Depois de quase sete meses encarcerado por um crime do qual foi testemunha, André Arcanjo deixou na última sexta-feira (29) uma prisão do município de Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife. O auxiliar de farmácia de 41 anos ainda está respondendo a processo, mas considera a soltura uma vitória e está confiante de que será inocentado nas próximas etapas do julgamento. “Eu sei que a verdade vai prevalecer”, afirma.
Na saída do presídio, André foi recebido com festa por familiares, amigos, congregados da Igreja Mangue e pessoas que acreditam na sua inocência. “Eu estou em estado de graça até agora. Me sinto honrado, só tenho gratidão”, conta em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco. Ele só teve dimensão da mobilização que se deu em torno do seu caso depois da recepção. “Agora que eu percebi o quão grande foi isso. Ainda estou assimilando.”
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André foi detido no dia 6 de outubro de 2021, inicialmente em caráter de prisão temporária, depois de ter presenciado o assassinato seguido de roubo de um amigo de 71 anos – pessoa a quem tinha como um pai. De testemunha ocular do crime, André, um homem negro, passou a ser considerado suspeito pela Polícia Civil de Pernambuco (PCPE), que no inquérito afirmou que ele teria facilitado a entrada dos latrocidas na casa da vítima. Finalizadas as investigações do delegado Vitor Meira, da 4ª Delegacia de Polícia de Homicídios (DPH), a prisão de André e de mais dois acusados foi convertida em preventiva no dia 20 de outubro.
Além de presenciar a morte de uma pessoa importante na sua vida – prestando os primeiros socorros para tentar salvá-la –, André também foi vítima: foi feito de refém durante o incidente. “Foi muito difícil. Nós oferecemos nosso depoimento à Polícia, depois de algum tempo fomos presos sem entender o porquê. E aí começou outro terror”, relembra. “Foi horrível, passar [mais de] seis meses naquele lugar sem ter culpa alguma. Não fosse o apoio da família, dos amigos e do advogado, não sei o que seria da minha vida, quanto tempo a gente passaria ali. É muita injustiça.”
Ao todo, foram 205 dias de espera na prisão. Uma experiência de sofrimento, que pôs em teste a sua fé. “Eu orava muito. Tinha momentos em que eu achava que Deus não ouvia minha oração. Tinha momentos que sabia que ele ouvia. Mas a gente batalha muito nossa mente lá dentro. Muita coisa muda no nosso pensamento, toda perspectiva muda. Você vê quem está aqui fora apoiando, vê quem não apoiou”, conta.
André relata que os primeiros 30 dias foram os mais difíceis. “A gente ficou numa cela com muita gente, uma situação psicologicamente terrível. Depois de um mês, a gente foi para um pavilhão, sair daquela cela foi muito bom. A gente começou a conhecer muita gente lá, e nas histórias que ouvimos a gente vê que tem muita gente brigando por sua liberdade, gente esperando dois, três anos pela sua audiência”, relembra.
Por tudo isso, embora o sentimento de felicidade diante da liberdade prevaleça, não é sem indignação que André volta para casa. “Quando a gente pisou na rua, meu sentimento era de felicidade mas também de revolta por tudo que perdi. Perdi emprego, perdi muito tempo por ser preso injustamente, minha imagem foi toda publicizada – isso ajudou, mas saí como acusado, e isso de certa forma mancha sua imagem e privacidade. Fiquei revoltado com esse sistema que não dá a oportunidade de falar e que acusa sem provas e lhe mantém lá dentro sem perícia bem feita. Só coloca lá dentro e você que se vire para provar sua inocência”, comenta.
Sua esperança, agora, é de que a justiça seja feita de verdade. “Que mostre que a gente é inocente e que esse erro seja revertido”.
O andamento do processo e os próximos passos
O alvará de soltura dos três indiciados veio após a primeira audiência de instrução, realizada no último dia 19 de abril. Nela, foram ouvidas as principais testemunhas da acusação, conta o advogado Wanderson Albuquerque, que representa André. A audiência de instrução, explica Albuquerque, é uma sessão por meio da qual se analisam as provas produzidas pelo inquérito. As testemunhas ouvidas na investigação são chamadas novamente para depor perante o juiz, a promotoria e os advogados.
“De maneira geral, estamos muito satisfeitos com o resultado da primeira audiência, mas não surpresos”, afirma. Wanderson conta que as pessoas ouvidas eram testemunhas chaves para o processo, e que o que foi dito corrobora o que a defesa vem colocando.
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Uma dessas testemunhas é o pedreiro que realizava uma obra na casa da vítima e que abriu a porta para André no dia do crime. Ele desbancou um dos argumentos da acusação sobre André, que se baseia na suposta demora que ele teria levado para fechar a porta – assim facilitando a entrada dos invasores.
“A testemunha falou: ‘quem estava com as chaves fui eu’ – era um cadeado de abrir, ele estava com esse cadeado nas mãos - ‘Eu ia fechar mas não deu tempo, porque, quando eu ia fechar, os assaltantes já estavam mandando seguir’”, relata o advogado.
“Foi levantado o que a defesa havia pontuado: não havia requisitos para a prisão, não havia sequer indícios de autoria. Ao finalizar a audiência, foi visto que seria necessário realizar algumas perícias. A defesa requereu da liberdade e conseguimos”, comemora.
A partir de agora, o processo segue com os acusados respondendo em liberdade. Deverão ser realizadas perícias de vídeo e nos aparelhos apreendidos. Depois disso, deverão ser ouvidas as demais testemunhas arroladas pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), e então, as testemunhas da defesa.
A próxima audiência de instrução já tem data: está marcada para as 11h do dia 2 de junho, no Fórum Joana Bezerra, área central do Recife. Pode vir a haver uma terceira audiência, mas é possível que o juiz profira a sentença já nesta próxima. O caso não vai a júri popular, uma vez que o latrocínio é considerado um crime contra patrimônio, e não um crime doloso contra a vida.
Assim como André, o advogado também está seguro da absolvição. “A investigação como um todo é tão frágil, as provas são tão frágeis que não deverão conseguir resistir à instrução”, fala. “A questão da inocência de André tenho certeza, tanto pelas provas produzidas como pela versão dele, que não vai destoar em nada do processo. O Estado não conseguiu provar a culpa das pessoas apontadas como réus. Eles são duplamente vítimas, no caso de André e Rodrigo [amigo da vítima que já estava dentro da casa e foi acusado de já saber do crime], eles presenciaram tudo, sofreram violência psicológica, perderam um amigo, e agora são presos injustamente e indevidamente pelo Estado”, afirma.
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Embora não seja o foco da defesa no momento, é possível buscar a reparação pelos danos produzidos por meio de um processo cível. “Por ora, o objetivo maior é a inocência, e a partir daí adotar todas medidas para que o dano seja reparado”, comenta o advogado.
André entrou no processo trabalhando de carteira assinada para a Santa Casa da Misericórdia, organização social (OS) que dirige a UPA de Torrões, no Recife, onde ele atuava. Nesse tempo, o contrato da OS com a UPA foi encerrado, e a unidade de saúde passou para a administração do Hospital Maria Lucinda. Com isso, ele ficou desempregado.
A notícia da demissão deixou André abalado. “O que a gente tem aqui fora para se sustentar é o emprego, então fiquei muito triste mesmo. No decorrer dos dias é que fui me fortalecendo. Essa semana assinei a rescisão e recebi muito apoio, graças a Deus sou muito querido lá dentro. Está todo mundo torcendo para que a Santa Casa me recontrate. Até agora não deram nenhuma esperança, nem positiva nem negativa, mas Deus está trabalhando e acredito que algo bom vai vir. Depois da tempestade sempre vem a bonança”, fala André.
Racismo estrutural e suas repercussões no sistema criminal
Emblema da política de encarceramento em massa de pessoas negras e da morosidade do sistema judiciário, o caso de André Arcanjo foi acompanhado de perto por movimentos populares. Anna Beatriz Silva, advogada criminalista e pesquisadora dos Direitos Humanos, integra a Articulação Negra de Pernambuco (Anepe) – uma dessas organizações - e critica a execução da prisão preventiva de André como cumprimento antecipado de pena.
Ela explica que, segundo a Constituição Federal, um indivíduo só pode ser privado da liberdade depois do trânsito em julgado do processo. “No entanto, ao contrário dessa normativa, nossa Justiça costuma implementar prisões preventivas com caráter de antecipação de pena. No caso de André especificamente, não havia justificativa, fundamento legal e constitucional para a manutenção da prisão”, defende.
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“Para que se implemente uma prisão preventiva, é preciso que se tenha uma comprovação de que aquele sujeito pode vir a ameaçar testemunhas ou prejudicar o andamento dos processos, o que não acontece nesse caso. Não temos fatos concretos de que ele possa ter tido qualquer participação [no crime]. Ele era uma das principais testemunhas oculares de toda a situação e se colocou a todo momento para contribuir com o processo. Prestou declarações, no dia do fato tentou prestar os primeiros socorros [à vítima] e ficou até o SAMU chegar”, lembra. “Infelizmente a gente se viu diante de uma prisão preventiva ilegal e inconstitucional por uma irresponsabilidade do poder público.”
Os quase sete meses que André viveu em privação de liberdade ainda conseguem ser inferiores à média entre os presos provisoriamente - isto é, todos aqueles detidos enquanto aguardam julgamento. Um levantamento de 2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostrou que o tempo médio de duração de uma prisão provisória em Pernambuco era de 974 dias (2 anos e 274 dias). A taxa do Estado, que liderava nesse parâmetro, é muito maior que a média nacional, de 368 dias (1 ano e 3 dias).
“Apesar de ser um tempo absurdo, sobretudo para quem está vivenciando aquele momento, esse é um caso [o de André] que, diante do nosso contexto, consegue ter um retorno rápido”, comenta a advogada. “Tem pessoas que passam 6, 7 anos presos preventivamente.”
E quando se trata da justiça criminal, o sistema expõe sua pior face para quem é negro, como André. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2021 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) revelou que a maioria das pessoas no sistema carcerário é preta ou parda. Esse grupo representa 66,7% (383.833) dos 575.180 detentos que tiveram sua raça declarada.
“O próprio direito nasce enquanto instrumento que vai proteger uma determinada parcela da população. Por que a demora? Porque como a justiça criminal nasce para explorar alguns tipos de corpos, alguns tipos de raça, ela não se coloca enquanto instrumento que vai efetivamente resolver determinadas questões. Já nasce com esse teor burocrático, já é em si morosa, e, para acrescentar a isso, ainda tem com certeza um recorte da opressão que a justiça faz dos corpos”, pondera Anna Beatriz.
Essa seria, pontua a especialista, uma das expressões do racismo estrutural. “O racismo é parte da nossa história. Se o racismo é estrutural, ele percorre o setor de segurança pública, o judiciário, o próprio Ministério Público, as forças policiais, e vai refletir isso nos seus instrumentos, das mais diversas formas. É esse artifício que faz com que as coisas sejam ainda mais morosas, principalmente quando estamos lidando com corpos negros e periféricos. Esses são os principais alvos da violência produzida pelo sistema de justiça criminal. E essa é uma das violências: a demora do processo, o tempo que leva para reverter um mandado de prisão, que em certa medida é uma irresponsabilidade que nasce na delegacia.”
Relembre o caso
O auxiliar de farmácia André Arcanjo, homem negro de 41 anos, foi detido como suspeito de ter cooperado com o latrocínio que presenciou em Areias, bairro da Zona Oeste do Recife. O crime aconteceu em 11 de julho de 2021. André, que a princípio colaborou com as investigações policiais como testemunha, passou a ser considerado suspeito e teve prisão temporária decretada no dia 6 de outubro.
Em 20 de outubro, a delegacia responsável pelas diligências concluiu o inquérito e o indiciou, expedindo o pedido de conversão para prisão preventiva. A defesa e as entidades que pedem pela sua liberdade apontam que há falta de provas para incriminá-lo, e consideram que a cor de pele de André tenha contribuído para a decisão em seu desfavor.
No dia em que o crime ocorreu, um domingo, André, que também mora em Areias, foi convidado a visitar a casa do vizinho, conhecido como Valdo, de 71 anos, conta o advogado Wanderson Albuquerque. Ao chegar no local, ele encontrou na porta da frente outro colega, o pedreiro Fernando, que realizava obras na parte de trás do imóvel. “Fernando tem a chave e, quando abre a porta, ele entra primeiro, André entra em seguida e, 2 ou 3 segundos depois, dois assaltantes chegam atrás. Eles estavam no local, estacionados e de tocaia à espera de uma oportunidade”, relata.
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Segundo Albuquerque, os assaltantes entraram no domicílio, onde, além de Valdo, estava almoçando com ele uma terceira testemunha, identificada como Rodrigo. “Eles passaram a pedir por dinheiro, e, em um dado momento, Seu Valdo teria tentado reagir. Eles conseguiram contornar a situação, levaram Valdo a outro cômodo, e poucos minutos depois aconteceram os disparos. Os assaltantes fugiram às pressas”, conta o advogado. A especulação é que a vítima guardaria somas de dinheiro em casa.
Fernando foi o primeiro a sair da casa para pedir socorro, seguido por André, que ainda realizou os primeiros socorros para tentar salvar o amigo. Seu Valdo, no entanto, não resistiu e morreu no local. André foi sem advogados à delegacia, onde narrou todo o ocorrido e entregou seu telefone. “O celular foi apreendido e ficou à disposição da justiça porque lá consta o registro do convite para ele comparecer à residência. Isso, por si só, já seria capaz de demonstrar que não há envolvimento no crime. Pelo vídeo das câmeras, o carro dos assaltantes estava estacionado há mais de 30 minutos esperando uma oportunidade”, sustenta Albuquerque.
Mas, para a Polícia Civil de Pernambuco (PCPE), André teria facilitado a entrada deles na casa. “Na linha investigativa, o fato de André ter demorado 2 ou 3 segundos para fechar a porta colaborou com a ação dos assaltantes. Essa é a única coisa que o vincula. Na opinião da defesa, essa demora não justifica a autoria e agora o seu indiciamento”, comenta o advogado.
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Vanessa Gonzaga