizado de todas as políticas de sustentação e de apoio ao desenvolvimento dos assentamentos”. Bolsonaro acabou com ou enfraqueceu políticas de assistência técnica, de educação, caso do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), voltado para a formação de estudantes do campo, e de apoio à comercialização, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

“Isso tudo, somado à entrega do título de propriedade privada, aumenta a fragilidade dos assentados”, opina. O geógrafo prevê que, com a possibilidade de venda das terras, uma vez tituladas privadamente, ocorra uma reconcentração fundiária muito maior. “Os processos de grilagem são legitimados por esse governo, que legitima também a violência no meio rural, com liberação de armas e incentivo ao porte”, afirma. Trata-se, conforme o professor, de uma “combinação explosiva”, que potencializa os conflitos.

De acordo com Alentejano, a grande diferença do governo Bolsonaro para os demais é a escala. “Algo disso já vinha do governo Temer e, mais longe ainda, desde FHC, que é a construção de uma hegemonia do agronegócio”, afirma. “Essa hegemonia atravessou os governos petistas sem contraposições mais expressivas”.

Na opinião de Gustavo Prieto, essa é a maior ofensiva de grilagem pós-ditadura. “Eu acho que sim e que está associada a um outro processo: uma tentativa de liquidação de projeto de reforma agrária, ou seja, de reinserção de terras de assentados no mercado formal de terras”. O professor destaca o fato de não se estabelecer a concessão de direito real de uso, mas sim um título definitivo: “É não só grilar a terra do estoque de terras públicas brasileiras, mas junto disso reverter a nossa tímida reforma agrária, sobretudo em áreas onde o valor médio de hectares é alto, como no sudeste, e onde há forte especulação imobiliária. Não é só um processo de impacto pro campo brasileiro. É também para a área urbana”.