apoio na pandemia

Análise | A Lei Aldir Blanc na cidade do Rio de Janeiro: reflexões iniciais

O subsídio concedido se mostrou essencial no momento de emergência pelo qual o setor cultural da cidade passava

Rio de Janeiro (RJ) |
Aldir Blanc morreu em 4 de maio de 2020, em decorrência da covid-19, e o nome dele foi escolhido para a lei que instituiu ações emergenciais para o setor cultural durante a pandemia - Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia

O setor cultural foi um dos mais afetados pela pandemia de covid-19, iniciada no Brasil no começo de 2020. Depois de meses sem receberem apoio algum por parte do governo federal, os trabalhadores da cultura foram atendidos com a aprovação da Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020, a chamada Lei Aldir Blanc (LAB), que instituiu ações emergenciais para o setor.

Se, por um lado, a pandemia evidenciou a importância da cultura para a nossa sociedade, sobretudo durante os momentos de confinamento, por outro, mostrou também as fragilidades do setor e de suas políticas culturais. Neste contexto, deu-se início à pesquisa “Diagnóstico Cultural – Estudo da aplicação da Lei Aldir Blanc na cidade do Rio de Janeiro”, projeto do Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura (CLAEC), que busca entender os impactos da pandemia sobre o setor cultural e as políticas para o seu enfrentamento, tomando como foco a Lei Aldir Blanc municipal.

Desenvolvido em parceria com o Observatório das Metrópoles (OM) e com o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), o projeto articula diferentes estratégias de pesquisa, entre elas a aplicação de questionário junto aos trabalhadores de cultura da cidade, análise de dados da LAB cedidos pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC-RJ) e também entrevistas. 

Neste primeiro artigo, apresentamos uma análise inicial acerca dos dados disponíveis desenvolvida pelos pesquisadores do CLAEC – LABCult_Rio em parceria com pesquisadores do OM, no que se refere principalmente ao Inciso II da LAB.

A Lei Aldir Blanc no Rio

A partir dos parâmetros estabelecidos pela lei, a cidade do Rio de Janeiro recebeu pouco mais de R$ 39 milhões. Dentro da legislação foram divididas competências entre Distrito Federal, Estados e Municípios. As cidades ficaram responsáveis por dois itens de execução vinculados a subsídios para organizações e atividades culturais (Incisos II e III). A renda emergencial para os trabalhadores de cultura (Inciso I) ficou sob responsabilidade dos governos estaduais.

O Inciso II previa o subsídio mensal para manutenção de espaços e outras organizações culturais, e, na cidade do Rio de Janeiro, o Inciso III foi desdobrado em quatro editais: Prêmio a Projetos de Fomento a Todas as Artes, Prêmio Ações Locais, Prêmio Arte & Escola e Preservação da Memória Técnica.

Perfis dos proponentes

Quase a totalidade dos contemplados pelo benefício, 1510 proponentes, foram afetados pela pandemia. Curiosamente, 12 organizações selecionadas para atendimento pela Lei Aldir Blanc declararam possuir atividades que não foram afetadas pela pandemia do coronavírus. Outro dado interessante diz respeito às organizações que informaram possuir apoio financeiro institucional. Apenas 33 dos selecionados informaram estar vinculados ou possuir algum tipo de apoio da administração pública de qualquer esfera, fundações, institutos, instituições, grupos de empresas, teatros e casas de espetáculos de diversões ou espaços geridos pelos serviços sociais do Sistema S.

A atuação territorial dos coletivos foi indicada pelos proponentes conforme a Área de Planejamento – AP. Entre as respostas, a região mais marcada foi a AP3 (24%), que abrange a maior parte dos bairros da Zona Norte. Em seguida temos a AP1 (23,5%), que corresponde à região central. Em terceiro temos a AP2 (22,1%), que engloba a Zona Sul e mais alguns bairros como a Tijuca e Vila Isabel. Na sequência temos a AP4 (16,2%) e AP5 (14,2%) que são as áreas que abrangem a Zona Oeste da cidade.

Vale ressaltar que essa questão permitia mais de uma resposta, então podiam ser marcadas uma ou todas as áreas de planejamento como área de atuação. O resultado mostra uma média de 2,5 marcações por proponente e, assim, podemos concluir que a maioria marcou ter atuação em duas ou três áreas de planejamento.

Já em relação ao tempo de atuação de cada coletivo, foram verificados 6 tipos de respostas, configuradas em 3 grupos para facilitar a demonstração. A maior parte dos proponentes (843 respostas) tem mais de 10 anos de atuação, seguido pelo grupo com 3 a 9 anos (583 respostas), e o último grupo, com menos tempo de atuação – até 2 anos – foi também o de menor incidência, com 80 respostas. Houve 4 respostas em branco, agrupadas como inconclusivas.

Proponentes, valores e critérios

Os valores concedidos no Inciso II aos grupos e organizações foram de R$ 6 mil, R$ 8 mil ou R$ 10 mil, pagos em duas parcelas. Para o enquadramento nessas faixas, foram usados 4 critérios: (i) institucionalidade (se o proponente tinha CNJP ou não), (ii) territorialidade (conforme os grupos por Região Administrativa definidos pela SMC-RJ, segundo parâmetros por nós desconhecidos), (iii) promoção de Ações Afirmativas (número de diferentes grupos atendidos) e (iv) quantidade de funcionários (SMC-RJ, 2020). A maior pontuação foi associada a grupos formalizados (com CNPJ), ocupantes de territórios considerados mais vulneráveis e com menor acesso cultural (grupo 5, seguidos dos grupos 4, 3, 2 e 1), que realizassem ações afirmativas mais diversificadas e com maior número de funcionários. No critério de institucionalidade, aproximadamente um terço (34%) do total dos proponentes não tinha CNPJ.

Quanto à territorialidade, o grupo 1, que reúne as Regiões Administrativas (RAs) de Copacabana, Lagoa, Botafogo e Barra da Tijuca, foi o que teve mais proponentes contemplados. Em seguida vem o grupo 2, que inclui as RAs de Paquetá, Tijuca, Vila Isabel, Centro, Rio Comprido e Santa Teresa. Depois vem o grupo 5, que reúne 15 RAs das mais populosas da cidade. O grupo 4 – Inhaúma Méier, Irajá, Madureira – e o grupo 3 – Jacarepaguá, Ilha do Governador, Ramos e Penha – são os que tiveram menos proponentes, o que pode revelar desigualdades no associativismo cultural nos diferentes territórios da cidade ou no acesso digital requerido para se inscrever no processo seletivo. Cabe destacar que não são transparentes e explícitos os parâmetros utilizados pela Prefeitura para conformar os diferentes grupos territoriais.

O critério relativo à promoção de ações afirmativas definia diversos públicos e pontuava conforme a quantidade de grupos atendidos, como, por exemplo: LGBT, negros, mulheres e pessoas com deficiência. Um maior número de proponentes declarou realizar ações afirmativas que atendiam de 3 a 5 diferentes grupos de público.

Entendemos que este critério tem uma dupla importância: de um lado, reflete as pressões exercidas pela sociedade civil sobre o poder público pelo reconhecimento do atendimento cultural aos diferentes grupos sociais; de outro lado, possui uma dimensão político-pedagógica por levar os proponentes a refletir e discernir seu público, estimulando uma percepção de cultura para além do espetáculo e da mercadoria. Isto é, uma visão de cultura como direito que contribui para a qualidade de vida, o desenvolvimento social, o sentido de pertencimento e a saúde mental, devendo assim ser acessível a todos os cidadãos. Em tempos de trevas, tratou-se de uma conquista importante, ainda que a autodeclaração nem sempre correspondesse à realidade.

Nesta perspectiva, pode-se destacar a diversidade dos públicos atendidos pelas organizações contempladas. Foram referenciados pelos proponentes um total de 27 grupos. A População em Geral foi a mais mencionada (81% das organizações), seguida por Estudantes (67%), Negros (67%) e Mulheres (65%). Entre as 10 categorias mais mencionadas, nota-se a presença de três com alguma similaridade: Estudantes (67%), Juventude (62%) e Crianças e Adolescentes (57%). No outro extremo da lista, chama atenção a presença de grupos que afirmam atender públicos pouco usuais na realidade carioca, como Ciganos (5%), Populações de regiões fronteiriças (4%) e Populações atingidas por barragens (2%).

No que se refere à quantidade de pessoal contratado, podemos discernir três grupos: o primeiro, amplamente majoritário (1.283), formado por organizações de pequeno porte que declararam ter até 10 empregados; o segundo, que consideramos como de porte médio, é formado por 137 proponentes e declarou ter entre 10 e 20 funcionários; por fim, o terceiro grupo, formado por 77 organizações, pode ser considerado de grande porte, tendo mais de 20 funcionários.

A partir da soma das pontuações dos critérios apresentados, verifica-se que a maior parte dos selecionados, 1.206 organizações, foi classificada na faixa intermediária e recebeu R$ 8 mil.

Verificamos uma pequena discrepância no total de proponentes para cada um dos critérios, o que representa uma margem de erro que não chega a 1%. É possível que se relacione com as organizações que não apontaram paralisação das atividades durante a pandemia, o que poderá vir a ser analisado em outro momento.

Considerações Finais

O subsídio concedido a grupos e coletivos através do inciso II da Lei Aldir Blanc se mostrou essencial no momento de emergência pelo qual o setor cultural da cidade passava – e ainda passa. Deve-se reconhecer o esforço realizado pelo Conselho Municipal de Políticas Culturais e pela SMC-RJ no sentido de promover a participação e o debate junto à sociedade civil sobre pontos importantes da aplicação da Lei, entre os quais estão os critérios de seleção.

A análise dos dados da implementação da LAB na cidade nos permite agora ponderar os pontos positivos e negativos, assim como levantar questões a serem elucidadas ou aprimoradas.

Apesar de valores limitados e pagos somente dez meses após o início da pandemia, o apoio constituiu um instrumento eficaz ao alcançar um grande número e variedade de agentes. A presença das ações afirmativas entre os critérios de avaliação também deve ser ressaltada, bem como a discussão em torno da diversidade de públicos, importante para a garantia dos direitos culturais dessas populações.

Por outro lado, a falta de transparência quanto às bases do critério de territorialidade e o fato de os critérios de ações afirmativas e de quantitativo de pessoal serem autodeclarados certamente fragilizam a aplicação dessa política. Além disso, diante da grande concentração da maioria dos contemplados em uma única faixa de valor, fica ainda um questionamento quanto à efetividade dos critérios. Observando agora o resultado, cabe perguntar se, naquela situação emergencial, a divisão por faixas – e com diferenças tão pequenas – era realmente necessária.

A análise dos dados relativos ao subsídio nos permite fazer uma primeira avaliação da aplicação da LAB no município do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, compreender a natureza das organizações culturais e de suas formas de atuação. Dada a escassez de dados e informações sobre o setor na cidade, esperamos com esta pesquisa contribuir com o desenvolvimento das políticas culturais, promovendo o debate neste e nos próximos boletins.



*Veronica Diaz Rocha é Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ), pesquisadora associada ao Centro Latino Americano de Estudos em Cultura (CLAEC); Luiz Manoel Estrella é Mestre em Estudos da Cultura (Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE), pesquisador associado ao CLAEC; Pâmela Matos é economista pelo Instituto de Economia (IE/UFRJ), pesquisadora associada ao CLAEC; Andrea Chiesorin é Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ), pesquisadora associada ao CLAEC; e Taísa Sanches é Doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio), pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). 

**Este é um artigo de opinião. A visão das autoras e autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Felipe Mendes