Coluna

Em um mundo de grande desordem e mentiras extravagantes, procuramos compaixão

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Francisca Lita Sáez (Espanha), Uma luta desigual , 2020 - Reprodução
O comunismo será, entre outras coisas, uma aspirina do tamanho do sol

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Vivemos tempos profundamente perturbadores. A pandemia global de covid-19 teve o potencial de unir as pessoas, fortalecer instituições globais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e galvanizar uma nova fé na ação pública. Poderíamos ter empregado nossa vasta riqueza social para melhorar os sistemas de saúde pública, incluindo tanto a vigilância de surtos de doenças quanto o desenvolvimento de sistemas médicos para tratar as pessoas durante esses surtos. Mas não.

Estudos da OMS mostraram que os gastos com saúde nos governos dos países mais pobres ficaram relativamente estáveis durante a pandemia, ao passo que os gastos com serviços privados de saúde continuam a aumentar. Desde que a pandemia foi anunciada oficialmente em março de 2020, muitos governos responderam com alocações orçamentárias excepcionais; no entanto, das nações mais ricas às mais pobres, o setor de saúde recebeu apenas “uma parcela bastante pequena”, enquanto a maior parte dos gastos foi usada para resgatar corporações multinacionais e bancos, e para fornecer auxílio social para a população.

Em 2020, a pandemia custou ao produto interno bruto global cerca de 4 trilhões de dólares. Enquanto isso, de acordo com a OMS, o “financiamento necessário (…) para garantir a preparação para epidemias é estimado em aproximadamente 150 bilhões por ano”.

Em outras palavras, um gasto anual de 150 bilhões de dólares provavelmente poderia impedir a próxima pandemia, o que inclui seu custo econômico de vários trilhões de dólares, além do sofrimento incalculável que provoca. Mas esse tipo de investimento social simplesmente não está nos planos hoje em dia. Isso é parte do que torna nossos tempos tão perturbadores.


SH Raza (Índia), Monção em Bombaim , 1947-1949 / Reprodução

Em 5 de maio, a OMS divulgou suas conclusões sobre o número excessivo de mortes causadas pela pandemia de Covid-19. No período de 24 meses dos anos de 2020 e 2021, a OMS estimou o número de mortos da pandemia em 14,9 milhões.

Diz-se que um terço dessas mortes (4,7 milhões) ocorreu na Índia, cifra dez vezes maior que o número oficial divulgado pelo governo do primeiro-ministro Narendra Modi, que contestou os números da OMS. Alguém poderia pensar que esses números impressionantes – quase 15 milhões de mortos globalmente em dois anos – seriam suficientes para fortalecer a vontade de reconstruir sistemas de saúde pública esgotados. Mas não.

De acordo com um estudo sobre financiamento global da saúde, a assistência ao desenvolvimento para a saúde (ADS) aumentou 35,7% entre 2019 e 2020. Isso equivale a 13,7 bilhões de dólares em ADS, muito abaixo dos 33 bilhões a 62 bilhões de dólares que se estima serem necessários para enfrentar a pandemia.

De acordo com o padrão global, enquanto o financiamento da ADS durante a pandemia foi para projetos relacionados à covid-19, vários setores-chave da saúde viram seus recursos diminuírem (malária em 2,2%, HIV/AIDS em 3,4%, tuberculose em 5,5%, saúde reprodutiva e materna em 6,8%).

Os gastos com a covid-19 também tiveram algumas disparidades geográficas impressionantes; o Caribe e a América Latina receberam, por exemplo, apenas 5,2% do financiamento da ADS, apesar de terem sofrido 28,7% das mortes globais por covid-19.


Sajitha R. Shankar (Índia), Alterbody , 2008 / Reprodução

Enquanto o governo indiano está preocupado em contestar o número de mortos por covid-19 divulgado pela OMS, o governo do estado de Kerala, na Índia, – liderado pela Frente Democrática de Esquerda – concentrou-se em usar todo e qualquer meio para melhorar o setor público de saúde. Kerala, com uma população de quase 35 milhões, lidera regularmente os indicadores de saúde do país entre os 28 estados indianos.

O governo da Frente Democrática de Esquerda nessa província conseguiu lidar com a pandemia por causa de seu robusto investimento público em unidades de saúde, a ação pública liderada por movimentos sociais vibrantes ligados ao governo e suas políticas de inclusão social, o que minimizou as hierarquias de casta e patriarcais que de outra forma apartam as minorias sociais das instituições públicas.

Em 2016, quando a Frente Democrática de Esquerda assumiu a liderança do estado, começou a melhorar o sistema de saúde pública que se encontrava sucateado. A Missão Aardram [Compaixão], iniciada em 2017, tinha como objetivo melhorar a saúde pública, incluindo departamentos de emergência e unidades de trauma, e atrair mais pessoas do caro setor de saúde privado para os sistemas públicos. O governo enraizou a Missão Aardram nas estruturas de autogoverno local para que todo o sistema de saúde pudesse ser descentralizado e mais sintonizado com as necessidades das comunidades.

A missão desenvolveu, por exemplo, um relacionamento próximo com várias cooperativas, como a de Kudumbashree, um programa de combate à pobreza de mulheres com 4,5 milhões de integrantes. Devido ao sistema de saúde pública revitalizado, a população de Kerala começou a se afastar do setor privado em favor dessas instalações governamentais, cujo uso aumentou de 28% na década de 1980 para 70% em 2021.

Como parte da Missão Aardram, o governo da Frente Democrática de Esquerda em Kerala criou Centros de Saúde da Família em todo o estado. O governo agora estabeleceu Clínicas pós-Covid nesses centros para diagnosticar e tratar pessoas que sofrem de problemas de saúde de longo prazo relacionados à covid-19.

Essas clínicas foram criadas apesar do pouco apoio do governo central em Nova Délhi. Vários institutos de pesquisa e saúde pública de Kerala proporcionaram avanços em nossa compreensão das doenças transmissíveis e ajudaram a desenvolver novos medicamentos para tratá-las, incluindo o Instituto de Virologia Avançada, o Instituto Internacional de Pesquisa Ayurveda e os centros de pesquisa em biotecnologia e medicamentos farmacêuticos no Bio360.

Tudo isso é justamente a agenda da compaixão que nos dá esperança em relação às possibilidades de um mundo que não está baseado no lucro privado, mas no bem social.


Nguyễn tư Nghiêm (Vietnã), The Dance , 1968 / Reprodução

Em novembro de 2021, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social trabalhou ao lado de 26 institutos de pesquisa para desenvolver Um plano para salvar o planeta. O plano tem muitas seções, cada uma das quais emergiu de um profundo estudo e análise. Uma das seções-chave é a de saúde, com 13 propostas políticas claras:

  1. Avançar na proposta de uma vacina popular para a Covid-19 e para doenças futuras.

  2. Remover os controles de patentes sobre medicamentos essenciais e facilitar a transferência tanto do conhecimento médico quanto da tecnologia para os países em desenvolvimento.

  3. Desmercantilizar, desenvolver e aumentar o investimento em sistemas públicos de saúde robustos.

  4. Desenvolver a produção farmacêutica do setor público, principalmente nos países em desenvolvimento.

  5. Formar um Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Ameaças à Saúde.

  6. Apoiar e fortalecer o papel que os sindicatos dos trabalhadores da saúde desempenham no local de trabalho e na economia.

  7. Assegurar-se de que as pessoas de territórios desfavorecidos e de áreas rurais tenham acesso à formação para se tornarem médicas.

  8. Ampliar a solidariedade médica, inclusive por meio da Organização Mundial da Saúde e de plataformas de saúde associadas, a órgãos regionais.

  9. Mobilizar campanhas e ações que protejam e ampliem os direitos reprodutivos e sexuais.

  10. Cobrar um imposto de saúde sobre grandes empresas que produzem bebidas e alimentos amplamente reconhecidos por organizações internacionais de saúde como prejudiciais às crianças e à saúde pública em geral (como aqueles que causam obesidade ou outras doenças crônicas).

  11. Limitar as atividades promocionais e despesas de publicidade de empresas farmacêuticas.

  12. Construir uma rede de centros de diagnóstico acessíveis e financiados com recursos públicos, e regular estritamente a prescrição e os preços dos testes de diagnóstico.

  13. Fornecer atendimento psicológico como parte dos sistemas públicos de saúde.

Se ao menos metade dessas propostas de políticas fossem promulgadas, o mundo seria menos perigoso e mais compassivo. Pegue o ponto n. 6 como referência. Durante os primeiros meses da pandemia, tornou-se frequente falar sobre a necessidade de apoiar os “trabalhadores essenciais”, incluindo os profissionais de saúde (o nosso dossiê de junho de 2020, Saúde é uma escolha política, defendeu esses trabalhadores).

Todas aquelas palmas cessaram logo depois e os profissionais de saúde se viram com baixos salários e más condições de trabalho. Quando esses profissionais declararam greve – dos Estados Unidos ao Quênia – esse apoio simplesmente não se concretizou.

Se os profissionais de saúde tivessem voz em seus próprios locais de trabalho e na formulação de políticas de saúde, nossas sociedades seriam menos propensas a repetidas calamidades sanitárias.


Roque Dalton por Instituto Tricontinental de Pesquisas Sociais / Reprodução

Há um antigo poema de Roque Dalton de 1968 sobre dores de cabeça e socialismo que nos dá um gostinho do que será necessário para salvar o planeta:

É lindo ser comunista,

embora cause muitas dores de cabeça.

É que a dor de cabeça dos comunistas

se supõe ser histórica, ou seja

não cede aos comprimidos analgésicos

mas só diante da realização do Paraíso na terra.

Assim é a coisa.

Sob o capitalismo nossa cabeça dói

e nos arrancam a cabeça.

Na luta pela Revolução, a cabeça é uma bomba relógio.

Na construção socialista

planificamos a dor de cabeça

o que não a faz diminuir, pelo contrário.

O comunismo será, entre outras coisas,

uma aspirina do tamanho do sol.

 

Cordialmente,

Vijay.

 

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante