Coluna

Porões ou avenidas?

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A proibição da prática de tortura e a proteção aos direitos humanos são um dos fundamentos, dos pilares das chamadas democracias ocidentais - Pixabay
Não existe direito a defender tortura e ditadura. Isso não é direito de opinião

Por José Carlos Garcia*

Desde 04 de junho de 1943, data da publicação do Decreto-Lei 5.540, o dia 19 de abril é considerado oficialmente o “Dia do Índio”. Tratava-se de uma reivindicação dos próprios movimentos indígenas então existentes, reunidos no Congresso Indigenista Interamericano ocorrido no México, em 1940. Com o tempo, o próprio termo “índio” passou a ser visto muito criticamente pelos movimentos indígenas, que o consideram colonial, pejorativo e inadequado à expressão das múltiplas formas de manifestação das inúmeras e diferentes culturas indígenas. Por isso reivindicam a modificação da denominação formal da data para outra que represente melhor a atual autocompreensão e identificação cultural destes povos e culturas. O Projeto de Lei 5.466/2019, de iniciativa da Deputada Federal Joenia Wapichana, prevê a adoção da denominação “Dia dos Povos Indígenas”, e foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em 16 de dezembro de 2021. Atualmente aguarda redação final e encaminhamento para o Senado Federal, onde deverá ser apreciado. 

Foi precisamente no Dia dos Povos Indígenas de 2022, 19 de abril, que o Presidente do Superior Tribunal Militar – STM, General de Exército Luís Carlos Gomes de Mattos, reagiu ironicamente a matéria publicada pela jornalista Miriam Leitão em sua coluna do domingo anterior, dia 17, no jornal O Globo. Nela, a jornalista mencionava 10 mil horas de gravações das sessões do STM, realizadas entre 1975 e 1985, nas quais Ministros daquele Tribunal admitiam e ou denunciavam a prática de tortura em instalações de órgãos policiais ou das Forças Armadas. Resgatadas pelo historiador Carlos Fico, da UFRJ, com base em decisão judicial, aquelas declarações não são de detratores ou opositores à Ditadura Civil-Militar instalada em 1º de abril de 1964, mas de Ministros da Corte que eram Oficiais Generais das Forças Armadas em votos proferidos em sessões do Tribunal ao julgar processos judiciais, gravações estas realizadas oficialmente pelo próprio Tribunal. Em reportagem que foi ao ar no Fantástico do mesmo 17 de abril, são citadas falas de ministros como o General Rodrigo Otávio Jordão Ramos (sessão do STM de 24 de junho de 1977), o Almirante de Esquadra Júlio de Sá Bierrenbach (sessão de 19 de outubro de 1976) ou o General Augusto Fragoso (sessão de 9 de junho de 1978). 

Ao que parece, nem a fonte oficial das gravações, nem a qualificação dos gravados, foram suficientes para que o atual Presidente do STM deixasse de considerar sua divulgação como “tendenciosa”, destinada a afetar a imagem das Forças Armadas. Segundo o jornal Correio Braziliense, ele teria dito: “A gente já sabe os motivos do porquê que isso vem acontecendo agora, nesses últimos dias, seguidamente, por várias direções, querendo atingir as Forças Armadas, o Exército, a Marinha, a Aeronáutica. E, sem dúvida, nós somos quem cuida da disciplina, da hierarquia, que são os nossos pilares das nossas Forças Armadas. Nós não temos resposta nenhuma para dar. Simplesmente ignoramos uma notícia tendenciosa daquela, que nós sabemos o motivo, né?” E teria completado que a divulgação do material “não estragou a Páscoa de ninguém. A minha não estragou”. 

O trecho acima transcrito da fala do General não elogia ou apoia a tortura ou a ditadura. Apenas relativiza a importância da revelação daqueles áudios. No entanto, sua reação parece amostra de um absoluto e incompreensível descompasso de estruturas militares com o regime democrático e seu núcleo inafastável, que são os direitos humanos. Que pouco depois do fim da ditadura pudéssemos ter expressões como estas, de desconsideração pela comprovação oficial de casos de tortura, de demonstração do que parecem poder ser omissões do STM, segundo a opinião do desembargador paulista aposentado Walter Maierovitch, na determinação de abertura de inquéritos e encaminhamento dos casos ao Ministério Público para responsabilização, inclusive criminal, dos torturadores, seria já inaceitável, mas compreensível. Todavia, isso ocorrer nos dias de hoje, quase 34 anos depois da promulgação da Constituição Democrática, é de um absurdo dificilmente concebível. Irônica ou mesmo sarcasticamente, o General faz menção ao fato de que denúncias tão graves “não estragaram sua Páscoa”, aparentemente focando mais no feriado do que no fato de que a Páscoa cristã celebra a ressurreição de alguém que fora brutal, monstruosamente torturado antes de receber uma das mais cruéis e dolorosas penas de morte então existentes, a crucificação. 

Mesmo que ao menos esta parte do discurso – não o conheço integralmente – não defenda tortura e ditadura, ela certamente alimenta, ainda que involuntariamente, a sanha daqueles que o fazem. Por isso, em tempos sombrios de fake news, terraplanismos, movimentos antivacina e outras atrocidades irracionalistas, acabamos sendo convocados a repetir, aos gritos, o óbvio, o que qualquer néscio seria capaz de compreender. Nós não estamos falando sobre discursos “de esquerda” ou “de direita”: a proibição da prática de tortura e a proteção aos direitos humanos são um dos fundamentos, dos pilares das chamadas democracias ocidentais, filhas da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Americana de 1776. Situam-se no coração da nossa Constituição, o art. 5º, a generosa e humanística lista aberta de direitos e garantias fundamentais que tentam impulsionar este imenso, este injusto, este brutalmente desigual, mas ainda assim belo e rico país não rumo a porões fétidos e sanguinolentos do passado, mas para o difícil, complexo, árduo caminho de construção das luzes democráticas, que só podem vingar no debate, na polêmica, na liberdade.

Não existe, repito, não existe direito a defender tortura e ditadura. Isso não é direito de opinião, não está assegurado a ninguém, não se contempla no rol de liberdades constitucionais. Eu não tenho o direito de defender o sequestro, a tortura, o assassinato, o desaparecimento de ninguém; não tenho o direito de defender censura, fechamento de Parlamento ou Tribunal, fechamento de sindicatos, associações, jornais; dizer que há direito a defender tais teses não é apenas formalmente equivocado do ponto de vista jurídico e político-institucional: é uma sandice sem qualquer fundamento político, jurídico, lógico ou moral. Bem ao contrário, essa defesa agride diretamente o art. 5º da Constituição em seus incisos III, IX, X, XI, XII, XVI, XVII, XVIII, XXXV, XXXVII, XXXIX, XLI, XLIII, XLIV, XLVII, XLIX, L, LIV, LV, LVI, LVII, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV e LXVIII (e não à toa a ditadura de 1964 baniu o habeas corpus), dentre outros. Viola tratados e convenções internacionais dos quais a República Federativa do Brasil faz parte. Promove e instiga a prática dos crimes previstos nos arts. 359-L, 359-M, 359-N e 359-P do Código Penal, crimes contra o Estado Democrático de Direito que foram introduzidos naquele Código pela Lei 14.197, de 1º de setembro de 2021. Agride o disposto na Lei 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura. Quando praticados por autoridade pública, pode caracterizar crime de responsabilidade, previsto na Lei 1.079, de 10 de abril de 1950. E poderia seguir citando miríade de leis, acordos, convenções e tratados internacionais. Mas isso parece desnecessário, pois que a prática de tortura é tão abjeta, tão plenamente situada nos esgotos da alma humana, que dela não se podem extrair senão ratos, baratas e outros animais desprezíveis e peçonhentos. 

A alusão que fiz ao Dia dos Povos Indígenas e aos áudios oficiais de ministros do STM reconhecendo a prática de tortura em instalações oficiais do governo durante a ditadura não foi sem propósito. A Comissão Nacional da Verdade – CNV foi criada pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, para examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, como determinado pelo art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, parte integrante da Constituição Brasileira. Em seu relatório final, a Comissão considera que “foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relação aos quais foi possível desenhar uma estimativa. O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas” (BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos. v. 2. Brasília: CNV, 2014, p. 199). Os relatórios da Comissão estão disponíveis na internet

Recentemente, temos visto uma escalada de ataques a populações indígenas, em muitos casos com a participação decisiva de garimpeiros que atuam ilegalmente em terras indígenas demarcadas. Em 2021, foram 101 mortes apenas de Yanomamis provocadas pelo garimpo. Em muitos casos, há omissão de autoridades e agências que deveriam proteger o território indígena e suas populações. Ao contrário, tramita hoje, na Câmara Federal, o PL 191/2020, de autoria do Poder Executivo, que torna legal o garimpo em terras indígenas, agravando ainda mais a situação daqueles povos. É sintomático, portanto, que na mesma semana em que ativistas dos povos originários do Brasil protestavam em Brasília contra os ataques a seus territórios, sua gente e sua cultura, viessem a público os áudios oficiais que reconheciam a tortura durante a ditadura, seguido de sua triste relativização, vez que sequer de desmentido se cuida. Essa aparente coincidência deve levar-nos a refletir sobre nosso passado, nosso presente e que futuro queremos construir para nosso país, nossa sociedade, nosso povo. 

O lugar da tortura e da ditadura é a sala escura e fechada, o porão, o esconderijo, o ninho de ratos; o da democracia, uma avenida ampla e iluminada, pronta a receber sol e brisa, onde as pessoas divergem e polemizam sem cessar, lutam, protestam, reclamam seus direitos, que suas opiniões sejam ouvidas, e onde esse confronto nunca ameace a vida ou a dignidade de ninguém. É um sonho. Mas daqueles que valem muito a pena serem sonhados juntos.  

Aos milhões.

 

*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Glauco Faria