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POLÍTICA

Artigo | Democracia, erradicação da fome e direito à existência

"Não se justifica que um dos países que mais produz alimentos no mundo seja um dos que mais matam sua população de fome"

Brasil de Fato | Recife (PE) |
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No Brasil 19 milhões de pessoas hoje passam fome e 97 milhões vivem em situação de insegurança alimentar - Reprodução

“A necessidade dissolve todas as leis e governo, e a fome romperá até as muralhas de pedra”. Essa frase foi escrita em 1649, num panfleto assinado por artesãos pobres de Londres, vítimas das mudanças estruturais causadas pelo (mal) chamado processo da acumulação primitiva.

A fome acompanhou também as classes trabalhadoras no século seguinte, fruto, entre outras coisas, da implantação de políticas ligadas ao “laissez faire”, cuja crença (quase teológica) afirmava que a economia possuiria leis próprias, não devendo jamais sofrer interferência de qualquer esfera estranha à própria lógica econômica. A inédita ideia de uma sociedade dominada por sua economia, hoje tão legitimada, assombrava amplos setores sociais naquele período.   

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No final do século XVIII os defensores dessa “nova economia política” propunham que até mesmo os preços dos bens de primeira necessidade, como o trigo com o qual se fazia o pão, e também o valor dos salários deveriam ser formados “livremente” no mercado. O resultado da implementação de tais ideias foi a fome em massa. As classes populares viam o monstro emergir da lagoa, quer dizer, o capitalismo e suas “leis econômicas”, logo postas como inquestionáveis, avançarem. 

Durante a Revolução Francesa as camadas empobrecidas passaram a reivindicar, com a participação decisiva das mulheres, um direito capaz de fazer frente à sacralização das “leis” do mercado, cujo apelo é absolutamente atual: o direito à existência, ou direito de viver, construindo a partir disso o “Programa de Economia Popular” posto em prática pela ala radical dos jacobinos. A “economia popular” se opunha à chamada “economia da fome” praticada pelos defensores das “leis do mercado”. Medidas como imposto progressivo, reforma agrária, política de salários e controle de preços eram o motor desse programa, ancorado num princípio tão justo quanto óbvio: antes de tudo a sociedade deve garantir as condições para que as pessoas existam. Isso em 1793!

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Se, como se diz comumente, os modernos nomes “direita” e “esquerda” nasceram da Revolução Francesa, constatamos que a esquerda “surge”, portanto, proclamando o direito universal à existência, inclusive estendendo-o aos povos então escravizados das colônias, e sua primazia sobre qualquer aspecto da liberdade mercantil. 

Foi também nesse período que surgiram algumas das primeiras defesas explicitas da democracia na modernidade, que se deram pelas mãos das classes populares, não da burguesia (a esquerda precisa conhecer melhor a história da democracia). No fim do século XVIII e início do XIX ser democrata significava defender a igualdade substancial e garantir cidadania realmente plena aos mais pobres. Significava que as instituições políticas deveriam ser controladas efetivamente pela soberania popular, estando autorizadas a interferirem na acumulação de riquezas em defesa do direito à existência. 

Durante o século XIX o direito à existência levou os movimentos populares reclamantes da democracia à defesa do direito ao trabalho digno e aos frutos do trabalho. Foi também nesse período que surgiram algumas das primeiras propostas de criação da renda básica, também sob o guarda-chuva dos movimentos dos trabalhadores, muito antes de liberais como Milton Friedman esboçarem similares bem mais brandos da ideia. 

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No caminho cheio de contradições percorrido no século XX, com participação decisiva da Revolução Socialista Russa de 1917, a luta das classes trabalhadoras, não a filosofia liberal-burguesa, impôs conquistas de direitos, como aquele à dignidade humana, ao trabalho, à livre associação, à manifestação, ao voto feminino e sufrágio universal, e tantos outros.

As próprias proteções do Welfare State fazem parte desse processo. O neoliberalismo é uma reação, ou uma contraofensiva a esse acúmulo de larga escala histórica. Não por acaso um de seus alvos é o que ainda resta de “ameaçador” na democracia, mesmo a atual, domesticada pelas instituições liberais: alguma vontade popular disposta a agir legítima e efetivamente sobre as “leis” da economia. 

Hoje, em 2022, após quatro décadas de ascensão da nova fase de organização das forças do mercado, sustentada pelo neoliberalismo, a defesa das “leis econômicas” avançou e promoveu uma verdadeira ofensiva direcionada aos direitos sociais que as classes trabalhadoras conquistaram em séculos de revoltas, reformas e revoluções. A forte desregulação e precarização do mundo do trabalho, a perda de importância dos salários, a destruição de políticas de proteção social ancoradas no Estado e a emergência de novas formas de acumulação financeira fizeram disparar as desigualdades.  

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No Brasil, após termos conseguido esboçar alternativas concretas de proteção social e valorização dos salários na primeira década do século XXI, vivenciamos hoje, desde o golpe de 2016, medidas neoliberais agravadas pela pandemia que pioraram o sempre presente problema da fome, a alastrar-se velozmente. 

As pesquisadoras Luiza Machado e Mariana Soares recém lançaram um estudo, disponível na internet, denominado Política Fiscal da Fome, onde mostram, em números, o drama a que está submetido o povo brasileiro. Segundo elas evidenciam, no Brasil 19 milhões de pessoas hoje passam fome e 97 milhões vivem em situação de insegurança alimentar (ou 55% das famílias brasileiras!). O maior contingente é composto por mulheres negras. Tudo isso, como elas demonstram, agravado por uma política fiscal que beneficia os mais ricos. Os 10% do topo da elite nacional tem apenas 19% de sua renda penalizada por impostos, enquanto os 10% mais pobres tem 27% da renda comprometida.  

Não se justifica que um dos países que mais produz alimentos no mundo seja um dos que mais matam sua população de fome. Isso deve ser tratado como um escândalo! E como principal tema da agenda brasileira. No cenário atual, “regatar a democracia” não pode ser apenas falar em “calmaria político-institucional”, mas sobretudo em recuperar um de seus sentidos mais importantes: a supremacia dos direitos do conjunto da sociedade sobre os interesses das elites econômicas, em favor da vida e da cidadania.

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Nessa luta a reivindicação por políticas de renda básica, integradas à forte presença do Estado na garantia de trabalho e acesso universal a serviços essenciais, como saúde, educação e assistência são fundamentais. Mais que isso: renda básica e proteção social ancoradas numa nova política fiscal, que garanta aos ricos maior peso sobre o financiamento da cidadania. 

É preciso mais do que nunca fortalecer o princípio empunhado por gerações de trabalhadoras e trabalhadores que nos antecederam, desde há muitos séculos: o primeiro de todos os direitos é o de existir e viver dignamente. Abaixo desse devem estar todos os outros, inclusive os de recebimentos de dividendos, lucros e remuneração via títulos da dívida do estado. Nada, aliás, que a Constituição de 1988 não abrigue em suas linhas. 

Sob o capitalismo, especialmente em sua fase atual e em países periféricos como o Brasil, o totalitarismo do mercado oculta o óbvio: “o primeiro direito do homem [e das mulheres] é o de não passar fome”. Lembremos essas palavras de Josué de Castro e sigamos lutando por um outro mundo possível.   

*Pedro Alcântara é doutor em ciências sociais e secretário estadual de formação política do PT-PE

 

Edição: Vanessa Gonzaga