PESQUISA

Quem inventou a "pedalada fiscal"? Origem do termo ajuda a entender golpe contra Dilma

Busca em redes sociais, Google e jornais mostra primeiros resultados em plena campanha eleitoral de 2014

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

Ouça o áudio:

Dilma Rousseff (PT) durante apresentação de sua defesa no processo de impeachment, no Senado Federal, em 2016 - Agência Brasil

No dia 12 de maio de 2016, exatamente às 6h34, o Senado Federal decidiu, por 55 votos a 22, abrir processo de impeachment contra a então presidenta Dilma Rousseff (PT). Pouco depois, a petista foi notificada que deveria se afastar do cargo. O crime de responsabilidade alegado pelo Congresso Nacional para a deposição ficou conhecido como "pedalada fiscal", um apelido dado a um tipo de manobra contábil realizado pelo Poder Executivo para cumprir as metas fiscais.

Seis anos depois, no aniversário do afastamento de Dilma do Palácio do Planalto, o Brasil de Fato publica investigação digital sobre o surgimento do termo "pedalada fiscal" nas redes sociais e no Google. Em março deste ano, a Justiça decidiu extinguir a ação popular em que Dilma chegou a ser condenada. A decisão corrobora um artigo escrito pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro: “A justificativa formal foram as denominadas ‘pedaladas fiscais’ – violação de normas orçamentárias –, embora o motivo real tenha sido a perda de sustentação política”.

:: Após dois anos de condenação, TRF-2 extingue ação contra Dilma por pedaladas fiscais ::

A autoria do termo pedaladas fiscais, que tornou midiático um tema de difícil compreensão, é pouco conhecida. Em documentos oficiais e conteúdos disponíveis na internet, o surgimento do termo é atribuído a diferentes atores, veículos jornalísticos e datas. Entre eles, o Tribunal de Contas da União (TCU). É o que mostra, por exemplo, ofício enviado ao Senado em 2016 pela Controladoria-Geral da União, que associa a "projeção" da expressão com a publicação de um acórdão da Corte de 15 de abril de 2015.


Trecho de documento enviado pela CGU, no governo Temer, ao Senado Federal / Reprodução/Senado

A pesquisa feita pela reportagem, no entanto, oferece novos elementos sobre o contexto da criação do apelido que deu nome ao suposto crime cometido por Dilma. O resultado mostra que o surgimento do termo no Google e nas redes sociais é anterior à manifestação oficial do TCU e coincide com o auge da campanha eleitoral pela Presidência da República, em agosto de 2014.

O levantamento aponta também que uma ONG brasileira, chefiada por um articulista do think thank de direita Instituto Millenium, teve papel central na deflagração do escândalo. A Associação Contas Abertas chegou a levar o tema a um debate em Washington, nos Estados Unidos, com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, naquele mesmo agosto de 2014.

O Brasil de Fato utilizou ferramentas de busca avançada no Google, nas redes sociais Twitter e Facebook e em acervos de três dos principais jornais do Brasil. Para realizar as buscas, a reportagem considerou a ocorrência de dois termos: “pedalada fiscal” e “pedaladas fiscais”. Como forma de facilitar a pesquisa, foi estabelecido como marco temporal inicial o dia 1º de janeiro de 2011, quando Dilma assumiu a Presidência.

Além da pesquisa, a reportagem consultou o jornalista João Villaverde, autor do livro Perigosas Pedaladas, e que fez a cobertura do caso pelo Estadão. Na obra, ele afirma que há reportagens dos anos 80 e 90 que mencionavam pedalada ou pedaladas fiscais.

A pesquisa: auditores celebram repercussão das pedaladas durante eleição de 2014

Nos primeiros três anos do governo Dilma, do início de 2011 ao final de 2013, o Google aponta pouco mais de 20 resultados para o termo "pedalada fiscal", no singular (o contador do Google não é preciso e o número pode variar). Porém, os registros são fruto de imprecisão na leitura do data pelo buscador ou no cadastramento do conteúdo dos sites. A conferência foi feita de forma manual pelo Brasil de Fato.

A primeira ocorrência de fato do termo foi localizada em 27 de agosto de 2014. Àquela altura, a campanha eleitoral pela Presidência da República já transcorria havia algumas semanas. Na data, o site da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas (ANTC) do Brasil trouxe o termo “pedalada fiscal” à tona.

Em texto com o título Reunião Anual do Banco Mundial e FMI debaterá transparência fiscal, a publicação fala que “constantes maquiagens” realizadas pelo governo federal seriam expostas pela ONG Contas Abertas na reunião anual entre o Banco Mundial e o FMI. A nota cita possíveis "efeitos" do caso no processo de eleições que estava em curso no país.

:: Durante evento em Berlim, Dilma critica Bolsonaro e política de sanções econômicas ::

“Com um painel específico sobre transparência fiscal, o Contas Abertas representará a sociedade civil brasileira nesse importante evento que será realizado no mês de outubro na capital norte-americana, Washington, onde ocorrerão diversos debates e sessões plenárias com temas relativos ao desenvolvimento global e às políticas de inclusão social”, diz a ANTC.

“Entre os temas que o Contas Abertas pretende abordar está a prática conhecida como 'pedalada fiscal', descoberta pela entidade no início do ano”, afirma o texto. Outro trecho celebra que um debate sobre 'pedalada fiscal' já havia alcançado mais de 49 mil acessos na página da Associação. A entidade não informa em qual rede social está o debate mencionado.


Primeiras menções ao termo "pedalada fiscal" na busca avançada do Google remetem a site de associação de auditores / Reprodução/ANTC

Mais à frente, o texto diz que a “presidente da ANTC foi entrevistada pelo Contas Abertas e esclareceu os principais aspectos da 'pedalada fiscal', em especial os efeitos no processo eleitoral”. O link disponível leva, hoje, a uma página em branco, hospedada no site da ONG. Possivelmente, o conteúdo foi o primeiro a surgir na internet, por volta de 16 de agosto de 2016. Descrita mais abaixo, a pesquisa no Twitter é o que corrobora essa hipótese.


Página indisponível remete a site da ONG Contas Abertas / Reprodução

Questionada pelo Brasil de Fato se a própria ANTC ou o TCU eram autores do "apelido", a associação negou relação com a criação. "Sobre o termo 'pedaladas fiscais', informamos que não foi cunhado pela ANTC e nem pelo TCU. É possível que tenha sido cunhado pela Associação Contas Abertas, dirigida por Gil Castello Branco, ou pelo professor Paulo Henrique Feijó", disse a entidade.

A ANTC enviou à reportagem um link da revista Época, com entrevista dos jornalistas Claudia Safatle, Ribamar Oliveira (do jornal Valor Econômico) e João Borges (da GloboNews), autores do livro Anatomia de um desastre. Na matéria, Oliveira confirma que a dica para a elaboração de uma das primeiras reportagens da imprensa brasileira sobre o tema foi de Gil Castello Branco. 

“No início de janeiro de 2014, um dos autores deste livro, Ribamar Oliveira, repórter e colunista do Valor Econômico, recebeu informações do Contas Abertas (associação sem fins lucrativos que monitora contas públicas no país) de que o governo havia aumentado substancialmente o montante de restos a pagar que tinha deixado para 2014, de forma a melhorar o resultado primário de 2013", explica.

“O economista Gil Castello Branco, do Contas Abertas, chamou a atenção também para a grande concentração de ordens bancárias para pagar investimentos emitidas pelo Tesouro no período de 28 a 31 de dezembro. Com esse expediente, argumentava Castello Branco, o dinheiro só havia saído do caixa do Tesouro no primeiro dia útil de 2014, o que inflara o superávit primário do ano anterior", concluiu.

Mais elementos sobre a gênese

A busca no Google pelo termo no plural revela mais elementos sobre sua gênese. Em 18 de agosto de 2014, uma reportagem com o título O conflito na área econômica, assinada pelo então repórter do jornal O Estado de S. Paulo João Villaverde, diz que "há um conflito surdo a pleno vapor nos gabinetes de Brasília". "Numa ponta, a direção e corpo técnico da Caixa Econômica Federal; na outra, o núcleo duro do Tesouro Nacional, comandado há mais de sete anos pelo economista Arno Augustin. Neste exato momento, a disputa está no auge. Mas o começo de tudo remonta a novembro de 2012", escreveu o jornalista.


Busca do termo em agosto de 2014 remete a artigo publicado no Estadão, em 18 de agosto de 2014 / Reprodução

No artigo, Villaverde afirma que "esta prática de atrasar em alguns dias o repasse financeiro, se estiver mesmo ocorrendo, não é nova. Desde os anos 1990, em períodos pontuais de aperto, o governo federal tem recorrido a esse tipo de manobra. Mas segundo fontes seguras do governo, isso não existiu entre janeiro de 2011, quando Dilma Rousseff assumiu a Presidência, e novembro de 2012. Ali começou tudo, e os atrasos foram se espalhando".

Em nenhum local do texto aparece o termo "pedalada fiscal" ou "pedaladas fiscais". No rodapé, no entanto, é possível perceber que uma das tags escolhidos pelo jornal é "pedaladas fiscais". Não é possível afirmar que as tags foram inseridas após a repercussão do caso, ou se, à época, o termo já foi usado pelo jornal para categorizar o artigo.

Villaverde, hoje, é professor Administração Pública na FGV-SP e um dos mais respeitados analistas econômicos da nova geração. No livro-reportagem Perigosas Pedaladas, ele explica como um debate legítimo sobre manobras fiscais nas contas públicas ajudou na concretização da queda de Dilma. Na publicação, detalha os bastidores do caso.


Barra de tags selecionadas para artigo publicado no Estadão, em 18 de agosto de 2014 / Reprodução/Estadão

Busca avançada no Twitter: o primeiro registro

A pesquisa feita no Twitter revela um resultado anterior ao artigo assinado por Villaverde. Em 16 de agosto de 2014, dois usuários publicaram mensagens com o termo. Um deles, chamado Jean Diniz, segue ativo até hoje na rede social. Ele administra uma página no Twitter com mais de 15 mil seguidores chamada "Bolsopetismo". O perfil afirma que "petistas e bolsonaristas são filhos gêmeos de pais diferentes".

Não é possível assumir que as publicações sejam as responsáveis pela "criação" do termo, já que um dos usuários usa a expressão entre aspas, dando a impressão que está comentando a utilização da expressão. A hipótese mais realista é que eles estivessem repercutindo uma publicação da ONG Contas Abertas sobre o tema, com entrevista com a presidente da ANTC. Os conteúdos, porém, já não estão mais disponíveis.

No Facebook, o conteúdo mais antigo localizado pela reportagem é uma publicação compartilhada da página do Facebook da ONG Contas Abertas em 23 de agosto de 2014. O usuário comenta apenas "Pedalada fiscal". O link que remeteria ao domínio contasabertas.com.br, no entanto, não está mais disponível. É possível perceber que o título da publicação no site da Contas Abertas é "Documentos comprovam que Caixa banca benefícios sem receber do Tesouro".


Primeiras menções ao termo "pedalada fiscal" na busca avançada do Facebook / Reprodução/Facebook

Acervos de jornais impressos

No acervo do Estadão, jornal que ficou marcado pelas primeiras publicações sobre o tema, o termo surge impresso, pela primeira vez, em uma coluna de Celso Ming, em 27 de agosto de 2014. Ele, no entanto, faz referência ao termo para questionar outro caso, envolvendo o então ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. Para o caso de Dilma o termo surge em 18 de setembro de 2014, com a afirmação de que a área técnica do TCU apurava o caso. A pesquisa no acervo digital, no entanto, pode não apresentar todos os resultados que foram, de fato, impressos.


Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo cita, pela primeira vez, as "pedaladas fiscais" / Reprodução/Acervo de O Estado de S. Paulo

No acervo da Folha, o primeiro registro é posterior às eleições de 2014, quando Dilma venceu Aécio Neves (PSDB) no segundo turno. A reportagem foi publicada em 14 de novembro de 2014 e citava atraso de R$ 2 bilhões no repasse da União aos estados. No acervo de O Globo, a primeira ocorrência no acervo é anterior a dos jornais paulistas. Em 30 de agosto de 2014, o jornal usou o termo e disse que seria um "jargão de economistas". A expressão, porém, nunca havia sido adotada nos três principais veículos impressos do país, indicam os acervos.


Reportagem do jornal O Globo cita, pela primeira vez, as "pedaladas fiscais" / Reprodução/O Globo

Sobre a Associação Contas Abertas

De acordo com a descrição que conta em seu site, a Associação Contas Abertas (e não ONG Contas Abertas, como costuma ser mencionada na imprensa) "reúne pessoas físicas e jurídicas interessadas em contribuir para o controle social sobre os orçamentos públicos". Fundada em 2005, a organização afirmar ter "sua história pautada pelo princípio da independência".

A Contas Abertas, conforme o seu Estatuto, não recebe recursos públicos e se sustenta com doações e prestações de serviços a entidades de classe, empresas e veículos de comunicação, por exemplo. O fundador é o economista Gil Castello Branco. Em junho de 2021, ele anunciou, à Revista Crusoé, sua iminente aposentadoria.

A reportagem afirma que Castello Branco ajudou a revelar os maiores escândalos da cena política na última década, com destaque para "as pedaladas do governo Dilma Rousseff". Mais recentemente, o economista apareceu em foto com o então pré-candidato à Presidência pelo Podemos, Sergio Moro, ao lado de alguns dos "conselheiros" da empreitada, como o general Carlos Alberto Santos Cruz e o senador Álvaro Dias (Podemos-PR).

Gil Castello Branco é também um dos principais articulistas do Instituto Millenium, think tank de direita. No site da organização, publicou dezenas de artigos, tendo iniciado sua colaboração, no mínimo, em 2011. Na reta final das eleições de 2014, o Millenium republicou artigo de Castello Branco em O Globo, em que cita as "pedaladas fiscais". A reportagem tentou contato com um número telefônico associado ao economista, mas não obteve sucesso. O espaço segue aberto para manifestações.


Gil Castello Branco, Rêgo Barros, Renata Abreu, Santos Cruz, Sergio Moro e Álvaro Dias: conselheiros de candidatura frustrada / Reprodução/Twitter

ANTC

A Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas é uma entidade de classe de âmbito nacional. Apesar da intensa mobilização e grande número de entrevistas concedidas durante as eleições de 2014 e durante o processo que levou ao impeachment de Dilma, um dos artigos do estatuto da entidade diz que "a ANTC não apoiará manifestações de natureza político-partidária de caráter eleitoral ou fundada em crença religiosa, nem tomará qualquer iniciativa estranha à persecução dos seus objetivos". Em 27 de maio de 2016, a ANTC divulgou nota de apoio ao então juiz da Operação Lava Jato Sergio Moro, após ele ser hostilizado após evento nas imediações do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba.


Nota em apoio a Sergio Moro publicada por associação de auditores de controle externo / Reprodução/ANTC

Edição: Felipe Mendes