Domínio do capital

Artigo | Elon Musk, Twitter, a liberdade e o liberalismo

O que o bilionário defende é o liberalismo e não a liberdade de expressão, dois conceitos distintos que não se confundem

São Paulo |
A intenção de Elon Musk de controlar o Twitter deveria ser avaliada na premissa de que nem sempre liberalismo, liberdade e igualdade estão em harmonia - Win McNamee / Getty Images via AFP

A intenção de Elon Musk, um dos homens mais ricos do planeta e que já domina setores do mercado relacionados com tecnologia e inteligência artificial, de adquirir o controle acionário do Twitter – plataforma com papel importante nas praças públicas de debates políticos em diversos países – se revela como um problema.

Trata-se de um dos representantes máximos do neoliberalismo e o fato é que essas figuras, com o objetivo claro de ampliar suas riquezas e seus poderes, vêm se utilizando com frequência do discurso da defesa da liberdade, com consequências graves e com o acirramento profundo das desigualdades, que é um dos resultados do neoliberalismo. Na proposta que encaminhou para aquisição do controle acionário do Twitter, Elon Musk deixa claro que pretende transformar a empresa em sociedade de capital fechado, demonstrando a intenção de não ter de se submeter a decisões colegiadas de um conselho de acionistas e a limites legais que são mais rigorosos para sociedades capital aberto. Ele também é explícito quanto à sua oposição com relação às práticas de moderação de conteúdo pelas plataformas e à regulação estatal sobre este tema, sob o argumento de ser defensor da liberdade de expressão. Dessa sua posição emerge uma contradição clara: quando não há limites para a manifestação do pensamento, abre-se espaço para que prevaleça o interesse dos economicamente mais poderosos ou politicamente mais organizados, que terminam por exercer a liberdade de expressão de forma privilegiada. É sintomático que ele tente se apropriar do discurso da liberdade de expressão, mas ao mesmo tempo não haja traços no seu discurso de preocupação com o valor da igualdade. E é compreensível pois, na verdade, o que ele defende é o liberalismo e não a liberdade de expressão, dois conceitos bem diferentes e que não se confundem. Nesse sentido, é importante ter presente que liberdade e igualdade muitas vezes são conceitos antitéticos, como bem tratado por Fábio Ulhoa Coelho e seu mais recente livro Os livres podem ser iguais?, considerando também que: “o que precisamos discutir não é qual valor, entre a liberdade e a igualdade, que deveria sempre prevalecer; e sim quais são os critérios que devem nortear nossos constantes ajustes entre eles. É uma discussão bem mais difícil”. Aliás, uma das consequências do liberalismo levado às últimas instâncias, como temos vivido nos últimos mais de 20 anos, é justamente uma enorme desigualdade, especialmente quanto ao exercício da liberdade de expressão e de direitos sociais e políticos. Vale perguntar então: quem domina hoje os mecanismos do fluxo de informação no planeta? As big techs, empresas americanas e poderosas, que, atuando como oligopólios globais, com bilhões de usuários aderidos às suas plataformas, têm causado danos em larga escala nos sistemas políticos e democráticos de diversos países. Aplicam seus sistemas algorítmicos calibrados com foco no lucro decorrente de processos de impulsionamento pago de conteúdos, propagandas comerciais e políticas, mecanismos de censura baseada na alegada defesa de direitos autorais e de recomendação, muitas vezes conflitantes com o interesse público, com direitos fundamentais, sem respeito aos princípios da dignidade humana e sem a garantia da devida segurança de seus consumidores. A intenção do Elon Musk de adquirir o controle do Twitter deveria ser avaliada e resolvida com base nessas preocupações e na premissa de que nem sempre liberalismo, liberdade e igualdade estão em harmonia, demandando atuação estatal para que se chegue ao equilíbrio possível. Entretanto, isto é improvável; a despeito de vivermos num momento de declínio do neoliberalismo por conta dos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19, ele ainda prevalece nas instâncias institucionais de diversos países, especialmente nas que (des)regulam a exploração de atividades econômicas. Portanto, acredito que será um grande prejuízo para o mercado de redes sociais e da comunicação, com reflexos negativos para a liberdade de expressão e para a democracia, caso o Twitter venha a ser “comprado” por Elon Musk.

*Flávia Lefèvre Guimarães, advogada especialista e direito do consumidor e direitos digitais, integrante da Coalizão Direitos na Rede

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Sarah Fernandes