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Regulamentar para explorar: riscos da medida de consulta prévia de povos tradicionais em MG

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Entre essas ameaças está a instituição de unidades de conservação em sobreposição aos territórios, o que tem provocado a criminalização do manejo tradicional - Foto: Valda Nogueira / Quilombo de Raiz (MG)
A Resolução ainda abre espaço para que o empreendedor privado realize a consulta

Por Alessandra Jacobovski* e Tatinha Alves**

 

Ao longo da gestão de Jair Bolsonaro (PL), o governo federal tem realizado ameaças e violações ao direito de consulta às comunidades e povos tradicionais.

O país foi denunciado em 2021 por organizações sociais para a Organização Internacional do Trabalho (OIT) por descumprimento sistemático deste direito.

No mesmo ano foi protocolado o Projeto de Decreto Legislativo 177 que, caso aprovado, permitirá que a presidência retire o Brasil da Convenção 169 da OIT, um dos principais marcos internacionais de proteção dos direitos destes povos. Enquanto a esfera federal ameaça institucionalizar, por lei, a violação do direito de consulta, este cenário trágico já é realidade no estado de Minas Gerais.

A Resolução Conjunta da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) e da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) nº 01, de 4 de abril de 2022, regulamentou o direito à consulta prévia, livre e informada no Estado de Minas Gerais.

Embora a medida seja apresentada pelo estado como uma alternativa para garantir a consulta aos povos e comunidades tradicionais, as organizações e comunidades tradicionais destacam que o objetivo central da Resolução é facilitar o estabelecimento de empreendimentos nos territórios tradicionais do estado, atendendo aos interesses de empresas do ramo da mineração, agronegócio, entre outros.

A construção de um norma para facilitar a atuação do mercado faz parte de uma lógica neocolonialista, incentivada e facilitada pela atual política do Governo Federal, que tem aberto determinados territórios à exploração do capital internacional, e selecionado grupos sociais alvos da expropriação, espoliação e morte: povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais, além das populações periféricas urbanas.

O direito à consulta está previsto na a Convenção 169, a qual determina aos governos a realização de consulta aos povos interessados “(...) mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”.

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Isso quer dizer que cada vez que o Estado adotar uma medida que afete os povos e comunidades tradicionais, seja por meio da edição de uma legislação ou através de um ato administrativo, como a emissão de licenças e autorizações, fica obrigado a consultá-los, de maneira prévia, livre e informada.

Este direito também está previsto nas Declarações sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA), na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), além de ser um desdobramento de outras convenções internacionais.

A Constituição de 1988 protege esse direito através da garantia da autonomia dos povos e por meio do princípio da participação popular. Outras legislações nacionais, em especial o Decreto 6.040/2007, também traz previsão sobre esse direito.

Na contramão dessas legislações, a Resolução viola o direito à consulta e apresenta uma série de vícios que a tornam inconvencional, inconstitucional e ilegal, o que significa que ela ofende, ao mesmo tempo, tratados internacionais, a Constituição de 1988 e várias legislações nacionais.

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É de se destacar que a aplicabilidade do direito à consulta não depende de regulamentação, uma vez que existem outros meios capazes de garantir a sua efetividade, conforme a escolha de cada povo e comunidade. Exemplo disso são os protocolos de consulta, instrumentos autônomos dos povos e comunidades tradicionais.

O primeiro vício da Resolução trata do fato de que em nenhum momento a norma passou pela discussão pelos povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais, o que afronta o próprio direito à consulta.

Outra grave violação da norma consiste em reconhecer como sujeitos passíveis da consulta apenas os os grupos e comunidades que possuem a certificação e/ou o reconhecimento do Estado. Isso viola o direito à autodefinição dos povos, previsto na Convenção 169, no Decreto 6.040/2007 e na Lei 21.147/2014, que instituiu a Política Estadual para o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais.

A Resolução ainda abre espaço para que o empreendedor privado realize a consulta, além de estabelecer um procedimento com prazos e ritos únicos, inclusive para a construção de protocolos, a todos os povos e comunidades tradicionais do estado.

O direito à consulta prévia, livre e informada tem sido uma importante ferramenta de luta dos povos na defesa de seus territórios tradicionais. No próprio estado de Minas Gerais, as comunidades apanhadoras e apanhadores de flores sempre-vivas se uniram, há 12 anos, para fazer frente às constantes ameaças que avançam sobre seus territórios, e que foram intensificadas com as atuais políticas do Governo Federal. Para isso, contam com a Comissão em Defesa dos Direitos da Comunidades Extrativistas (Codecex) e assessoria jurídica da Terra de Direitos.

Entre essas ameaças está a instituição de unidades de conservação em sobreposição aos territórios, o que tem provocado a criminalização do manejo tradicional das flores sempre-vivas, carro chefe da economia das comunidades.

São cerca de 200 espécies ornamentais, entre flores, botões, folhas e frutos secos do cerrado, utilizadas pelas comunidades para a produção e comercialização de artesanatos, remédios naturais e também comercializadas in natura. Outras ameaças ainda são a invasão de suas terras pela monocultura do eucalipto e por fazendas destinadas à agropecuária.

Além da atividade econômica em torno das sempre-vivas, as comunidades de apanhadoras e apanhadores possuem como relação a manutenção de suas crenças e religiões, dos festejos e conhecimentos tradicionais e o cuidado com a água e a biodiversidade local.

Todas estas atividades são transmitidas através de gerações. Por estas práticas, essas comunidades receberam, em 2020, o reconhecimento como Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam) da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU). Ao mesmo tempo que isso garantiu a sua visibilidade, tornou as comunidades mais vulneráveis ao assédio.

Algumas das comunidades, assessoradas pela Terra de Direitos, construíram, no ano de 2019 protocolos de consulta prévia, livre e informada, como mais um instrumento na defesa de seus territórios. Contudo, a Resolução n.º 1 aparece como nova ameaça à manutenção dos modos de vida tradicionais.

A Codecex, em parceria com outras organizações e movimentos, entre eles a Terra de Direitos, tem se mobilizado para pressionar o Estado a revogar a Resolução. Recentemente, integrantes das comunidades apanhadoras reivindicaram a revogação da Resolução em audiência pública realizada na Assembleia Estadual de Minas Gerais. Como um dos resultados dessa mobilização, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) editou a Recomendação 16/2022 ao Estado de Minas Gerais, solicitando a revogação imediata da medida.

É importante destacar ainda que a medida adotada pelo estado de Minas Gerais não pode ser considerada um avanço para a relação entre Estado e povos e comunidades tradicionais.

A escuta prevista pela Convenção 169 tem padrões acordados coletivamente pelos reais impactados e já é abarcada por legislações nacionais. E por isso, a luta dos povos e comunidades tradicionais deve ser respeitada e tratada com parâmetros que respeitem acordos anteriormente pactuados. As comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas seguem em luta.



*Alessandra Jacobovski é assessora jurídica da Terra de Direitos do Programa Cerrado

**Tatinha Alves é apanhadora de flores sempre-viva e coordenadora da Comissão em Defesa dos Direitos da Comunidades Extrativistas (Codecex).

***A Terra de Direitos é uma organização de Direitos Humanos que atua na defesa, na promoção e na efetivação de direitos, especialmente os econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca). Criada em 2002, a Terra de Direitos incide nacional e internacionalmente nas temáticas de direitos humanos e conta com escritórios em Santarém (PA), em Curitiba (PR) e em Brasília (DF).

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante