MILITARES E POLÍTICA

"Democratização" das Forças Armadas denunciaria abismo entre oficiais e praças, diz sociólogo

Ex-assessor da Comissão Nacional da Verdade defende direito de organização de militares: "Não são bloco homogêneo"

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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"Fim do serviço militar obrigatório e concurso de civis para o Ministério da Defesa deveriam estar na agenda eleitoral" - Divulgação

"Nós temos que quebrar o paradigma de que a presença dos militares na política é negativa para a democracia." A visão do sociólogo Paulo Ribeiro da Cunha, autor do livro Militares e Militância, está longe de ser um consenso na academia e no campo progressista, principalmente diante do desgaste das Forças Armadas na opinião pública durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) – a quem Cunha define como "um genocida, não tem outro nome".

Ex-assessor da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o sociólogo disse, em entrevista ao Brasil de Fato, que "o negativo é a partidarização das instituições militares, como intenta Bolsonaro e, antes, a UDN". Mas, segundo Cunha, "historicamente, os militares sempre estiveram envolvidos na política". Em diversos episódios, inclusive, se posicionaram à esquerda do espectro político.

O sociólogo também defende sua posição baseado na importância de reconhecer a desigualdade entre os praças (militares de baixas patentes) e os oficiais (altas patentes). "Houve o movimento do capitanismo [formado por militares que reivindicavam a adequação da estrutura das Forças Armadas à realidade pós-88] e da Associação de Praças do Exército Brasileiro (Apeb), este último dizia claramente: 'Nós não somos escravos dos oficiais'. Os oficiais criavam dificuldades, por exemplo, para os praças estudarem", diz Cunha.

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"Sempre o maior erro da esquerda e dos nossos analistas é enxergar os militares enquanto um corpo único, homogêneo e que pensa só para dentro. Isso é o maior erro. Militares, no Brasil, são militares das três Forças [Armadas], que têm culturas e particularidades distintas. São também as polícias militares", argumenta o sociólogo.


Paulo Ribeiro da Cunha, ex-assessor da Comissão da Verdade e autor de "Militares e Militância" / Acervo Pessoal

Doutor em Ciências Sociais e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o pesquisador é estudioso da obra do general Nelson Werneck Sodré. "Foi um militar que atuou politicamente nas causas nacionais, democráticas e que foi muito perseguido", explica. Com dois livros publicados a partir de suas pesquisas sobre a obra de Sodré, Cunha mergulhou em um tema que, segundo ele, até hoje "inquieta a universidade": os militares de esquerda.

"Eu comecei a perceber um componente que era muito pouco conhecido na trajetória de uma parte dos militares brasileiros, que são os militares de esquerda. Até hoje, isso traz uma certa inquietação na universidade. O Nelson Werneck Sodré representava um pouco esse grupo, que chegou a ter uma organização própria no Partido Comunista chamado Setor Mil, ou Anti-Mil", relembra.


Nascido no dia 27 de abril 1911, no Rio de Janeiro, Nelson Werneck Sodré foi militar e historiador / Divulgação

"É sempre bom lembrar que o Partido Comunista, durante um tempo, teve seu Comitê Central formado por um número muito maior de militares do que de operários. Essa visão de militares dentro de partidos foi algo inédito na história dos comunistas no mundo inteiro. Não só pela figura de Luiz Carlos Prestes, mas também de vários outros militares, figuras extraordinárias que eu tive o prazer de conhecer, como Apolônio de Carvalho [que integrou o PCB e, depois, o PCBR], Salomão Malina e Dinarco Reis", diz.

Cunha defende que o direito de organização e expressão política de militares pode reverter a visão de que os integrantes das Forças Armadas representam um bloco, que, no atual momento político-eleitoral, seria 100% bolsonarista. 

"Nós temos que repensar as relações civis e militares dentro de uma sociedade, no Estado Democrático de Direito, mas o pressuposto deve ser o seguinte: todo o poder emana do povo. E, como o militar está ali, o militar tem o direito de opinar, tem o direito de ter suas posições, tem o direito de participar do debate político. Eu valorizo isso. O que não se pode é partidarizar", afirma.

"Em vários países do mundo, os militares e policiais têm direito de se organizarem. Em alguns deles, até o direito de fazer greve, e não só nos países europeus. Na África do Sul, por exemplo, há uma Constituição extremamente democrática e, nem por isso, [a atuação política de militares] é ruim para a democracia, muito pelo contrário, é um elemento de estabilidade democrática", explica.

"Em outros países, as associações de praças são recebidas pelos presidentes. Em determinadas situações, eles sentam na mesa dos generais e procuram soluções conjuntas. Eles expressam um grupo que, normalmente, os oficiais estão distantes. Essa é a tese que defendo: democratizar as Forças Armadas faz parte de uma nova cultura que nós temos que ter e aprender. Isso é democrático. [...] não é quebrar o paradigma da hierarquia, da disciplina, é recolocá-la sobre outras bases."

Na entrevista, Cunha fala ainda de formas como o ex-presidente Lula (PT), favorito a vencer as eleições presidenciais de outubro, poderia encampar o tema. Recentemente, o petista afirmou que demitiria todos os militares em cargos comissionados – o que Cunha apoia. O sociólogo propõe, no entanto, o aprofundamento de debates como o fim do serviço militar obrigatório e um concurso de civis para o Ministério da Defesa.

"Abrir o Ministério da Defesa para a sociedade é um ponto interessante. Eu acho que oxigena o debate e traz pesquisadores novos. Temos que colocar o debate: quais são as Forças Armadas que nós queremos? Precisamos de quase 200 generais? Precisamos ou não de serviço militar obrigatório? Qual é o papel das Forças Armadas? Nós temos que trazer o debate para a sociedade", diz. 

"Por isso, eu defendo a tese da democratização das instituições. Um aspecto que eu acho que é importante é o seguinte: todo militar deveria ter o direito de expressar a sua opinião sem o medo da punição", conclui.

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Leia mais trechos da entrevista:

"Cavalo de pau" no interesse acadêmico

O tema dos militares veio na minha trajetória acadêmica quase como um cavalo de pau. Antes, eu estudava movimentos sociais no campo. Estudei um movimento camponês que durou 10 anos, uma das lutas mais significativas e belas de luta pela terra no Brasil, que foi o movimento de Formoso e Trombas. A partir do doutorado, eu me aproximei da obra de Nelson Werneck Sodré. Algo que me incomodava é que ele era muito criticado e pouco lido, particularmente na universidade. Muitas vezes era criticado sem fundamento algum. Nelson Werneck Sodré era um intelectual marxista, um general de esquerda. Foi uma pessoa que teve ter uma obra grandiosa, faraônica, eu diria. Foram 55 livros. Entre os jornalistas, muito poucos conhecem esse lado do Nelson Werneck Sodré, que foi um militar que atuou politicamente nas causas nacionais, democráticas e que foi muito perseguido. 

Nelson Werneck Sodré: a esquerda militar

Me estranhava o fato de ele ser muito criticado na universidade, especialmente da Universidade de São Paulo. Comecei a fazer um doutorado sobre a obra e, nesse momento, eu comecei a perceber um componente que era muito pouco conhecido na trajetória de uma parte dos militares brasileiros, que são os militares de esquerda. Até hoje, isso traz uma certa inquietação na universidade. O Nelson Werneck representava um pouco esse grupo, que chegou a ter uma organização própria no Partido Comunista chamado Setor Mil, ou Anti-Mil, que, aliás, foi fundado em 1929.

 

CNV: Militares foram mais atingidos 

A partir dessa pesquisa do Nelson Werneck Sodré, publiquei dois livros e comecei a aprofundar a pesquisa dos militares de esquerda. Nesse sentido, surgiu, depois, o convite para participar da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Eu atuei [como assessor] durante dois anos, em uma experiência riquíssima, mas também muito tensa e dolorida. Uma das grandes conclusões que nós chegamos – e o relatório está aí à disposição para ser lido – confronta algumas leituras equivocadas, feitas muitas vezes por meus colegas acadêmicos. O fato é que os militares, enquanto categoria, foram o grupo mais atingido pelo Golpe Civil-Militar de 1964. Foi o grupo mais atingido, mais perseguido. Foi um número enorme de militares, cerca de 6591 oficiais, praças, marinheiros e policiais.

Pesquisa sobre tortura contra militares 

O trabalho deveria ter tido continuidade. Lamentavelmente, com a eleição do Bolsonaro, parou tudo. Nós fizemos um levantamento muito grande. Faltou um levantamento sobre período entre 1945 e 1964 que fosse mais preciso. Isso ocorreu mais por um problema nos arquivos do Superior Tribunal Militar. Não houve, a rigor, nenhum tipo de obstáculo maior, mas é uma pesquisa que ainda precisa ser feita. Nós temos ali alguns desafios para entender os militares hoje. Principalmente, no período de 1945 e 1964, que foi o período democrático – quaisquer que sejam os limites que a gente possa entender dessa democracia burguesa, implicava limites, mas também possibilidades. 

Tortura nas Forças Armadas 

Nos anos 1950, houve uma tortura que grassou nas Forças Armadas, que é muito pouco estudada. Unidades militares viraram campos de concentração. Isso até hoje não foi estudado. Você teve uma perseguição contínua, mas você também teve uma esquerda militar atuante, muito articulada. Ali, existiam dois projetos de Brasil entre os militares a articulados a setores civis. 

Há um Partido Militar no Brasil? 

O Partido Militar é um conceito que eu uso com certo cuidado. Não que eu não ache que os militares, em algum momento da história, atuaram enquanto um partido militar, mas eu não entendo isso como processo. Eu bebo na fonte de Nelson Werneck Sodré, mas é uma visão partilhada também por um intelectual conservador, Samuel Huntington, em um livro que é muito caro aos militares brasileiros. Os militares se articulam politicamente através de grupos articulados da sociedade, através de lideranças, através de fracções, sendo envolvidos ou se envolvendo na política. Eu partilho de uma tese de que os militares sempre participaram da política no Brasil.

Militares na política: algo positivo? 

Nós temos que quebrar este paradigma que a presença dos militares na política é negativa para a democracia. É negativa a partidarização das instituições militares, que é o que o Bolsonaro quer fazer. Mas, historicamente, os militares sempre estiveram envolvidos na política. A República adveio de um golpe militar, o primeiro Congresso Constituinte teve um terço de parlamentares militares. Você teve a esquerda e a direita nos anos 40, até a Segunda Guerra Mundial, com a atuação de militares. Você teve o movimento tenentista, que depois iria se desdobrar. Você teve a coluna Prestes, Miguel Costa. Você teve, nos anos 30, a famosa doutrina Góes Monteiro, que dizia "vamos acabar com a política no exército, estabelecer a política do exército, leia-se dos generais". 

Erros da esquerda com militares

Sempre o maior erro da esquerda e dos nossos analistas é enxergar os militares enquanto um corpo único, homogêneo e que pensa só para dentro. Isso é o maior erro, como eu disse. Militares, no Brasil, são militares das três Forças, que têm culturas e particularidades distintas

Lula e as Forças Armadas 

O governo Lula foi o que mais investiu nas Forças Armadas, mas errou politicamente. Errou, por exemplo, quando aceitou a demissão do ministro José Viegas, que se demitiu porque não conseguiu enquadrar um general em função de um ato disciplinar. O Lula não bancou o seu ministro. Ele errou, por exemplo, quando não enfrentou a questão da formação militar, que foi um projeto de remodelação elaborado pelo Nelson Jobim. Comprou esse monte de brinquedinhos, que são caros, prestigiou, mas não basta. É um ponto interessante. A democratização das Forças Armadas e das polícias militares tem que ser reconhecida e quebrar um paradigma de que isso é ruim para a democracia. Não é ruim para a democracia. 


Ex-presidente durante desfile militar de 7 de setembro de 2006, ainda no seu primeiro mandato no Planalto / Domingos Tadeu/PR

Direito de organização de militares e policiais 

Em vários países do mundo, os militares e policiais têm direito de se organizarem. Em alguns deles, até o direito de fazer greve, e não só nos países europeus. Na África do Sul, por exemplo, há uma Constituição extremamente democrática e, nem por isso, é ruim para a democracia, muito pelo contrário, é um elemento de estabilidade democrática. 

Bolsonaro era instrumento dos generais, mas saiu de controle 

O Bolsonaro era, efetivamente, um instrumento, na leitura desse grupo [de generais]. Porque ele conseguia falar para a população, mas com seus limites intelectuais. Ele não era reconhecido como uma liderança, mas sim como um comandante. São dois conceitos que se operam nas Forças Armadas, de liderança e comandante. Todo líder é um comandante, mas nem todo o comandante é líder. É bom lembrar disso. São conceitos do estado-maior das Forças Armadas. Eles entendiam que iriam controlar o Bolsonaro. Na verdade, o que se mostrou foi justamente o contrário. Ninguém controla um louco. 

Forças Armadas tentaram se descolar

O governo Bolsonaro é um governo que tentou a todo momento associar a sua imagem à das Forças Armadas. E as Forças Armadas, em vários momentos, procuraram se descolar do governo. Foram muitas ocasiões em que tentaram preservar a instituição. Isso não quer dizer que Bolsonaro não tenha apoio nos generais ou em alguns generais, ou que não tenha apoio nas polícias militares – o que é mais preocupante do ponto de vista de seu projeto golpista. 

Golpe? 

Hoje em dia, eu já não vejo mais um perigo maior de golpe, embora nós passaremos por um período extremamente turbulento, inegavelmente. Mas, eu já não vejo essa possibilidade de golpe pelas Forças Armadas. A despeito de alguns generais que eventualmente quiserem embarcar em uma aventura dessa, eu não vejo isso na instituição. Entre os militares dos quais eu converso, também não vejo esta motivação nas polícias militares, até porque nós temos 33 polícias militares com características próprias e, há algum tempo, os governadores têm tomado medidas para aumentar o controle interno delas, o que é muito positivo. 

Nem melhores nem piores

O governo Bolsonaro vai mostrar que os militares não são melhores nem piores do que os civis no governo. Esse é o primeiro ponto.  Acabou a ideia de que eles são melhores gestores ou do ponto de vista da conduta e da ética profissional. Basta lembrar o [ex-ministro da saúde Eduardo] Pazuello, vulgo Pesadelo. Diziam que ele era um expert em intendência. Eu fico imaginando se nós estivéssemos em guerra, o desastre que seria. Não somente o desastre do ponto de vista operacional, mas também da corrupção desenfreada no Ministério da da Saúde – que não é a única entre os militares. 

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Gastos com picanha, leite condensado e Viagra

[Isso] Está pegando na imagem das Forças Armadas. O próprio general Santos Cruz já está vindo à tona o tempo todo para tentar se descolar dessas compras de Viagra, de picanha, de próteses penianas. Outro dia estava conversando com amigo meu das forças armadas, ele falou: "É duro ouvir as piadinhas que rolam por aí". Isso não atinge os generais, que estão lá em cima, no Olimpo, mas atinge essa grande maioria que tem que responder no boteco da esquina, nas conversas. É indefensável. E isso pega a imagem deles. Era uma imagem muito positiva no período anterior ao governo Bolsonaro. 

Greves e Policiais Antifascismo

Desde 1988, eu tenho esses dados, nós tivemos mais de 400 greves nas Polícias Militares do Brasil. Isso já não é ato isolado, isso é um fenômeno social. Eu estou falando como sociólogo, é um fenômeno social, você tem que lidar com isso. Algumas delas por razões corporativas, outras tendo componentes políticos. Chegamos a ter um deputado estadual em Santa Catarina ligado à corrente prestista. Foi a candidato a senador, mas não se elegeu.

Atualmente, policiais militares confluem em um projeto de um movimento intitulado Policiais Antifascistas. São experiências ainda embrionárias, mas existem, estão aí, têm uma proposta democrática, cidadã, com uma outra concepção de segurança. E tem gente que até hoje não enxerga isso, não quer dialogar. Esse é um aspecto que eu acho importante para termos uma sociedade democrática. 

Propostas para as eleições

Abrir o Ministério da Defesa para a sociedade é um ponto interessante. Eu acho que oxigena o debate e traz pesquisadores novos. Temos que colocar o debate: quais são as Forças Armadas que nós queremos? Precisamos de quase 200 generais? Precisamos ou não de serviço militar obrigatório? Qual é o papel das Forças Armadas? Nós temos que trazer o debate para a sociedade.

Edição: Felipe Mendes