Sem teto

Na véspera de um dos dias mais frios do ano, 100 famílias com 79 crianças vão para a rua em SP

Famílias denunciam violência policial; prefeitura teria oferecido vagas em albergues, mas em quantidade insuficiente

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Famílias estão com as crianças e os móveis na rua sem ter para onde ir após despejo - Reprodução/Facebook FLM

Sem ter para onde ir, Roseli dos Santos, de 35 anos, foi para a rua com seus dois filhos, um de 11 anos e outro de 8, depois que a juíza Daniela Dejuste de Paula, da Justiça de São Paulo, determinou a reintegração de posse do Baixo Augusta Hotel, na rua Augusta, entre as ruas Marquês de Paranaguá e Dona Antônia, no centro da capital paulista. 

"A gente está tentando ir para casa de um parente ou amigo, alguma pessoa que possa acolher", afirma Roseli, que, apesar de estar empregada, ganha somente um salário mínimo. “A gente não consegue comer e pagar aluguel. As duas coisas não dá para quem ganha um salário mínimo", complementa. Ela ainda tem uma doença crônica, o que gera mais gastos.  


Moradores da ocupação denunciam violência na ação policial de reintegração de posse / Vídeo: FLM

A reintegração de posse foi realizada na manhã desta terça-feira (17), um dia antes da previsão de um dos dias mais gelados do ano. Nesta quarta-feira (18), os termômetros podem chegar a 6ºC em São Paulo.

No total, nove viaturas da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) e três do Batalhão de Choque foram mobilizadas para fazer o despejo de 100 famílias – cerca de 300 pessoas, sendo 79 crianças. O local foi ocupado pela Frente de Luta por Moradia (FLM) em 1º de abril deste ano, como parte da Jornada de Luta das Mulheres da FLM, com a pauta de “Nenhuma mulher sem casa”. 

O pedido de reintegração, que foi feito pelos donos do hotel, estava tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF) e chegou a ser barrado em janeiro pelo ministro Ricardo Lewandowski. Na ocasião, o magistrado justificou que nenhuma medida havia sido tomada para acolher as famílias em outros locais e que a reintegração iria contra a decisão do próprio STF que proibia despejos até 31 de março de 2022. 

“O decidido nos autos da ADPF 828 não impede que o Poder Público aja para inibir a consolidação de novas ocupações após o marco temporal de 20 de março de 2020, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada. Contudo, não foi o que ocorreu na presente hipótese”, escreveu o ministro na época. Agora, a ministra Cármen Lúcia autorizou o cumprimento da reintegração. 

Sem ter para onde ir 

“Nesse momento, nós estamos aqui na Augusta, na rua. Estamos com as nossas coisas todas na rua jogadas”, afirmou Roseli. Ela também conta que houve violência por parte da PM-SP durante a reintegração. “Estavam saindo todos pacificamente, até que o choque da polícia forçou a entrada, derrubou idoso e bateu numa criança. Foi muito tumultuado e foi muito difícil.” 

A situação é a mesma de Amanda Evelin, de 21 anos, que tem uma filha de quatro anos. Mãe solo e desempregada desde julho de 2020, ela também está na ocupação desde abril. “A gente não tem lugar pra ir, a gente está bem insegura. Aí por enquanto a gente está tentando criar uma rede de apoio”, conta.  

“Foi bem violento, bem traumático. As crianças ficaram bem assustadas. É um trauma na vida de uma criança, porque a os policiais invadiram o local, chegaram a agredir uma criança que tem epilepsia com o cassetete”, afirma Amanda.  

Antes da ocupação, Amanda estava em um abrigo da Prefeitura de São Paulo, mas não quer “mais isso” para a sua filha. “Eu quero criar um núcleo familiar. Eu não quero só ir para um lugar para dormir. Eu quero ter a minha casa, a minha vida tudo certinho”, diz. 

Roseli Silva também não quer ir para os abrigos que foram oferecidos pela Prefeitura. “A Prefeitura ofereceu cadastro para gente ir para o abrigo, mas não tinha nem a vaga ainda. A gente não tem como morar com nossos filhos no albergue. Como a gente vai fazer comida para os nossos filhos? As vezes o irmão da gente não vai para o mesmo lugar, então o nosso núcleo familiar não vai permanecer junto”, diz. 

Negociações 

Segundo Heloísa Silva, integrante da coordenação da FLM e que estava no local, todos os procedimentos jurídicos de defesa da ocupação foram cumpridos, “mas ainda assim a juíza acabou reafirmando a postura de realizar o despejo”. “Não houve a sensibilidade do poder público e do judiciário de fazer esse acolhimento. Tentamos recursos no STF, também não conseguimos”, explica. 

O único tipo de acolhimento oferecido pela Prefeitura, como já relatado pelas moradoras do local, foram vagas em albergues, mas, segundo Silva, não há vagas para todos, menos ainda para “acolhimento de famílias, porque geralmente os acolhimentos separam: mulheres e as crianças vão para um lado, os companheiros vão pra outro, o que explica a grande recusa a tipo de acolhimento”. Agora, a FLM tentará remanejar as famílias para outras ocupações da frente em São Paulo, ainda que a organização não tenha a capacidade de acolher todos. 

Interesse eleitoral 

Para Heloísa Silva, existe um “interesse eleitoral” nas ações de despejo, como a que ocorreu na semana passada na chamada "Cracolândia", para “ganhar visibilidade para conquistar o público mais conservador”. 

“A gente sabe que tem um viés de tentar perseguir os mais pobres nessas ações midiáticas, dando grande repercussão em programas sensacionalistas, quando na verdade não há nenhum interesse de mostrar a contradição habitacional, a ausência de programas eficazes de moradia. É só essa tentativa de mostrar que tem uma ação de expulsão dos pobres, principalmente na região central”, afirma. 

Isso num momento em que a situação de carestia e miséria aumenta em todo o país, o que “tem feito com que os mais afetados, os mais pobres, procurem o movimento para tentar minimamente sair do aluguel, sair da situação de despejo”.  

O outro lado 

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo afirma que o processo de desocupação ocorre de forma pacífica, e disse que denúncias sobre "eventuais desvios na atuação policial" podem ser encaminhadas à corregedoria da Polícia Militar, que é responsável pelas investigações.

O Brasil de Fato entrou em contato com a as secretarias da Prefeitura de São Paulo responsáveis pelo acompanhamento do despejo e até o momento de publicação da reportagem não recebeu respostas. O espaço está aberto para posicionamentos. 

Edição: Felipe Mendes